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Delegada relata trajetória de dor e ressignificação após o ex-marido matar os filhos

O caso ocorreu em julho do ano passado na cidade de Cametá. O dentista Paulo César Viana matou os dois filhos, frutos do casamento de 20 anos com a delegada Amanda Souza. Em seguida, ele tirou a própria vida

Ana Laura Carvalho/ Grupo Liberal

Ressignificar a própria vida depois de uma tragédia inimaginável. Foi assim que a delegada Amanda Souza, ex-titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Cametá, encontrou forças para seguir em frente. No dia 10 de julho do ano passado, Amanda perdeu os dois filhos, Letícia de Souza Duarte e Marcelo de Souza Duarte, de 9 e 12 anos, assassinados pelo ex-marido e pai das crianças, o dentista Paulo César Viana, que tirou a própria vida em seguida, utilizando a arma particular da policial. O crime ocorreu na casa da família, na cidade de Cametá, no nordeste paraense, e ganhou repercussão nacional.

Amanda, assim como Paulo e as crianças, é natural de Minas Gerais. A mudança ao Pará ocorreu devido à sua carreira na Polícia Civil. O casamento de vinte anos com Paulo já tinha acabado há um ano, mas, devido a um sentimento de gratidão, a delegada permitiu que o ex-marido continuasse morando com ela e os filhos. Segundo ela, o dentista não aceitava a separação. Paulo passou de um marido dedicado para um homem possuído pelo ciúme. Ele já havia tentado manipular Amanda emocionalmente em diversas ocasiões.

Hoje, Amanda busca transformar sua dor em força, dedicando-se ao processo de recomeço e à sua missão como policial. Em entrevista ao Grupo Liberal, a delegada relembrou detalhes daquele dia 10 de julho que ainda não tinham sido revelados.

“Ele me mandou uma mensagem pela manhã, dizendo que meu futuro seria de ‘tristeza e solidão’. Ele já tinha trabalhado na minha cabeça para eu baixar a guarda. Inventou uma história de que ele estaria indo embora para Minas. Teoricamente, ele ia viajar na terça-feira [11 de julho, um dia após o ocorrido]. Ele me mandou essa mensagem e eu saí para trabalhar. E foi mais uma mensagem”, contou Amanda, pontuando que, devido ao excesso de pressão psicológica que o ex-marido fazia, ela já havia criado um bloqueio emocional e tentava não se deixar abalar pelas ameaças, bem como chantagens dele.

“Fui trabalhar normalmente na delegacia e voltei para casa no horário de almoço. Quando eu cheguei em casa, senti um clima muito ruim, muito pesado. Estava tão pesado que eu não consegui ficar no meu horário de almoço normal. Eu voltei mais cedo para a delegacia”, relembrou Amanda.

Por volta das 16h, Amanda foi surpreendida por uma ligação de Paulo. Do outro lado da linha, ele anunciou: “Você conseguiu o que você queria, eu matei os seus filhos”. O dentista usou a arma particular de Amanda. Ele assistia vídeos na internet sobre como manusear o armamento, que ficava desmontado, com as peças em diferentes cômodos na casa de Amanda. Ainda na ligação, acredita a delegada, Paulo queria que ela ouvisse o disparo com o qual ele tirou a própria vida. “Eu imagino que, quando ele me ligou, foi o momento em que ele tirou também a vida dele. Ele queria que eu ouvisse o disparo. Só que eu não ouvi, porque quando ele falou, eu larguei o telefone e saí procurando a chave de casa”, relatou a delegada. “Eu precisava ver se aquilo era mais um blefe dele ou se ele tinha feito uma loucura”, explicou.

Segundo a delegada, Paulo passou um ano tentando desestabilizá-la emocionalmente. “Ele tentou por um ano fazer uma pressão psicológica comigo. Ele tentou por um ano me desestabilizar emocionalmente e viu que não conseguia. Então, percebeu que a única forma de me atingir seria através do que eu mais amava, que eram meus filhos”, lamentou. Apesar das constantes manipulações e ameaças, Amanda nunca imaginou que ele pudesse ir tão longe: “Eu jamais poderia imaginar que ele faria isso com as crianças, com o único objetivo de me atingir”.

‘Não teria dado a oportunidade dele permanecer na minha vida’

Se pudesse voltar no tempo, Amanda assegura que não teria dado a oportunidade do ex-marido permanecer na vida dela e dos filhos, mesmo após a separação. Teria agido com a dureza que o momento pedia.

“Eu fui levada a isso, porque apesar de saber que estava vivendo um clima de violência psicológica, eu não poderia simplesmente tirar da minha vida uma pessoa que viveu comigo por vinte anos e me ajudou demais a chegar onde eu estou”, pontuou a delegada.

