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Lei das Cotas levou mais de 70 mil estudantes ao ensino superior no Pará em 10 anos

Em agosto de 2022, quando a lei completar 10 anos, haverá uma revisão, algo que preocupa estudantes e movimentos sociais em prol da educação

Dilson Pimentel
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Mais de 70 mil alunos ingressaram nas quatro principais universidades públicas do Pará por meio do sistema de cotas. Só na UFPA, e desde 2010, foram quase 50 mil. Na Universidade Federal Rural do Pará (Ufra), em torno de 12 mil. Na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), 5.408 e, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), 2.852. Mas esse número (70 mil) é maior, porque os dados mais recentes ainda não foram atualizados.

A Lei de Cotas, que completará dez anos em agosto deste ano, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

Um dos nomes mais importantes na luta antirracista e pelos direitos da população negra, Zélia Amador de Deus, professora emérita da Universidade Federal do Pará (UFPA), disse que a política pública de cotas foi uma das que mais deu certo no Brasil. O sistema de cotas, porém, já existia em algumas universidades antes da promulgação da lei, em 2012. Um artigo do texto prevê que, após dez anos de vigência, a lei passe por uma revisão.  “Mas revisão não significa extinção”, afirmou.  A revisão deveria ser uma iniciativa do Executivo, mas com o acompanhamento dos movimentos sociais negros. “O executivo não teve essa iniciativa e não foi feita a revisão”, disse.

 

O racismo que causa as desigualdades na área da educação permanece firme, diz professora Zélia

Mas, segundo a professora Zélia, alguns entendimentos estão dando uma conotação de extinção para essa revisão. “O movimento negro está afirmando que revisão não é extinção. E está lutando para que o projeto permaneça. O racismo que causa as desigualdades na área da educação permanece firme. E, enquanto ele permanecer, a proposta de combate a ele na área da educação tem que permanecer”, afirmou.

A política de cotas permitiu que haja uma universidade mais plural. “Com a presença maior de pessoas negras. Uma universidade em que as pessoas negras estão presentes em todos os cursos, inclusive naqueles que a sociedade considera de grande prestígio - Medicina, Direito, Engenharia, Psicologia”, disse Zélia. No entanto, afirmou, é preciso que o estado brasileiro tenha políticas de combate ao racismo e à discriminação racial em todas as áreas da vida:

“Não só na educação, mas vá para além da educação: saúde, emprego, renda, história, memória. A sociedade brasileira tem que entender que, enquanto houver racismo, não haverá democracia. E, se a gente quer que essa sociedade seja de fato democrática e justa, a gente tem que ter que ter políticas públicas antirracista para começar a construir essa sociedade”, diz Zélia Amador

 

Para o processo seletivo de 2023, Uepa terá cotas étnico-raciais

Pró-reitor de graduação da Universidade do Estado do Pará, Ednalvo Campos lembrou que a lei foi publicada em agosto de 2012. E, a partir daí, a Uepa começou a se organizar para seguir a lei. Em 2012, a Universidade começou o processo de reserva de vagas para os alunos oriundos da escola pública. Inicialmente, foram 30% de reserva de vagas. “E, no processo seletivo de 2016, consolidou 50% de reserva de vagas para alunos da escola pública e 50% para o geral”, disse.

Em dezembro de 2021, foi aprovada uma nova resolução no Conselho Universitário, adotando as cotas étnico-raciais para o processo seletivo de 2023. “Então, no ano que vem, desses 50% de vagas que já eram destinadas para os alunos oriundos da escola pública, 30% delas serão destinadas aos alunos que se autodeclararem pretos ou indígenas. Não estamos mexendo nas vagas da ampla concorrência”, afirmou.

Ainda segundo Ednalvo Campos, é mais um avanço na consolidação da política de cotas e de democratização do acesso à instituição superior. “Nós avançamos muito desde 2012 quando começamos a discutir a lei até chegar naqueles 50% das vagas para os alunos da escola pública. No entanto, o que se observa é que não havia uma democratização, principalmente nos cursos de saúde (Fisioterapia, Medicina, Biomedicina), os mais concorridos. A gente não vê uma presença muito grande de alunos negros, indígenas”, disse.

