O.J.C. MORAIS

OCÉLIO DE JESÚS C. MORAIS

PhD em Direitos Humanos e Democracia pelo IGC da Faculdade de Direito Coimbra; Doutor em Direito Social (PUC/SP) e Mestre em Direito Constitucional (UFPA); Idealizador-fundador e 1º presidente da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (Cad. 01); Acadêmico perpétuo da Academia Paraense de Letras (Cad. 08), da Academia Paraense de Letras Jurídicas (Cad. 18) e da Academia Paranaense de Jornalismo (Cad. 29) e escritor amazônida. Contato com o escritor pelo Instagram: @oceliojcmorais.escritor

Ética do princípio não é a ética da ideologia... 'preciso de uma pra viver'?

Pensata de Océlio de Morais, juiz e escritor amazônida desta semana, faz uma reflexão sobre ideologia e princípio; leia

Océlio de Morais

A letra da música de um cantor brasileiro, que fez sucesso na década de 1980, tem o seguinte refrão: “(...) Eh, meus inimigos estão no poder. Ideologia, Eu quero uma pra viver.  Ideologia. Eu quero uma pra viver”. A  musicalidade, que leva muita gente a cantar, também é a mesma que massifica a ideia de que a ideologia é preponderante em relação aos princípios humanos. 

Esta pensata objetiva mostrar que a ética do princípio não é a ética da ideologia, assim como são diferentes suas finalidades e, ainda, objetiva-se chamar a atenção para uma característica marcante da ideologia: a relativização dos princípios e dos valores  humanos. 

Então, para demonstrar as diferenças entre princípio e ideologia, começo com este exemplo . 

Se alguém disser: “fulano de tal não tem escrúpulo, pois é capaz de vender a própria alma para conseguir ter e manipular o poder”, a pessoa estará se referindo a alguém sem essência moral ou sem caráter virtuoso.  

No caso, “vender” a própria alma significa desqualificar  a própria honra e  a dignidade. Então, o “fulano de tal” será aquele que não possui escrúpulo ou alguém que não tem princípios éticos-morais.

Mas, se alguém disser: “ele é esquerdista, ela é direitista ou, ainda, ele é de centro-esquerda e ela é de centro-direita”, estará se referindo à ideia geral que designa a opção por uma ideologia política.

Dou outro exemplo: quando compara-se a sociedade humana com a sociedade das formigas, iremos identificar um princípio organizativo, embora sejam distintos.

A sociedade humana, porque tem a capacidade das escolhas pelo discernimento racional da inteligência, tem por princípio filosófico (ou essencialista) a busca da felicidade. Por isso, não se satisfaz apenas com o aspecto reprodutivo. Através das escolhas, os indivíduos procuram a felicidade  como condição à realização existencial e espiritual.  Esse princípio move a existência humana. 

Por outro lado, quando se observa um ninho de formigas  – esses animaizinhos têm uma peculiar forma de se organizar para garantir a sua sobrevivência alimentar e reprodutiva  –  será possível identificar que a sua natural estrutura organizacional se assemelha à ideia de casta:   a formiga rainha (a rainha, a maior dentre as demais, é a que foi fecundada), o macho e as formigas operária. 

Na sociedade humana, por princípio de maternidade e de paternidade, os pais cuidam dos filhos, sendo responsáveis, inclusive, pela sua formação educacional ético e moral. 

O princípio humanista é alimentado pelo sentimento do amor. O princípio da família  humana – ao  procriar e cuidar – representa a garantia da perpetuidade da espécie humana. Esse é um princípio ético do ser humano.  

Na sociedade das formigas, por princípio natural da espécie, os machos de formigueiros distintos  –  depois da fecundação das rainhas – são rejeitados pelo formigueiro de origem e logo morrem, porque não são capazes de viver sozinhos. 

As rainhas, porque põem os ovos que garantem a renovação da espécie –  mandam na sociedade das formigas. O princípio que move a sociedade das formigas também é o da manutenção da espécie, mas aqui por instinto natural. 

Princípio reprodutivo, na sociedade humana e na sociedade das formigas, designa a base ou fundamento das respectivas sociedades.

Mas não possuem o mesmo significado. Basta lembrar que a sociedade humana é distinguida pela inteligência que lhe dá as oportunidades das escolhas. Portanto, pelas ideais pode criar, fomentar e disseminar ideologias aos seus respectivos modelos governamentais. E pode criar, a partir disso, princípios de governança. 

A sociedade das formigas, pelo instituto natural, se organiza na casta (fêmea, macho e operárias) como modo de reprodução e sobrevivência, mas não cria e nem dissemina ideologias, porque, logicamente,  seu instinto  é apenas naturalmente reprodutivo. Na sociedade humana é inerente o senso da justiça, sendo essa a ética do seu princípio, a partir dos bons valores. 

O exemplo desses dois modelos de sociedades é suficiente para demonstrar que ideologia e princípio são diferentes, embora usualmente sejam massificadamente  difundidos como coisa  única ou sentido único. 

Na sociedade humana, o princípio pode ser deslocado da sua finalidade primordial devido aos problemas criados pelas ideologias, caso em que  as relações se tornam mais complexas. A ética da ideologia é a manipulação das ideias, a massificação de um pensamento  único e impositivo para fortalecer um núcleo  de poder, fato que impõe uma extrema  pressão ideológica em face das pessoas que divergem daquela ideologia.  

Portanto, ideologia e princípio são diferentes e ganham sentidos próprios conforme os modelos de sociedade (avançadas ou não, livres ou não, democráticas ou não). Por exemplo, corriqueiramente ouvem-se narrativas que se referem à ideologia democrática ou ditatorial; à ideologia conservadora ou progressista; à ideologia liberal, neoliberal ou comunista e às várias outras denominações ideológicas.