Amanda também ref​letiu sobre o papel que Paulo desempenhou em sua trajetória, reconhecendo o apoio que ele lhe deu no passado. “Se hoje eu sou delegada de polícia, eu devo muito a ele que me deu toda a estrutura e apoio que eu precisava para estar onde estou. Mas hoje eu o vejo como um psicopata. Hoje eu vejo que el​e não amava nem a mim nem às crianças. Se eu pudesse voltar atrás, teria agido de forma fria, como sempre agi na minha vida”, afirmou Amanda.

Dor, luto e ressignificação

Após o crime, a delegada Amanda Souza teve que enfrentar a dor e o luto de uma maneira que nunca imaginou. “Eu faço terapia para tentar esquecer as cenas daquele dia, mas é algo que ainda vai ficar na minha memória”, desabafou. Nas semanas seguintes ao crime, ela buscou um novo entendimento sobre os acontecimentos. No início, tentou justificar as ações de Paulo como fruto de uma depressão profunda, mas, com o tempo, Amanda percebeu que ele exibia características de um psicopata.

Apesar da dor imensurável, Amanda conta que encontrou forças para seguir em frente, ressignificando, também, seu papel como mãe e esposa. “Eu fui a melhor mãe que eu poderia ter sido. Foram doze anos de muita felicidade com meus filhos. Não carrego remorsos sobre o que eu poderia ter feito. Eu dei o meu melhor”, afirmou.

Além disso, Amanda encontra apoio no Espiritismo e em uma rede de amigos e familiares que a ajudam a lidar com a dor. “Tenho uma rede de apoio fantástica. Pessoas que deixam sua própria família para ficar comigo, porque sabem que eu não posso ficar sozinha, que eu preciso interagir”, concluiu a delegada.

Rotina de estudos

Atualmente, afastada do trabalho, a delegada se dedica a uma rotina de trabalho e estudos, que a ajudam a manter a mente ocupada. “Manter a mente ocupada é o segredo de não se entregar a pensamentos negativos. Desde que isso aconteceu, eu estudo, leio muito, sobre violência doméstica, sobre psicopatas. Minha rotina hoje é estudar, me aprimorar cada vez mais. Voltei para o inglês recentemente. Estou sempre me ocupando em relação ao estudo. Estou na academia. Estou agora para voltar ao trabalho, porque eu acabei entrando de licença”, detalhou.

Mudanças na carreira

O crime também transformou Amanda como profissional. Antes delegada titular da Deam de Cametá, ela agora entende de maneira mais profunda as vítimas de violência doméstica e psicológica. “Eu tenho muito mais empatia agora para ouvir um relato de violência. Eu, na posição de delegada antes do que aconteceu, ouvia algumas coisas, que eu pensava comigo: ‘Como pode?’, ‘Como você se sujeita a isso?’, ‘Por que você está nisso?’. Para quem está de fora, enxerga tudo com mais clareza. E quem está dentro da relação abusiva não tem a mesma clareza”, alertou, deixando uma mensagem para as mulheres que possam estar vivendo situações semelhantes à que ela enfrentou.

“Todo sinal de violência tem que ser identificado o mais rápido possível. E aí eu falo da pessoa que está de fora, porque vê a situação de uma forma muito diferente de quem está dentro. Então, dê mais atenção para o que o parente fala, o amigo fala, porque eles estão ali tendo uma outra visão da sua relação. Algumas amigas falavam da questão que ele tinha comigo como controle e eu via como cuidado. Ele tinha a minha localização, acesso ao meu celular. Coisas básicas que, para mim, não me afetavam, não era controle. Eu via como proteção, cuidado. Ele era muito inteligente. Quando a gente foi nessa questão de compartilhar a localização, ele usou um argumento que, na época, para mim, era muito válido. Então, é ter cuidado com o que é controle. Para mim, eu tinha uma relação maravilhosa”, concluiu Amanda.

Processo de recuperação é longo, explica psicóloga

Úrsula Siqueira, psicóloga da Estácio, explica que a jornada de luto de cada um é única. “Aqui é importante reconhecer que esse será um processo de recuperação longo e que está tudo bem respeitar o seu próprio tempo para processar tudo o que ocorreu”, defende.

“O processo de enfrentamento e ressignificação de experiências traumáticas, perpassa por vários aspectos: é importante reconhecer (e não evitar) os sentimentos comuns após uma perda traumática, tais como anseio, raiva, culpa e tristeza, distinguindo-as de e sintomas sinalizadores de transtornos; identificar quais pensamentos surgem ao longo desse processo, questionar se eles são reais e úteis ou tem características de culpabilização ou irreais, sendo prejudiciais à vivência do luto; explorar novas maneiras de se conectar com o ente querido e manter um vínculo; buscar apoio social e envolver-se (mesmo que aos poucos) em atividades de autocuidado; e procurar ajuda profissional”, orienta a psicóloga Úrsula Siqueira.

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