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Jacopo Crivelli Visconte e a nova cara da Bienal de São Paulo

Em entrevista exclusiva, o curador principal da mostra fala sobre a representatividade amazônica, negra e indígena

Carmila Martins - Especial para O Liberal
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Com o tema “Faz Escuro Mas Eu Canto”, uma das maiores mostras de arte contemporânea do mundo segue aberta em São Paulo e neste ano com uma participação maior de artistas amazônicos e de raízes afro ou indígenas. Em entrevista exclusiva para O Liberal, o curador principal da mostra: Jacopo Crivelli Visconti, fala sobre os 70 anos da maior Bienal de arte do hemisfério sul e do diálogo travado entre artistas históricos e talentos mais próximos da realidade atual do país.

Nascido em Nápoles, Itália, em 1973, Crivelli Visconti é crítico e curador independente. Radicado em São Paulo, já atuou como membro da equipe da Fundação Bienal de São Paulo (2001-2009), e foi curador da participação oficial brasileira na 52ª Biennale di Venezia (2007).

Na busca por uma linguagem criada para o encontro de obras produzidas em diferentes lugares e momentos, a mostra deste ano destaca algumas obras abordando diversos contextos, como as imagens da arte diáspora negra do advogado Frederick Douglas — pai do ativismo negro — que ingressou na política do governo de Abraham Lincoln, assim como um conjunto de objetos que sobreviveu aos incêndios do Museu Nacional no Rio de Janeiro e o trabalho pictórico da artista indígena Daiara Tukano (Brasília).

Entre os destaques estão obras como a de Gustavo Caboco. Aos dez anos de idade, sua mãe Lucilene, desterrada da comunidade Wapichana na terra indígena Canauanim (Roraima), influenciou o filho, por meio de gestos e histórias vivenciadas através de sua identidade indígena.

Em 2001 sua mãe, pela primeira vez, retornou às suas origens na companhia de seu filho, em que vivenciou as histórias de lutas de seus antepassados. A obra pluriforme e processual de Gustavo Caboco se produz justamente em sua peregrinação, ressonando as vozes do povo Wapichana. "É dessa forma que o artista costura do pessoal ao político e o cultivo da memória às possibilidades de futuro”, relata Crivelli.

Veja a entrevista com Jacopo Crivelli Visconti

Como você relaciona o tema da bienal à atualidade social brasileira e como os artistas interpretam a vida real em suas obras?

A Nossa ideia não é falar da situação que estamos vivendo, mas a partir dela. Temos uma visão consciente da gravidade do momento histórico que estamos vivendo, mas ao mesmo tempo, conseguir falar de outras coisas, seja talvez, a moção que a Bienal perpassa como um todo. Voltando ao título, “Faz Escuro”, temos a consciência deste escuro e quanto sombrio estão os tempos, mas também defendemos a possibilidade de “cantar”, de falar de outras coisas. No entanto, dizer como queremos a arte, ou, como hipoteticamente concertar o tempo que estamos vivendo. Tentamos mostrar a diversidade de posições e visões do mundo que existem neste momento, que é, muito mais polarizado e que estende-se a uma visão maniqueísta das coisas. — O bem ou o mal, o claro ou o escuro —. Defendemos que há uma infinidade de possibilidades para entender o mundo, e neste contexto de adversidade a arte indígena é muito potente. Quando você está tentando se aproximar de outras visões do mundo; de entender como outras pessoas se relacionam com a natureza; o ecossistema, a arte indígena tem ferramentas indispensáveis.

Porque a arte indígena só está sendo mais falada agora? Em 2019, por exemplo, foi a primeira vez que a Pinacoteca do Estado de São Paulo incorporou em seu acervo obras indígenas brasileiras.