Na perspectiva sociológica, a ideologia é o conjunto das (possíveis) certezas pessoais de um indivíduo, de um grupo, de um partido político ou de um Estado.  O conjunto das ideias (sobre fé e política, sobre democracia e comunismo, sobre cultura e tradição, sobre família, por exemplo) define as  respectivas características dos que comungam das mesmas ideias.  

Num sentido político – e esse é  relativo ao conceito do materialismo histórico de Karl Marx – a ideologia  é um instrumento de dominação de uma classe (a burguesa) sobre a  outra (a do proletarioado)  com o objetivo de manter sistema de dominação e de exploração da mais valia. 

Então, a ideologia, enquanto sistema de dominação cultural, pode manipular o princípio,  manipulação que não ocorre do princípio em relação à ideologia.  A ideologia divide e segrega pessoas.

Princípio, em termos gerais,  é o que embasa ou fundamenta um valor humano.  O princípio, sob a perspectiva hermenêutica, é uma espécie de telos que orienta e ilumina , de modo individual ou coletivo,, também na projeção do bem comum como objetivo fundamental .

A ideologia é algo explícito ou subjacente.  Quando o Art. 1º da Constituição Federativa vigente define que “A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito”  ali designa a característica (ou ideologia) política adotada à República brasileira, diferentemente, por exemplo, da Constituição da República Popular da China (1954), que  define e adota o comunismo como a ideologia de Estado, muito embora no seu preâmbulo  conste que se trata “ditadura democrática do povo” e “sob a direção do Partido Comunista da China “

O  princípio que rege valores humanos, geralmente, é explícito. A  República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais, dentre outros princípios,  pela prevalência dos direitos humanos; (Art. 4º, II), VI - defesa da paz (Art. 4º, VI) e pela solução pacífica dos conflitos (Art. 4º, VII ).

Boaventura de Sousa Santos, em “A Gramática do Tempo” – título que sugere filosoficamente a transcendência (espaço-tempo) cultural da sociedade ocidental – por exemplo, apresenta ideias para uma nova cultura política de Estado.

A ideologia, neste caso,  seria um novo senso comum, que se oponha à cultura dominante, um modelo de massa e uma ideologia do consumo.

Norberto Bobbio, o pensador italiano que criticou o fascismo e o nazismo,  estabeleceu distinções entre a dimensão ética e as concepções  ideológicas dos governos. Destacou que as ideologias modificam ideias culturais e repercutem  nas relações entre razão, vontade, e ações das pessoas, grupos políticos e, em sentido mais amplo, da própria sociedade.  

Em algumas de suas obras – por exemplo, “Direita e Esquerda”, “O Futuro da Democracia”,  “Contra os novos despotismo” e “Qual socialismo?”  —  Bobbio também chama a atenção para a relação “poder e ideologia” e ao princípio ético que se espera dos governos:  o poder cria ou se apropria de uma ideologia para as suas finalidades políticas, mas  o princípio ético (ou a ética da responsabilidade) deve ser o núcleo  diretivo nas relações sociais e das ações do Estado. 

Sendo ou não aceitos os argumentos até então expostos, ainda posso dizer que ideologia e princípio são  distintos  quanto à finalidade, muito embora a ideologia possa criar um princípio para “chamar de seu". Ou seja, a ideologia cria princípios que sirvem para justificar o seu modus operandi e modus agendi subliminarmente.

A questão começa a ficar embaralhada (entre princípio e ideologia) quando ideologias massificantes e disruptivas, apropriando-se dos princípios, deturpam seus sentidos, empregando-os para finalidades distintas daquelas para as quais foram edificados. Nesses casos, a ideologia separa e divide as pessoas para enfraquecer seus princípios éticos. 

É possível, no entanto, que a ideologia possa ter um princípio humano relevante, assim como pode ser um instrumento de manipulação de opiniões. 

Colocado nestes termos, o princípio  como  dimensão ética será o núcleo e fundamento do indivíduo e da sociedade correspondente, cuja missão precípua é ser o guia-mestre das ideias, das escolhas e das ações em busca da felicidade, cujo princípio humano desta não admite ideologias destrutivas dos fundamentos da liberdade nos quais estão assentados o princípio da  dignidade humana .

A ideologia que relativiza a cultura, os  valores e os bons costumes de uma  sociedade é  o que  qualifico como ideologia destrutiva, isto é, aquela que diz que protege, porém, na prática não dá a menor importância ao princípio da dignidade humana, começando pelo sufocamento  ou restrição da liberdade

Vou encerrar com essa pensata com a última indagação:  será mesmo que precisamos de ideologia disruptiva para viver ou, verdadeiramente,  não podemos prescindir do princípio universal do  máximo  respeito à dignidade humana  como fundamento de  vida? 

Ao contrário da função de dominação do ideologia, a função do princípio é valorizar a pessoa humana, cuja  raiz vem do maior princípio teológico relativo à igualdade de tratamento e prevalência dos direitos humanos   – “amarás  ao próximo a ti mesmo” – outorgado por Jesus, conforme relatado no Evangelho segundo Mateus (22: 39).

Se bem pensarmos –  lá no fundo da sincera razão e  com a mais honesta sensibilidade da alma – ninguém precisa de ideologia para viver, pois o que realmente designa a natureza humana e contribui positivamente à evolução das pessoas são os valores e princípios humanistas.

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ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma: MORAIS, O.J.C.;  Instagram: oceliojcmoraisescritor

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