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Vítima de estupro não deve ser responsabilizada

Discurso pautado no machismo estrutural costuma culpar quem sofre violência sexual sofrida

Victor Furtado
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Quando casos emblemáticos de estupros ocorrem, os discursos que culpam as vítimas se proliferam. Opiniões que ganham força nas redes sociais digitais. "O que a mulher fazia sozinha na rua naquela hora?"; "Se estivesse em casa ou na igreja, isso não aconteceria!"; "Ela provocava por usar roupas curtas". Esses são alguns entre vários exemplos. Mas quem lida, direta ou indiretamente, com os criminosos e vítimas, afirma: a culpa do estupro é estuprador. A vítima, em hipótese alguma, deve ser responsabilizada pela violência sofrida.

Por conta dos recentes casos de estupros atribuídos aos "Maníacos de Marituba", uma antiga mensagem voltou a circular nas redes sociais digitais. É um suposto estudo conduzido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, com um grupo de estupradores numa cadeia. Na corrente, que tem registros de ser disseminada, pelo menos, desde 2016, sugere "medidas preventivas" para mulheres contra estupros. Um "guia antiestupro". Só que essas medidas já começam limitando a liberdade das mulheres de serem, usarem, vestirem e se comportarem como quiserem.

Entre as recomendações do suposto guia da PCRJ — cuja autoria não foi comprovada — dizem que mulheres com penteados e roupas fáceis de tirar são potenciais vítimas. Mas tudo isso não tem fundamento, como aponta a delegada Fernanda Pereira, diretora em exercício da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam). Qualquer mulher, lamenta a delegada, pode ser uma vítima. Não é uma forma de se vestir, o local frequentado ou a maquiagem usada que vão determinar que ela pode ser alvo de um estuprador. É a cultura de estupro, que resiste, historicamente, na sociedade machista.

Cultura do estupro é algo muito antigo. Mas o termo também ganhou força nas redes sociais digitais, ao passo que o feminismo trouxe discussões sobre diferentes manifestações de machismo e violência contra a mulher. De forma superficial, mas prática e acessível, a cultura do estupro é a ideia de que mulheres são objetos sexuais para homens. É a ideia de que homens podem satisfazer suas vontades sexuais por imposição ou mesmo violência. E de que mulheres dão sinais de estarem sexualmente disponíveis por comportamentos, roupas ou situações específicas.

CULTURA

Fernanda Pereira afirma que a mensagem, sobre o que faz estupradores escolherem vítimas, é um amontoado de mitos. Ela destaca ser necessário parar de naturalizar discursos machistas e culpabilização das vítimas. O que precisa ser feito, reforça, é se falar mais sobre a cultura do estupro. E muita educação, inclusive para quem foi preso por cometer o crime. Tratamento psicológico e psiquiátrico, se um distúrbio for identificado.

"As vítimas não podem ser responsabilizadas pelas violências sofridas. Nem devem se sentir culpadas. Nada justifica a violência. Não é a roupa, o penteado, o estado — se estava alcoolizada, dormindo —, os locais que frequenta. O risco que corre uma mulher tomando um drink, numa boate, é o mesmo que uma que estava orando numa igreja. Precisamos falar sobre a cultura e educação dos homens. Precisamos combater essas ideias e valores históricos", analisa a delegada.

Na avaliação da delegada, qualquer justificativa para estupros e "recomendações para prevenção" são atentados contra a liberdade sexual e coletiva de mulheres. Mensagens assim geram pânico desnecessário e impõem limites surreais a mulheres. Ela reforça que as mulheres podem usar o penteado que quiserem, vestir as roupas que quiserem, frequentarem os lugares que quiserem. O que não pode é homem achar que tem liberdade para importunar, assediar e estuprar. Isso é crime.

Por fim, a delegada destaca que ficar atento por onde se anda, sobretudo em locais muito desertos, é cuidado para qualquer pessoa. Não só mulheres. E caso uma mulher seja vítima, ela não deve ficar calada ou sentir vergonha. Precisa denunciar. Sem dados e estatísticas, é difícil transformar ou elaborar políticas públicas. Quanto aos homens, resta educação e mudança de comportamento. E tratamento, caso haja distúrbios comprovados. "Mulher não é objeto sexual", encerra Fernanda.

“Estupro não é sobre sexo. É sobre poder.”, diz advogada

Para a advogada e ativista feminista Natasha Vasconcelos — presidenta da Comissão da Mulher Advogada OAB-PA, integrante da Rede Feminista de Juristas (DeFemde) e da Rede de Pesquisa Feminismos e Política — a corrente de WhatsApp é um sintoma de uma sociedade que fica mais escandalizada com a luta feminista do que com números alarmantes de estupros pelo país (ainda que haja muita subnotificação). Ela afirma não existir padrão de vítima de estupro. E destaca: estupro não tem nada a ver apenas como sexo; tem a ver com poder, machismo e visão da mulher como um objeto sexual, que tem obrigação de atender aos desejos de homens.