É uma questão em falta que vai além da presença da arte indígena. As lutas dos povos vêm de vários séculos mas nos últimos meses, pelas condições ainda mais graves devido a pandemia, tornou-se um alvo fundamental a ser falado, discutido e defendido como assunto urgente na sociedade como um todo. Vem da consciência de que a sociedade tem que começar a olhar para os indígenas e tentar corrigir injustiças e violências históricas absurdas que ainda permanecem. Temos, por exemplo, uma exposição coletiva curada pelo Jaider Isabell no MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo), assim como, uma exposição prevista no MASP (Museu de arte de São Paulo Assis Chateaubriand), que foi adiada no contexto da pandemia, mas que deve acontecer ainda, olhando para a arte indígena contemporânea. No nosso caso - o esforço foi um pouco em outro sentido, foi de mostrar quanto os indígenas podem e devem ainda ser vistos e conhecidos pelo grande público, mas também precisamos começar a posicioná-los com obras de artistas contemporâneos de outros lugares, que são produzidas de formas diferentes. Os "cantos de Chacali” que são cantos rituais com um valor simbólico, permitem ler outros trabalhos produzidos em diferentes contextos, com visões de mundos diferentes e de uma maneira totalmente distinta, muito mais rica que poderiam ser, se não tivéssemos estes elementos da cultura indígena reverberando tudo de forma única.

Você acha que a arte indígena e a Amazônia estão em pauta, também, por conta do aquecimento global?

Sim, acho que não é só o aquecimento global, é uma postura, uma relação com o sistema de uma maneira geral, que a gente, digamos, brancos, ocidentais e capitalistas devemos entender que está cada vez mais claro que é absolutamente errado e insustentável a longo prazo. Espero que, cada vez mais gente perceba que é fundamental , começar ou voltarmos, a olhar, para a forma como outras culturas se relacionam com seus sistemas, que conseguem interagir de forma sustentável, e assim, aprender com isso. A produção artística indígena contemporânea tem um conjunto muito forte de valores e de sistemas ecológicos, indissociáveis a produção artística em si e desta visão de mundo que eles trazem, que certamente é ligada a tudo isso e é absolutamente saudável. Acredito que a Bienal é um lugar que o grande público entra em contato com visões de mundos distintos e, a longo prazo, é muito importante para a construção de uma sociedade mais justa, mais respeitosa e, também, mais integrada com o ambiente que vivemos. Portanto, ouvir estas vozes é fundamental e acho que há um interesse ou uma atenção, talvez, redobrada para isso, por conta, das transformações que estamos causando.

Você acha que o Brasil é um dos principais núcleos da arte na América Latina?

Eu acho que o Brasil tem, historicamente, uma produção muito rica porque é um país muito grande, portanto, tem uma grande diversidade de produção, mas quando você olha para outros países que têm áreas na Amazônia, por exemplo, você encontra uma produção instigante. Temos na Bienal uma forte linhagem cultural dos Andes, que é extraordinária, por exemplo, em que outros artistas trazem a maneira de se relacionar com uma ideia de América Latina que, talvez, não tenhamos tão forte no Brasil quanto nos países de língua hispânica. Em um ponto de vista geral e macro, o Brasil pode ter uma produção, pelo menos, mais rica mas, quando você olha para as obras dos artistas de forma específica, é difícil dizer que um artista brasileiro é mais ou menos interessante do que um artista colombiano, equatoriano ou peruano, é muito difícil generalizar.

Atualmente, fala-se muito da arte indígena e da arte afrodescendente, assim como a africana. Achas que hoje esses são os principais pilares quando fala-se de arte?

São lugares que, na verdade, sempre tiveram produções muito ricas, mas para as quais a gente olhou menos, então, certamente, são locais que neste momento estão muito em pauta, pois há, finalmente, uma percepção de quão rica e instigante é a produção artística que sobrevive neste contesto. Temos que abolir esta ideia de pensar qual lugar é o mais importante e menos importante; é a junção de todos estes lugares distintos que faz com que tenhamos uma Bienal única com uma produção artística e de forma distinta em geral. Eduardo Glissant - que é uma das referências para a gente - fala perante todas as línguas do mundo, dizendo que não existe uma língua mais importante do que outra, e se você não fala uma língua, ela morre, ou seja, é a sua língua que fica mais pobre e é isso que defendemos com esta Bienal. Não tem um artista mais importante e menos importante, cujas obras valham mais que outras, temos que aliás, tentar superar essas concepções, o que não é fácil.

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