A água duradoura do 'Y Pytahak
Sistema de captação e tratamento de água desenvolvido na Ufra leva saúde para comunidades amazônicas

‘Y Pytahak, que significa “água duradoura” na língua indígena tupi-guarani, será o nome do sistema de captação e tratamento de água que será implantado na aldeia Tembé Herekohaw, localizada no município de Santa Luzia (PA), por meio de um projeto da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra). O nome simboliza a esperança dos indígenas Tembé, que passarão a contar com um sistema de água potável e saneamento de qualidade, a baixo custo. A iniciativa visa garantir o abastecimento hídrico por meio da captação de águas pluviais, de forma ecológica e autônoma. Até novembro deste ano, serão instalados na aldeia seis sistemas de captação de água da chuva, que funcionam sem necessidade de energia elétrica, utilizando apenas a força da gravidade.
O cuidado com o meio ambiente e a compreensão de que cada criatura e elemento da natureza tem seu lugar no mundo são saberes ancestrais dos povos indígenas. A água potável é essencial para a existência da vida, seja na Amazônia ou em qualquer outro lugar. Historicamente, os indígenas e comunidades tradicionais dispunham desse recurso em abundância na região amazônica. No entanto, nos últimos séculos, as transformações ambientais e sociais têm provocado a escassez de água, agravada pela poluição dos rios com esgoto e metais pesados.
O projeto “Água e Vida na Amazônia”, coordenado pela professora Vania Neu, do Laboratório de Hidrobiogeoquímica da Ufra, apresenta bons resultados em comunidades ribeirinhas desde 2012. Esta será a primeira vez que o sistema será implantado em comunidades indígenas. Além dos Tembé, está em desenvolvimento um planejamento mais abrangente para beneficiar aproximadamente mil indígenas Yanomamis, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
“A gente tem várias vantagens desde a qualidade da água, o custo até a implementação do sistema. A água da chuva tem um pH muito melhor do que o pH da água do rio ou de poço, até mesmo de água que compramos em supermercados. É muito comum a água de poço ter altos teores de ferro, e a água da chuva não tem. A água da chuva é uma água muito limpa, muito fácil de tratar. Ainda mais na Amazônia, em que estamos em uma região onde a gente não tem uma grande industrialização para contaminar a atmosfera, e contaminar a água da chuva. Esse sistema é um grande filtro para a gente ter boa qualidade da água”, declarou a professora Vania Neu.
Inspirado nas cisternas utilizadas no Nordeste, o sistema é mais econômico do que os modelos convencionais de abastecimento, que exigem a perfuração de poços profundos e o uso de bombas elétricas ou a combustível. O último sistema de caixas d’água orçado pelo projeto custava cerca de R$ 10 mil e opera exclusivamente com a força da gravidade. “Muitas comunidades não têm energia elétrica. Muitas comunidades são tão carentes que não têm nem combustível para fazer funcionar uma bomba”, aponta a pesquisadora.
Contaminação
Um grave problema enfrentado por indígenas e comunidades ribeirinhas é a contaminação dos rios, seja por esgoto, seja por metais pesados. Os bons resultados do projeto em três comunidades ribeirinhas despertaram o interesse de órgãos responsáveis pela saúde indígena. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) procurou os pesquisadores para desenvolver o projeto na aldeia Herekohaw, enquanto a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referência em pesquisa na área da saúde, atuará na implementação do sistema para os Yanomamis.
Os Tembé têm enfrentado secas prolongadas no Pará, enquanto os Yanomamis sofrem cada vez mais com a contaminação da água e do solo causada pelo garimpo ilegal. A Fiocruz identificou elevados índices de contaminação biológica e química na água consumida pelos Yanomamis. “Uma das ideias da tecnologia social é ser adaptada conforme a realidade de cada local. A gente vai trabalhar nas terras indígenas para que eles se sintam parte do processo. A tecnologia está aqui, mas primeiro a gente conversa. O princípio é o diálogo com a comunidade, com as especificidades culturais”, apontou.