Natasha ressalta que a mensagem “guia antiestupro” é baseada em discursos que culpam a mulher. Estereótipos são reforçados para dizer como uma mulher se torna “passível de ser estuprada”. No entanto, entidades como a ONG Think Olga e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 mostram que não existe padrão de vítima ou “elementos de risco”.

Pelo anuário, o número de estupros, entre 2018 e 2017, aumentou 4,1%, chegando a 180 casos, por dia, em todo o Brasil. A cada hora, 4 meninas de até 13 anos são estupradas. Mulheres nessa faixa etários são 53,8% das vítimas. As mulheres, de forma geral, são 81,8% das pessoas estupradas. O maior índice de casos ocorre dentro da casa das vítimas e as pessoas costumam ser conhecidas. Por isso há tanta subnotificação.

ENFRENTAMENTO

Legalmente, aponta Natasha Vasconcelos, houve muito protecionismo a estupradores, minimização do crime e responsabilização da mulher até muito recentemente. Só em 2002, lembra, foi retirado do Código Civil o direito do homem de anular um casamento se descobrisse que a mulher não era virgem. Só em 2005 foi revogada a lei 11.106, que extinguia a pena por estupro se o agressor se casasse com a vítima. Só em 2018, pela lei 13.718, a importunação sexual virou crime. Só em 2019 foi definitivamente proibido o casamento infantil, modalidade na qual o Brasil desponta como um destaque negativo. “Um estado que levanta a bandeira pró-família e de enfrentamento da violência contra a mulher, que não adota perspectiva feminista pra romper a estrutura patriarcal e racista fundante da nossa sociedade; e que tem medo de falar de igualdade de gênero e sexualidade nas escolas, visto que as maiores vítima são crianças, não tem política séria para combater estupros”, critica a advogada.

Por falta de uma política de enfrentamento da violência contra a mulher, em moldes propostos por Natasha, o “guia antiestupro” das redes sociais digitais acaba quase sendo verídico. Mas isso é porque a mulher continua sendo vista como culpada pela violência que sofre. Ou isso muda, a violência será perpetuada e cultural, alerta a advogada. A sociedade precisa de educação para eliminar os discursos machistas e misóginos das políticas públicas e do senso comum. Natasha conclui criticando qualquer forma de culpar a mulher, principalmente crianças, pelos estupros sofridos. Porque esses discursos apenas desobrigam o Estado a garantir a segurança, que é direito humano e constitucional. “Infelizmente, os instrumentos de combate à violência são baseados em conceitos muito antigos”, conclui.

Estupradores não têm padrão comportamental

Do lado da ciência, a mensagem do “guia antiestupro” não tem fundamentação sólida. A análise é do psicólogo Manoel de Christo Neto, professor mestre da Universidade da Amazônia (Unama). Ele é enfático: a violência, o que inclui estupro, é complexa e multidimensional. Falar de um padrão é supor que todos os casos são iguais e não são. O texto das redes sociais, observa o psicólogo, sugere um padrão que não foi comprovado cientificamente. Nem se sabe exatamente a origem. “Já é do conhecimento da psicologia, da psiquiatria e das demais ciências que estudam a mente humana que todo estuprador é um psicopata, embora nem todo psicopata seja um estuprador. Mesmo que possa haver variações de comportamento entre os estupradores, pode-se observar em suas condutas, alguns elementos comuns: falta de empatia, frieza, ausência de sentimento de culpa, de remorso, intolerância à frustração e a ser contrariado em suas vontades e desejos, responde de forma violenta, pois tem baixo limiar de descarga da agressividade e tende a culpar os outros para explicar seu comportamento destemperado”, detalha Christo.

Para o psicólogo, existem algumas informações que parecem ter sentido na mensagem do “guia antiestupro”. Contudo, ele reforça ser arriscado fazer afirmações que não foram resultado de pesquisa científica. “Existe um sério perigo de escamotear uma importante questão de fundo: vivemos em uma sociedade machista, patriarcal e violenta com as mulheres. As supostas recomendações são genéricas e podem induzir o pensamento de que cabe à mulher a responsabilidade de ter sido estuprada ou de evitar uma violência monstruosa como essa. E tantas outras que são cometidas no aconchego do lar, em relações abusivas com seus companheiros, pais, tios, namorados, etc.”, analisa o psicólogo e professor.

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