Retorno do Talibã ao poder no Afeganistão reacende alerta contra islamofobia no Pará

Muçulmanas paraenses refletem sobre situação no Afeganistão e os direitos das mulheres no islã

Eduardo Laviano

Quando se converteu ao islã em 2007, a professora de história Heloísa Paes estava recém-saída de um um aprofundamento nos estudos antropológicos sobre mulheres muçulmanas pelo mundo, por conta de um mestrado.

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"Acabei conhecendo pessoas muçulmanas da Síria, Líbano, Egito. Tudo na era do Orkut e das salas de bate papo. Até que recebi um convite de uma família egípcia para conhecer um país muçulmano. Eu duvidava muito de tudo o que eles me diziam, mas também de tudo o que a mídia dizia", conta.

Após a shahadah, o batismo no islã, Heloísa casou-se com o muçulmano e começou a levar uma vida de idas e voltas entre Belém e Cairo. O choque cultural foi grande.

"Se eu vi uma criança de rua, foi muito. Bicicletas dormindo fora de casa, assim como roupas. Ninguém roubava. Muito respeito e amor para com as gerações mais velhas. Me surpreendi positivamente", lembra. 

Uma das principais preocupações dela, o direito das mulheres na região, foi aos poucos mitigada. Ela lembra que chegou com uma visão de que as mulheres eram cidadãs de segunda classe nos países islâmicos.

"Descobri que era justamente ao contrário. Desde a criação do islã no século VII,  a mulher islâmica tem direito ao divórcio e ao voto. No Brasil foi na década de 70 que veio o divórcio. O voto, em 1934. O mesmo vale para direito ao patrimônio e a herança. Está no capítulo quatro do alcorão", destaca ela, reforçando a importância de se buscar conhecimento.

Heloísa acredita porém que a visão positiva que ela teve dos países islâmicos sempre é colocada em segundo plano diante de experiências negativas, que não representam a totalidade do islã.

Ela se lembra exatamente dos atentados terroristas de 2001, executados pela Al-Qaeda.

Como trabalhava em um colégio de manhã e em outro de tarde, ela parou diante de uma TV e acompanhou a edição de colecionador do Jornal Hoje, com Ana Paula Padrão e Carlos Nascimento narrando tudo ao vivo, minuto a minuto, detalhe a detalhe. 

Não desligou a TV em nenhum momento enquanto se preocupava também com os parentes que viviam nos Estados Unidos, de quem só teve notícias no dia seguinte. O evento a marcou.

"Logo em seguida a gente vê o governo Bush [filho] com toda aquela propaganda contra o islã e o choque de civilizações proposto. O islã foi demonizado. A mídia internacional e brasileira, por tabela, começou a replicar tudo o que era publicado na Europa. Sempre com aquela dicotomia de homens terroristas e mulheres submissas. Essas ideias eram veiculadas de maneira muito forte no início do século", diz ela, lamentando que até hoje o islã não tenha se recuperado destas imagens.

Heloísa lamenta também os registros de violação de direitos humanos do primeiro governo Talibã, que durou entre 1996 a 2001. A lei do grupo no Afeganistão ia de apedrejamentos até a proibição de mulheres frequentarem escolas. 

Mesmo assim, ela cultiva esperança de que o grupo honre as palavras que proferiu ao assumir o poder, quando prometeu anistia irrestrita e liberdade de expressão, além de direitos garantidos para as mulheres.

"Acredito que eles querem que o país receba investimentos, querem fazer comércio e vão utilizar estratégias para fazer parte do cenário globalizado. Não dá mais para ficar isolado no próprio mundo deles como foi da primeira vez", avalia.

Heloísa questiona a propriedade com a qual os analistas da internet dissertam sobre o tema e também acredita que é muito cedo para se tirar conclusões. Crítica da ocupação estadunidense no Afeganistão, ela afirma que só o tempo dirá como os afegãos irão lidar com este novo momento.

"Justificaram a invasão dos EUA por conta do acolhimento da Al Qaeda pelo Talibã, mas o Bin Laden já não foi morto há muito tempo? Por que continuaram lá? Evito falar sobre o tema pois não estou no Afeganistão, mas, como será que o grupo conseguiu um apoio tão rápido e sem resistência, sem guerra? Se perguntam como eles conseguiram? Se perguntam o que querem os afegãos? Será que isso só foi possível com apoio dos afegãos? Ou será que só ouvem os que trabalharam para os americanos?", reflete.

Desde que se tornou muçulmana, Heloísa já foi obrigada a lidar com diversas ofensas e demonstrações de preconceito, desde ouvir que era 'mulher bomba' até uma tentativa de ter o hijab, lenço que cobre o cabelo, arrancado. O momento, para ela, pode gerar um recrudescimento destas atitudes.

"Isso vai ter uma repercussão negativa para a comunidade muçulmana no Brasil, claro, já está tendo, por conta do histórico do Talibã. Mas muita gente tem pena do Afeganistão e defende ditadura aqui, não olha os números do feminicídio aqui, nem da violência institucional contra jovens, negros, e nem se preocupam com as mortes causadas pelas guerras que os EUA criam", diz. 

A professora Asmaa AbduAllah Hendawy também teme que a islamofobia seja acentuada durante este processo. Ela lembra que que é muito comum que parte das pessoas que não conhecem a religião apenas reproduzam discursos que assistem de maneira superficial na mídia, o que pode ser perigoso já que o islã não é um movimento homogêneo em todas as partes do mundo, possuindo diversas nuances e facetas.

"É lamentável, que, na atual conjuntura mundial, grupos extremistas ainda encontrem espaço para assumir o controle de um país e nele impor as suas interpretações extremistas - e ainda as fundamentar no Livro Sagrado ou na Sharia. Vejo com a preocupação que a situação requer, porque muito embora os fatos estejam ocorrendo lá, todos nós muçulmanos, em qualquer lugar em que estejamos, sofremos o reflexo desse ataque à Direitos Humanos, praticado pelo Talibã", analisa ela, que é diretora acadêmica do Instituto Latino Americano de Estudos Islâmicos.

Para ela, a primeira violação de direitos humanos foi o governo imposto pelos Estados Unidos. Asmaa lembra que as nuances do islã e dos países onde a maioria religiosa é islâmica também se refletem nos direitos das mulheres em cada país, o que deve ser observado antes de incorrer a generalização. Ela ressalta que, apesar das diversas interpretações diferentes, diante do Alcorão e da Sunnah, homens e mulheres são iguais em deveres e direitos.

"Quando falamos de mulher muçulmana, dependendo de em qual país esta mulher viva, essa condição de inferioridade é muito agravada, porque dependendo de em qual país, a maior parte delas vive debaixo da hegemonia de uma mentalidade e de um sistema patriarcal, machista e cultural que instrumentaliza seu entendimento da religião para legitimar as situações de dominação, de violência e de exclusão feminina", afirma.

Diante de um noticiário tão pesado nos últimos dias, com notícias tão tristes sobre a situação de diversos irmãs muçulmanos no Afeganistão, Asmaa encontra conforto na fé.

"Apenas faço duá (oração) para Allah, pedindo que conceda a Paz para aquela Nação, onde existe a Ummah (nação) do Profeta Muhammad".

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