Cruzamento no Entrocamento movimenta comércio de Belém há décadas
Espaço é um ponto estratégico para o intenso fluxo de veículos da capital paraense e, também, abriga histórias de quem fez dali não apenas o seu trabalho, mas também um lugar de convivência
Conhecido oficialmente como complexo viário de Belém, o Entroncamento é muito mais do que a junção das avenidas Pedro Álvares Cabral, Almirante Barroso e Augusto Montenegro, que se encontram ao redor do Monumento da Cabanagem. Na prática, o espaço é um ponto estratégico para o intenso fluxo de veículos da capital paraense e, ao mesmo tempo, abriga histórias de quem fez dali não apenas o seu trabalho, mas também um lugar de convivência, amizade e sustento.
Entre os muitos personagens que dão vida ao Entroncamento estão comerciantes que, há décadas, constroem laços afetivos com o espaço. Eles revelam que, apesar dos desafios de um ambiente marcado por movimento constante e diversidade de públicos, o sentimento de pertencimento e a possibilidade de sustentar a família criam um elo profundo.
Com 79 anos recém-completados em agosto, José da Cruz Sampaio representa bem essa ligação afetiva. “Conserto aparelhos eletrônicos há muito tempo. É algo que sempre gostei e que me deu sustento por muitos anos”, contou. Ele tem aproximadamente 50 anos de trabalho no Entroncamento, sendo 45 apenas no ponto em que está hoje. “Aqui representa meu ganha-pão, o sustento da minha família. Criei meus filhos com esse trabalho”, explicou. José teve cinco filhos — três homens e duas mulheres —, todos empregados, embora nenhum tenha seguido sua profissão.
A rotina é marcada pela disciplina: “Chego às nove horas e vou até as cinco”, disse. Morador da Marambaia, José considera o trabalho não só fonte de renda, mas de vínculos. “Com o tempo, é natural que a gente faça amizade, mesmo com alguns percalços. Aqui tem gente de toda espécie e nem sempre a gente se sente totalmente à vontade. Mas o que eu mais gosto é do meu trabalho”, reforçou.
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"Aqui só perde para o Ver-o-Peso", diz comerciante
Aos 27 anos, o comerciante Lucas Araújo administra uma distribuidora de ovos no Entroncamento e já acumula 12 anos de experiência no local. “Aqui é muito movimentado, é a segunda área mais movimentada de Belém, só perde para o Ver-o-Peso”, destacou. Ele começa a trabalhar às 6 da manhã e permanece até as 18h, de segunda a sábado. “Representa trabalho e também amizade. A galera aqui é unida, apesar das divergências que às vezes aparecem”, contou.
O trabalho administrado por Lucas movimenta aproximadamente 100 caixas de ovos por semana, o que equivale a cerca de 3.600 unidades. “É um comércio intenso. Aqui nem precisa de muita estratégia para atrair clientes, a movimentação garante as vendas naturalmente”, explicou.
Mesmo em um ritmo intenso, Lucas não pensa em se afastar de sua atividade diária. “Quando não venho trabalhar, é estranho. Às vezes, a gente quer descansar. Mas, depois de um ou dois dias, já sente vontade de voltar”, confidenciou. Para ele, o Entroncamento se define em duas palavras: “trabalho e amizade”.
Laços que viram família
Aos 57 anos, a vendedora de café da manhã Maria Marly Ferreira da Silva também encontrou no Entroncamento o espaço ideal para construir uma vida de dedicação e afeto. “Sou dona de casa e trabalho como autônoma. Estou aqui há 16 anos. Foi daqui que tirei o sustento para criar meus quatro filhos, que hoje estão todos empregados e encaminhados, graças a Deus”, contou.
Todos os dias, Marly chega por volta das 6h15 e encerra o atendimento perto das 11h30. O que a prende ao local vai além da necessidade financeira: “Quando fico em casa, doente, sinto falta. Meus clientes se tornaram amigos, a gente conversa sobre problemas, um ajuda o outro. Aqui é praticamente uma família. Pretendo me aposentar aqui, e sei que vou sentir saudade”, disse, com emoção.
José Armando da Silva: o “Abençoado”
Outro trabalhador é José Armando da Silva, 63 anos, chamado carinhosamente de “Abençoado” ou “Rei da Abacatada” pelos colegas. Autônomo, ele está há 28 anos no Entroncamento. “Chego por volta de 4h40 e fico até 11h45, meio-dia. Aqui é muito bom, sustento minha família e ainda gero emprego para outros”, contou. José gostaria que as autoridades olhassem com mais carinho para o Entrocamento – igual o tratamento recebido pelo Ver-o-Peso. Mesmo após passar por três cirurgias, ele não conseguiu se afastar. “Fiquei inquieto em casa. Assim que pude, voltei a empurrar o carrinho. A vontade de trabalhar aqui é maior”, contou.
O Entroncamento, cujo nome remete justamente ao encontro de vias, é, portanto, também o ponto de encontro de histórias de vida. Para José Sampaio, Lucas Araújo, Maria Marly e José Armando, o local é muito mais que um espaço de comércio: é uma extensão de suas próprias trajetórias.
Entre bancas de ovos, aroma de café fresco e sons de ferramentas eletrônicas, o complexo viário se torna cenário de amizades, memórias e superações.
Essas histórias revelam que, por trás do intenso tráfego que liga importantes avenidas de Belém, existe um universo de relações humanas e perseverança. O Entroncamento é, para esses trabalhadores, sinônimo de dignidade, pertencimento e futuro — um verdadeiro cruzamento de vidas que seguem firmes, dia após dia, em meio ao movimento da cidade.
Secult: requalificação do Entroncamento
A Secretaria de Estado de Cultura do Pará informa que o Memorial da Cabanagem passou por requalificação em 2019, com recuperação estrutural, além da implantação de novas estruturas como banheiros, sala administrativa e de apoio aos servidores que trabalham na segurança e manutenção do espaço.
Atualmente o Memorial conta com a exposição Memória Cabana, inaugurada junto com a videoinstalação “Revolução Cabana” em que, por meio de oito painéis, é possível conhecer mais sobre a história do Memorial e do movimento da Cabanagem. O espaço está aberto ao público de terça-feira à quinta-feira, das 9h às 14h e de sexta-feira a domingo de 9h às 17h.
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