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Ser aprovado no vestibular realiza sonhos que rompem a desigualdade

Histórias de calouros são tristes, difíceis, emocionantes e inspiradoras. As vitórias conquistam as redes sociais digitais

Victor Furtado

Quem acessa alguma rede social digital, possivelmente tem acompanhado a festa dos calouros da Uepa, da UFPA, da Ufra, da Ufopa, da Unifesspa ou do IFPA. Ou de qualquer universidade pública que ofertou vagas pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu) pelo Brasil. E deve ter encontrado ao menos uma das muitas histórias de vitórias sobre a desigualdade social e condições variadas, que poderiam dificultar o acesso ao ensino superior. Para algumas dessas pessoas, as tão criticadas cotas foram a oportunidade perfeita. Teve festa nos bairros periféricos. O Pará está cheio dessas histórias.

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Essas histórias são inspiradoras para muita gente. Entretanto, algumas têm a beleza distorcida, para a defesa do discurso pró meritocracia. Como se em meio a dificuldades, todo mundo realmente tivesse oportunidades e condições plenamente iguais. Não é tão simples assim. Cada caso é um caso. Cada vitória de quem deu o máximo de si é linda. Mas as dificuldades não devem ser romantizadas. Não deveria ser tão difícil para uns e menos difícil para outros por conta da desigualdade social.

Rubens Cardoso, reitor da Uepa, no dia do anúncio do listão da estadual, disse que o Pará precisava de mais vagas públicas. Somando todas as instituições públicas, a oferta não chega a 20 mil vagas. O Enem 2019 teve 279 mil inscritos paraenses. Se dependessem apenas das vagas públicas do estado, mais de 260 mil estudantes teriam de recorrer a instituições privadas. Ou esperar mais um ano.

Entre as histórias de quem driblou as dificuldades está a de Manoel Santos de Souza, de 19 anos. Desde os 12, trabalha com a mãe e a irmã na feira de Marituba. A mãe é a Maria Clei, conhecida como "Dona Baixinha". E a irmã é a Sheila, feirante há bem mais tempo. Manoel fala com tranquilidade: "Tive mulheres incríveis na minha vida". A amiga Juliani ouve esse discurso com um enorme sorriso.

Manoel foi apenas o primeiro lugar do curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP), apontada em muitos rankings como melhor do Brasil. Só isso. Não satisfeito, passou na Uepa e na UFPA também. Tudo pelo sistema de cotas sociais. Ele estudou sempre em escola pública e diz com orgulho que teve professores maravilhosos. Por isso ama a sala de aula e quer ser professor. Veja o relato de Manoel:

 


 

Antes dessas aprovações, cursava técnico em Química no IFPA. No currículo, estão as escolas públicas Eudamidas Lopes de Miranda, Professora Emília Clara de Lima e Professor José Edmundo de Queiroz. Todas de Marituba.

"Mas eu ainda fazia meus 'corres'. Já puxei carroça vendendo as coisas. Já fiz limpeza. Vendi docinho no curso e ajudava a mamãe. Não foi fácil. Estudava, às vezes, na feira mesmo. Eu tô muito feliz. Agora eu vou me aproximar ainda mais dos meus professores de português. Dessa vez, como aprendiz", relata, emocionado. Desnecessário dizer que Dona Baixinha chorava litros ao ver o filho contar essa história. Não conseguia nem falar.

Para conseguir cursar a USP, ele vai precisar de ajuda. A começar pela viagem. Os amigos e familiares, orgulhosos da vitória, estão organizando rifas e vaquinhas digitais. Pelo menos para o primeiro mês, precisam arrecadar R$ 2 mil. Caso alguém queira investir no jovem professor em formação, os telefones de contato são 98577-3142 e 98023-8812.

"Um pisão no preconceito", diz pastora, caloura, mãe de mulher trans

A pastora Neru Reis de Moraes, de 39 anos, mora no Barreiro. Uma casa humilde onde, a matriarca da família — a mãe dela, dona Neia — deu um jeito de acomodar toda a família. Após mais de 20 anos afastada dos estudos, desde que a filha Francielle nasceu, Então acabou se dedicando a ela, ao outro filho e mais os oito filhos de coração que foi agregando. Pelo trabalho social na igreja, sempre sonhou em fazer Serviço Social. Neste ano, conseguiu. E na UFPA.

"Na melhor do Norte e das melhores do Brasil! Tá bom pra ti?", brinca a pastora Neru, super animada com a vitória que diz ainda não acreditar ter conquistado. Mas conquistou. A primeira tentativa foi no processo seletivo 2019. Só que a nota em redação não foi das melhores. Uma amiga, que é dona de um cursinho de redação, deu de presente a ela uma bolsa para fazer a preparação completa.

Noites e madrugadas se foram. Abria o notebook e começava a ler todas as notícias dos jornais, se atualizava com tudo o que podia, assistia videoaulas e escrevia. Escrevia muito, treinando o que era a fraqueza dela. Foi assim que uma das vagas ganhou o nome dela. "Com meus filhos criados, eu voltei a sonhar. E consegui. Agora é cursar! Vou fazer 40 anos neste ano. Um grande presente de quarentão! A todos os que acham estar velhos demais para estudar, vão. Acreditem! Nunca é tarde. Deus é fiel", disse Neru, que pela religião e posição, não poderia passar a vitória sem dedicar ao deus no qual acredita.

Francielle é uma das motivações da pastora para seguir sonhando e lutando. Foi para criar ela que parou de estudar. Para educar e acompanhar todas as mudanças pelas quais passou. Francielle é uma mulher trans. Mais que uma história sobre a vitória da educação, a história da pastora é de amor e respeito. A moça é a maior fã da mãe. "Dei um pisão no preconceito por ela. E foi muito preconceito. Mas nesta casa, amor e respeito perpetuarão", conclui a pastora, que como toda a família, é muito chegada em redes sociais digitais.

Quem sabe um dia, ser uma pessoa trans — ser amigo ou familiar de uma — não seja mais motivo de destaque ao contar uma história como a da pastora. Porque o respeito, a harmonia e a convivência chegaram ao nível de normalidade de que toda a população LGBTI+ do planeta sonha em alcançar. A pastora Neru quer estudar Serviço Social para ajudar a transformar essa realidade. Pela educação, já começou transformando a própria realidade.

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