Quilombolas e pesquisadores contestam versão da Hydro sobre crimes socioambientais

Empresa de origem norueguesa será julgada na Holanda por crimes socioambientais no Pará. Pesquisadores da UFPA e do Instituto Evandro Chagas reforçam que laudos comprovam vazamento e contaminação, negada pela empresa

Camila Guimarães

Com o avanço do processo judicial contra a Hydro, pelo Tribunal Distrital de Roterdã, na Holanda, chegará a fase de análise do mérito. Ou seja, vencida a etapa de análise de jurisdição, com a decisão de que o tribunal internacional possui competência para analisar o caso, a corte irá avaliar as diferentes versões sobre o episódio ocorrido em 2018, em Barcarena, município do nordeste paraense. A Hydro é acusada de inundações em áreas próximas da empresa com material contaminado, atingindo rios, igarapés e a comunidade do entorno.

A empresa nega as acusações. Em nota enviada ao jornal O Liberal, após a publicação da reportagem sobre a decisão da corte holandesa em julgar o caso, a Hydro afirma que “a Alunorte reitera que não houve transbordamento durante as fortes chuvas que atingiram Barcarena e arredores em fevereiro de 2018. Mais de 90 inspeções/auditorias realizadas por órgãos públicos confirmaram isso”, diz o texto.

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A empresa confirma, na nota, que irá responder o processo ao tribunal holandês. “Por fim, no que tange à decisão da Corte de Roterdã, a Hydro nega veementemente as alegações apresentadas pelos autores e apresentará sua defesa de acordo com o processo estabelecido pelo Tribunal”.  

image Laudos técnicos comprovam a contaminação das pessoas e do meio ambiente com metais tóxicos e cancerígenos. (Igor Mota / O Liberal)

No entanto, laudos oficiais e medidas tomadas também por órgãos públicos vão no sentido contrário da afirmação da empresa, comprovando que as acusações contra a mineradora são fortes. De acordo com o Instituto Evandro Chagas (IEC), que à época foi acionado pelos Ministérios Públicos Estadual (MPPA) e Federal (MPF) para avaliar os impactos socioambientais e riscos à saúde dos moradores de Barcarena, o transbordamento das bacias de rejeitos químicos ficou comprovado, conforme comenta o pesquisador em Saúde Pública do IEC, Marcelo Lima, que coordenou a equipe de pesquisa:

"Os estudos evidenciaram que houve, sim, transbordamento, além de lançamentos regulares de efluentes não tratados, contendo níveis elevados de metais tóxicos, como chumbo e mercúrio. Além disso, à época, houve dois tipos de transbordamento: um para dentro da própria fábrica e outro para fora. Os rejeitos que ficaram para dentro também foram lançados na natureza, diretamente no Rio Murucupi. Constatamos, depois, também no Rio Pará".

O pesquisador enfatiza que os laudos se deram com base em visita in loco, além de  fotos que registraram o transbordo das bacias e análise química dos rejeitos e de amostras do meio ambiente.

 

Contaminação de comunidades com chumbo e níquel, diz pesquisadora

Os estudos do IEC reforçam um diagnóstico de contaminação que a população de Barcarena já vinha sofrendo há mais tempo, como constatou, naquele mesmo ano, o resultado de uma pesquisa feita pelo Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam), da Universidade Federal do Pará (UFPA), a pedido do MPF, cujas análises tiveram início ainda em 2015.

De acordo com a doutora em química analítica, Simone Pereira, coordenadora do Laquanam, 90 moradores da área ao redor da mineradora tiveram amostras de cabelos analisadas quimicamente, a partir das quais foi constatada a presença de elementos químicos tóxicos e cancerígenos em níveis superiores ao padrão de saúde:

"Nós analisamos 21 elementos químicos e comparamos as quantidades encontradas nos moradores de Barcarena com a amostra de pessoas não expostas à contaminação, moradoras de Altamira e constatamos a disparidade entre os valores. O alumínio, por exemplo, estava em uma quantidade absurdamente acima da média, inclusive comparado ao parâmetro mundial. Moradores de Barcarena tinham 27 vezes mais alumínio no corpo do que os moradores de Altamira. O chumbo foi encontrado e é o mais preocupante, porque está em níveis elevados em 24 das 26 comunidades, além de ter sido constatado também na água que essas pessoas ingerem. Outra substância preocupante é o cromo, porque foi percebido no sangue. O níquel também foi encontrado em proporção três vezes maior do que o parâmetro de normalidade", descreve a pesquisadora.

Elementos como chumbo e níquel podem causar uma série de anomalias no organismo humano. O chumbo afeta severamente as funções cerebrais, sangue, rins, sistema digestivo e reprodutor, inclusive com possibilidade de produzir mutações genéticas em descendentes. 

O níquel, por sua vez, provoca hipersensibilidade na cavidade oral, alteração e morte de células, e dermatite de contato, além de ter significativo potencial para induzir mutações genéticas e causar câncer.