Na aldeia Herekohaw, o sistema será instalado em uma escola que atende estudantes e professores de quatro aldeias. Entre os Yanomamis, será desenvolvido o primeiro protótipo de um sistema coletivo de grande capacidade. “A situação com os Yanomamis é bem mais complexa. Será o primeiro sistema comunitário com grande reserva de água, para abastecer mil pessoas. Nos Tembés são um pouco mais de 30 pessoas, e com a escola mais umas 50”, explica a professora.
Os indígenas também contarão com a instalação de cinco tanques de evapotranspiração (Tevap), conhecidos como fossas ecológicas ou fossas de bananeira, para tratar o esgoto e evitar a contaminação do solo.
Como funciona o sistema
O sistema, composto por quatro reservatórios, capta a água da chuva a partir dos telhados. A água escorre por calhas que a conduzem até o primeiro reservatório, que descarta o primeiro milímetro cúbico por conter impurezas. Quando o reservatório atinge seu limite, o sistema se fecha automaticamente e começa a armazenar o líquido no segundo reservatório. Em seguida, a água passa por um clorador até chegar ao terceiro reservatório, com capacidade de cinco mil litros. Do lado de fora, filtros de carvão ativado removem o gosto de hipoclorito.
A pesquisa já implantou sistemas similares na Ilha das Onças, beneficiando 15 pessoas; em uma fábrica de chocolate no Combu; e em Marapanim, para uma comunidade insular. Nesses locais, as próprias comunidades gerenciam e mantêm o sistema. Nas aldeias indígenas, o trabalho será reforçado por Agentes Indígenas de Saneamento, que serão capacitados para garantir a qualidade da água. “É uma tecnologia muito simples e muito fácil. Não é difícil de operar, mas a gente precisa de cuidado. Toda a água que a gente consome precisa de cuidado”, enfatiza a professora.
Adaptação climática
A união entre a pesquisa científica da Ufra e o conhecimento tradicional das comunidades sobre a nova realidade ambiental é fundamental para o sucesso do projeto. Com as mudanças climáticas, que reduziram o volume de chuvas e prolongaram os períodos de estiagem na Amazônia, os pesquisadores aumentaram a capacidade de captação e armazenamento do sistema. “Ao longo dos últimos anos percebemos os períodos de secas extremos, que temos vivido a cada ano, e precisamos reservar um grande volume de água”, destaca.
“Quando a gente começou o projeto em 2012, o nosso reservatório era de mil litros. Depois a gente passou para dois mil litros. Quando escrevemos o projeto para a aldeia Tembé, o plano inicial era de dois mil litros, porém durante os três anos de estudos percebemos que a aldeia passou por secas extremas relatadas pelos indígenas. Tivemos que ampliar para cinco mil litros”, comparou Vania.
O sistema oferecerá abastecimento durante todo o ano. Mesmo nos períodos de estiagem, ele foi projetado para atender à demanda de todas as pessoas. Além disso, é sustentável: até a água inicialmente descartada, por conter impurezas, pode ser utilizada para tarefas como limpeza das casas. “É um sistema adaptado para as mudanças climáticas e para fornecer água potável o ano todo, pelo tamanho dos sistemas que estamos trabalhando”.
Após a implantação, as comunidades serão acompanhadas por um ano, período em que serão realizadas análises físico-químicas da água consumida. Nas comunidades onde o projeto já foi implementado, os moradores relataram melhoria significativa na saúde, com a redução de casos de diarreia e infecções intestinais. O modelo desenvolvido pelo Projeto Água e Vida na Amazônia tem potencial de ser expandido e adaptado a outras regiões, inclusive de difícil acesso, contribuindo para garantir um direito fundamental: o acesso à água potável na maior floresta tropical do planeta.
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