“Nesse sentido é que a gente avança, implementando as cotas étnico-raciais a partir do ano que vem”, afirmou. Ele avalia os quase 10 anos da lei como algo extremamente positivo, “no sentido da democratização do acesso à universidade de alunos oriundos da escola pública. Mesmo nos cursos mais concorridos, como Medicina, nós ampliamos a entrada de alunos da escola pública. Isso foi um avanço extremamente grande: a democratização do acesso à universidade”, disse.

image A Uepa, em 2023, terá pela primeira vez cotas étnico-raciais, somando com as cotas para escola pública, num total de 50% das vagas (Cristino Martins / O Liberal / Arquivo)

De família de baixa renda, Leandro ingressou na Ufra pelo sistema de cotas

Leandro Souza é o primeiro dos nove irmãos de uma família de baixa renda a ingressar em uma universidade. E isso foi possível graças à Lei de Cotas. Ele é engenheiro agrônomo formado na Ufra. E, atualmente, trabalha na Secretaria Municipal de Produção Rural de Parauepebas. Leandro sempre estudou em escolas públicas.  Os pais dele não concluíram os estudos. "Meu pai sempre trabalhou para botar o pão de cada dia em casa ", contou. Nas horas vagas, Leandro trabalhava com o pai, que é vendedor ambulante.

"Ele falava que levava a gente para trabalhar porque não tinha dinheiro para comprar os nossos itens pessoais - roupa, brinquedo, perfume. E ele sempre incentivou todos os filhos a estudar. Mostrava, na prática, que estudar era o melhor caminho. Estudar para trabalhar em algo que a gente gostasse e nos desse prazer e a gente não precisasse ser ‘burro de carga’. Ou seja, trabalhar no trabalho muito pesado e ganhando pouco", disse Leandro, lembrando do pai.

Leandro ingressou na Ufra em 2013. Entrou pela cota social (família de baixa renda). "Foi muito gratificante. E, ao mesmo tempo, desafiador", disse. É que os pais não tinham condições de financiar seus estudos. Ele morava em Abaetetuba, mas se inscreveu para o curso de Agronomia da Ufra em Parauepebas.. "Fiquei com medo de não concluir o curso por causa das dificuldades financeiras. Foi um turbilhão de emoções", contou.

Em Parauapebas, dois primos o acolheram. Ele viajou para essa cidade com o dinheiro de uma "vaquinha": o dinheiro pagou a passagem e daria para ele se manter por, no máximo, um mês e meio. "Fui na cara e na coragem", contou. Ele estudava e trabalhava, à noite, como garçom. Apesar das dificuldades, concluiu o curso no tempo certo - cinco anos.

Leandro diz que a lei de cotas é importante para o desenvolvimento do país. "Somente através da educação é que teremos um país mais desenvolvido. E, para que isso aconteça, precisa que mais pessoas consigam estudar, entrar em universidade pública, ocupar espaço da educação. Nós, brasileiros, precisamos entender que as cotas são extremamente importantes para que todos tenham acesso à educação ", afirmou.

 

"Minha vida mudou 100%", diz advogada formada e agora doutoranda

Priscila Campelo Alves, de 34 anos, tem um carinho especial pela lei de cotas. Foi graças a essa política pública que ela entrou para o ensino superior. No início foi para o curso de História, da UFPA. Mas o sonho mesmo era Direito, no qual ela ingressou através das cotas, via ProUni, na Unama. Se graduou e já concluiu o mestrado na Espanha. Atualmente, está fazendo doutorado em Migrações e Direitos Humanos numa universidade europeia. Hoje, vê as cotas como uma política pública essencial para garantir diversidade no ambiente acadêmico.

"Minha vida mudou 100%. Venho de uma família muito pobre e periférica. Ainda não estou onde quero, mas estou onde não imaginava, cursando doutorado numa universidade europeia. Se não fosse a lei das cotas, não estaria nem dando este testemunho. Acredito que só através do ensino superior e de políticas inclusivas positivas poderemos ter mais diversidade nos espaços de poder e decisão. Esses espaços, assim como as universidades, antes eram ocupadas majoritariamente por pessoas brancas e com acesso a boas escolas", diz Priscila.

As cotas, diz a advogada, não são um demérito ou pré-julgamento de que tal pessoa não tenha capacidade. São apenas uma forma de equiparar as condições de ingresso. Priscila lembra que passou dificuldades na idade escolar a ponto de não ter o dinheiro para o ônibus para chegar à escola. Ela estudava na escola estadual Ulysses Guimarães. Nos nove anos de ensino que passou lá, enfrentou paralisações, greves e falta de estrutura. Ela analisa que esses contextos alijaram pessoas negras, pobres, com deficiência e povos tradicionais.