O que a pesquisadora Simone Pereira enfatiza, com isso, é que mesmo antes do transbordamento das bacias, a população de Barcarena já apresentava, de forma constatada pelos estudos, altos níveis de contaminação. Para ela, a calamidade em 2018 foi apenas um evento agravador da situação: "O transbordamento de 2018 chamou muito atenção, mas os nossos estudos, iniciados em 2015, cujos resultados ficaram prontos justamente na época do vazamento, evidenciam que o problema já vinha de muito tempo. E o pior: continua até hoje. Esses elementos continuam contaminando os rios e as pessoas estão sem tratamento", afirma.

image Pesquisa da UFPA comprova que moradores já estavam contaminados desde antes do transbordamento em 2018. (Igor Mota / O Liberal)

Águas do processo industrial não tinham devido tratamento

A nota da Hydro afirma ainda que “com relação à planta da Alunorte, é importante esclarecer que nenhuma água que entra em contato com o processo industrial da Alunorte retorna ao meio ambiente sem tratamento prévio e adequado. A fábrica da Alunorte possui uma das maiores Estações de Tratamento de Efluentes Industriais (ETEI) da América Latina. A Alunorte faz investimentos constantes para reforçar a robustez de sua operação, contribuindo para tornar a refinaria ainda mais segura, considerando a possibilidade de mudanças climáticas severas no futuro”.

Porém, de acordo com o pesquisador do IEC, Marcelo Lima, a prática só pode ter ocorrido depois do episódio de 2018, quando a companhia “foi pressionada” a promover investimentos nessa área, pois, até 2018, quando o instituto fez vistorias no polo industrial da empresa, foi constatado que a Hydro não possuía estrutura necessária para promover o tratamento adequado para o volume de rejeitos produzidos antes de serem despejados no rio.

"A gente constatou, na época, que havia um subdimensionamento na capacidade deles de tratamento de efluentes. Se hoje eles conseguem tratar, eu não sei dizer. Não foram feitos novos estudos. Mas, naquela época, eles não conseguiam tratar todos seus efluentes, principalmente em momentos em que o volume dos efluentes subia muito, como no período de chuva", afirma o pesquisador.

Além disso, Marcelo lembra que foi constatado após visita ao local, que havia, sim, despejo de rejeitos da empresa diretamente no rio por meio de tubulação clandestina: "Inclusive não foi uma tubulação clandestina apenas, mas um canal inteiro de rejeito no Rio Pará e Rio Murucupi. Nos últimos anos, até aquela época, a empresa já tinha aumentado em mais de cinco vezes a sua produção, mas não a capacidade de tratar os efluentes. Então esses canais faziam o despejo de todo esse resíduo direto no meio ambiente", afirma.

 

TAC vem sendo “enrolado”, diz a comunidade e o MP de Barcarena

A nota da Hydro aborda um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado de forma "voluntária", segundo a empresa, com o Ministério Público e outras autoridades, ainda em setembro de 2018. Segundo a Hydro, o documento foi feito “a fim de realizar estudos abrangentes conduzidos por peritos especializados. Os trabalhos em andamento estão sendo monitorados pelas comunidades de Barcarena, que incluem membros da prefeitura de Barcarena, representantes do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Química do Município de Barcarena (Sindquímicos) e representantes da sociedade civil distribuídos em dez representações. O site www.tachydro.com.br fornece informações sobre atividades relacionadas ao TAC e permite seu acompanhamento por toda a sociedade”.

Para Maria do Socorro Costa e Silva, presidente da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), e moradora da comunidade quilombola Burajuba, esse monitoramento por parte dos moradores não existe, pois não há transparência no processo. Ela também não reconhece os nomes de pessoas citadas no site mencionado pela Hydro. Para Socorro Burajuba, como também é conhecida, os moradores atestam que não houve cumprimento das medidas previstas no TAC para reparar os danos socioambientais causados pela empresa.

image Líder de comunidade quilombola descreve as mazelas com que a população é obrigada a conviver. (Igor Mota / O Liberal)

“Estamos tomando água com veneno de química que a Hydro bombeia no rio”, diz quilombola

"O TAC não foi executado. Nós nunca fomos atendidos por médico toxicologista. Nós nunca tivemos remédio para tratar e tirar esse metal de dentro do nosso sangue. Eles disseram que iam dar água pra gente, mas eles só deram para algumas pessoas, seis garrafões por semana. Mas, tratar a nossa água, eles não trataram. É preciso dizer que o problema não é só de 2018, mas todos os dias, desde antes de 2018, como até a presente data, ainda estamos tomando água com veneno de química que a Hydro bombeia no rio. Ela usa a nossa água, mas devolve água contaminada para o rio - isso é claro. As nossas instituições, IEC e UFPA, já fizeram os laudos. Nós não temos piolho na cabeça, nem verme. Nós temos metais no sangue e cada dia morremos um pouco!", desabafa a liderança.

Socorro aponta que os reflexos do descaso com a população tem acarretado uma série de problemas em saúde que só se agravam com o passar dos anos. Ela destaca recorrentes nascimentos de crianças com má formação, perda dentária, perda de memória, problemas renais, falta de ar e muito cansaço como sintomas comuns na maioria dos moradores. Muitos deles chegaram a fazer exames por meio do IEC, à época do transbordamento, mas não chegaram a ter acesso a nenhum tratamento - que era previsto no TAC e deveria ter sido promovido pela Hydro.

"As pessoas não têm atendimento com médico toxicologista, que deveria ter tido, tanto para aqueles que já fizeram algum exame quanto para aqueles que ainda faltam fazer. Tivemos pessoas que tiveram que ir para Belém pedir ajuda para se tratar, quando poderíamos ter o tratamento em nossa comunidade. Nós estamos morrendo. O Brasil vai ter uma perda irreparável com a nossa perda. Será que o quilombola vai ter uma futura geração?", indaga Socorro.

image Liderança se preocupa com o futuro dos quilombolas contaminados pela água poluída pelos rejeitos industriais da Hydro. (Igor Mota / O Liberal)

“Quase nada do TAC foi cumprido”, diz MP de Barcarena

Para o Ministério Público de Barcarena, é fato que a mineradora não cumpriu o TAC como deveria. O promotor de Justiça do município, Renato Belini Costa, confirma que tem monitorado o cumprimento do TAC e atesta que quase nada foi feito pela empresa:

"Deixaram de cumprir basicamente todas as cláusulas que dependiam de alguma auditoria. Quase todas as cláusulas de atendimento à comunidade não foram cumpridas. Também não fizeram nada sobre segurança e estabilidade dos depósitos de resíduos sólidos, previsto na cláusula terceira. Parece que eles apenas contrataram uma empresa este ano para começar os estudos para, num futuro distante, cumprir essa parte. Nada foi feito também a respeito de sistemas alternativos de tratamento e distribuição coletiva de água potável, de sistemas de avaliação das águas do rio, de avaliação de balneabilidade, de avaliação da qualidade do ar. Enfim, quase nada foi cumprido e todos os prazos foram estourados", avalia.

Entre as determinações da cláusula segunda, que trata do atendimento à comunidade, apenas uma foi cumprida "em parte", destaca o promotor: "Foi a 2.1.2, que definiu o pagamento de um salário mínimo às famílias atingidas por um período de 12 meses. Segundo a empresa, o pagamento foi feito em quatro etapas desde 2018, através de um cadastro que eles fizeram e as pessoas ganharam um auxílio alimentação. Uma vez por ano eles estavam ganhando um valor e o último pagamento foi em março deste ano", conta o promotor.

Entretanto, segundo a dona de casa e moradora da comunidade Burajuba, Damiana Oliveira dos Santos Silva, esse pagamento não foi referente a um salário mínimo, não durou o período estipulado e não contemplou todas as famílias da comunidade. Para algumas, que chegaram a ser contactadas pela Hydro, elas ainda tiveram que escolher entre receber o benefício financeiro, em forma de auxílio alimentação, ou receber água mineral, própria para consumo:

"Teve o TAC que eles fizeram né? Mas algumas pessoas pegaram, outras não. E quem pegava o auxílio, não pegava água, quem pegava água, não pegava o auxílio, que eles deram por três ou cinco meses para algumas pessoas, mas nem existe mais esse recurso. Aqui em casa a gente não teve auxílio nenhum, nem de alimentação, nem de água. A gente compra a água para beber quando dá, quando não dá é a  água contaminada mesmo. A gente tinha poço, mas teve que parar de usar, porque contaminou tudo", conta Damiana.

O promotor de Justiça de Barcarena justifica a situação dizendo, apenas, que não tem condições de fazer mais pela comunidade: "pelo MPPA, eu faço o possível para acompanhar o TAC e fiscalizar, mas é muito difícil porque não tenho a estrutura adequada para estar lá, fazendo vistorias. O MP de Barcarena não tem capacidade estrutural para fiscalizar e acompanhar o TAC a contento, pois não existe uma promotoria especializada para isso", disse.

 

Riscos do chumbo e do níquel

Elementos como chumbo e níquel podem causar uma série de anomalias no organismo humano. O chumbo afeta severamente as funções cerebrais, sangue, rins, sistema digestivo e reprodutor, inclusive com possibilidade de produzir mutações genéticas em descendentes. 

O níquel, por sua vez, provoca hipersensibilidade na cavidade oral, alteração e morte de células, e dermatite de contato, além de ter significativo potencial para induzir mutações genéticas e causar câncer.

FONTE: Agência Senado e Unievangélica

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