"Para algumas pessoas, a dificuldade é até a alimentação. Como que alguém sem alimentação adequada em casa vai conseguir estudar direito? Ou vivendo em famílias desestruturadas, em contextos de violência e ainda estudar em escolas sem equipamentos modernos, os melhores professores... então, para mim, essa é uma discussão rasa. E há estudos que mostram que dentro das universidades, esses alunos cotistas possuem desempenho e performance muito acima da média. Só precisavam de uma oportunidade. As cotas não são uma esmola. São reparação histórica", conclui Priscila.

image Atualmente doutoranda, Priscila conta que a lei das cotas mudou completamente a vida dela e iguala as condições de ingresso no ensino superior (Igor Mota / O Liberal)

Miquelle é a primeira da família a cursar e concluir um curso de graduação e, agora, a pós-graduação

Mulher negra, Miquelle Silva ingressou na Ufra Tomé-Açu pela cota renda. É a primeira da família a cursar e concluir um curso de graduação e, agora, a pós-graduação. Filha de um casal de agricultores, é formada em Letras e, agora, pós graduada em Linguagem, Cultura e Formação Docente (especialização), que é o primeiro da área de Letras na Ufra e o primeiro de um campus do interior.

Por morar na área rural da cidade, o ensino na comunidade só abrangia o fundamental primário (hoje entendido como 5° ano/4ª série à época) e isso na modalidade multisseriada, que acabava fazendo com que alunos de 7-8 anos ocupasse a mesma sala que alunos de 17 ou mais. “Após a conclusão dessa etapa escolar, foi preciso dirigir-me à cidade, através de ônibus escolar, muitas vezes impróprios para o deslocamento de estudantes (e que, por muitas vezes, acabavam quebrando no meio do trajeto) distante aproximadamente 25 km da minha residência”, contou. Era uma viagem longa e cansativa: no verão, por causa do calor, poeira e péssimas condições de transporte; no inverno, devido às intensas chuvas, estradas deterioradas e até mesmo intrafegáveis, o que ocasionava muitas faltas nesse período chuvoso.

“Outro fator, para além da sala de aula, foi o não acesso à energia elétrica (que chegou apenas em 2014), o que acabava nos deixando fora das notícias e acesso à informações e melhores condições de estudos”, lembrou.

 

“Não estamos nas mesmas águas, tampouco em barcos similares”, diz cotista

Para estar no espaço que hoje ocupa, Miquelle disse que, além das cotas, outras políticas públicas foram essenciais. “Uma delas foi o Bolsa Família, que permitiu a minha permanência e a de todas as minhas irmãs e irmão no ensino básico. É que, sendo uma família de agricultores rurais, a renda familiar era baseada nos produtos da agricultura, o que não excedia sequer a um salário mínimo”, contou. “Me tornei a primeira da minha família a adentrar e concluir um curso de graduação e, recentemente, uma pós-graduação, em uma Universidade Pública, realizando um sonho que não era apenas meu”, disse.

Miquelle afirmou que, mais do que uma lei, as cotas são um instrumento de tentativa de equiparação ao acesso à educação de qualidade, pública e gratuita. “Mediante as enormes desigualdades educacionais, as oportunidades acabam sendo distintas para as diferentes classes sociais, sendo as cotas uma proposta de fazer justiça aos direitos educacionais, já que outros direitos acabam sendo negligenciados, por parte dos órgãos responsáveis”, disse.

Segundo ela, equiparar o acesso ao ensino superior ainda é desafio que se faz presente na sociedade, inclusive pela mentalidade de se pensar as cotas como uma ocupação indevida das cadeiras nas Universidades, um privilégio. “Mas esquecem que, enquanto uma pequena parcela ocupa diariamente as cadeiras escolares, com condições perfeitas de ensino, possibilidade de aprofundamento nos conteúdos, por vezes até mesmo um reforço escolar, a outra parte precisa enfrentar diversos obstáculos para conseguir o mínimo, no ensino básico, o que acaba se consolidando como uma ‘disputa’ desigual, pois não se tem instrumentos igualitários para a mesma luta”, afirmou.

Miquelle acrescentou: “Muito se fala de ‘estarmos no mesmo barco’ e até mesmo ‘estarmos na mesma água, mas em barcos distintos’. Entendo que há ainda uma problemática maior: não estamos nas mesmas águas, tampouco em barcos similares. Portanto, as cotas são o que temos de mais próximo para a equiparação dos barcos, já que navegamos em águas distintas”.

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