Violência obstétrica: falta de lei é entrave na promoção da segurança e bem-estar das gestantes

Conforme o Ministério da Saúde, o Brasil não tem dados sobre violência obstétrica porque não existe uma legislação específica sobre o tema

Camila Guimarães

A morte de Tereza Nunes de Castro, após ter tido o intestino perfurado durante o parto do segundo filho, nascido em outubro do ano passado, no Hospital Materno Infantil (HMI), localizado em Marabá, tem lançado luz sobre uma realidade sombria, não só no Estado, mas em todo o Brasil: a violência obstétrica. Sem uma lei que tipifique a prática como crime, segue sendo intangível, no que refere ao controle das estatísticas, ainda que siga muito concreta em experiências negativas de mulheres durante o pré-natal, parto e pós-parto.

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De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil não tem dados sobre o assunto porque não existe uma legislação específica sobre o tema. A advogada Luciana Correa Souza Matni, membro da Comissão de Mulheres e Advogadas da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Pará (OAB-PA), explica que este é um dos grandes entraves na promoção da segurança e bem-estar da mulher na condição de gestação.

"A violência obstétrica em si, no contexto brasileiro, não tem criminalização - não há um crime específico e isso impacta na construção de política pública. A gente não consegue levantar dados mais específicos em relação a isso".

A advogada relembra que o Brasil já foi condenado pelo Comitê Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW - na sigla em ingês), da Organização das Nações Unidas (ONU), com relação ao caso de morte materna de Alyne da Silva Pimentel, no Rio de Janeiro, em 2022, após cuidados médicos de emergência terem sido negados a ela durante a gravidez de alto risco.

À época, o Comitê CEDAW entendeu que o estado brasileiro não protegeu os direitos à vida, à saúde, à igualdade e não discriminação no acesso à saúde devidos à Alyne. Foi a primeira vez que um caso do tipo foi decidido por um Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas.

"Dentre as recomendações, o Comitê dizia que o Brasil devia pensar uma maior prevenção e repressão desses casos de violência obstétrica. Reconheceu-se, inclusive, o aspecto da interseccionalidade, no caso da Alyne Pimentel, que foi atravessado por marcadores sociais da diferença, como raça, que foi responsável por agravar a situação da Alyne e contribuir para sua morte", comenta a advogada.

Ainda assim, Luciana Matni afirma que os passos do país no caminho de proteção das mulheres contra esse tipo de violência têm sido escassos. Foi apenas em 2019 (no dia 7 de junho) que o Ministério da Saúde reconheceu, pela primeira vez, o termo 'violência obstétrica', após uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF). Antes disso, no dia 3 de maio do mesmo ano, o Ministério da Saúde tinha chegado a emitir um despacho pedindo que o termo fosse evitado e, possivelmente, abolido, por ser considerado "impróprio".

Todos esses entraves conceituais e jurídicos sobre o assunto têm dificultado não apenas um consenso sobre violência obstétrica no país, como limitado os meios de apontamento do problema, por parte das vítimas, que precisam recorrer a outros crimes, já tipificados, para validar denúncias. "No âmbito do direito penal, para a gente trabalhar violência obstétrica, a gente tem que averiguar se houve lesão corporal, crimes contra a honra, homicídio", cita a advogada.

Apesar dos entraves, a advogada encoraja que todo caso de violência no pré-natal, parto e pós-parto sejam denunciados, uma vez que "muitos dos casos não chegam ao judiciário e acabam ficando apenas no âmbito administrativo".

Para isso, Luciana recomenda que as vítimas procurem delegacias, o Conselho Regional de Medicina (CRM), a Defensoria Pública, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e todos os canais possíveis de assistência.

O que diz o Ministério da Saúde

Sobre o assunto, o Ministério da Saúde diz que orienta os profissionais a estabelecer protocolos de atenção humanizada ao pré-natal, parto e puerpério baseada em boas práticas de assistência.

"O ministério vai estruturar um novo modelo de atenção à saúde da mulher e da criança com foco na atenção ao parto, ao nascimento, ao crescimento e desenvolvimento até os 24 meses, além de organizar a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil para garantir o acesso, acolhimento e resolutividade. O Brasil também reviu as metas de redução da mortalidade materna e neonatal e na infância estabelecidas pela ONU nos ODS. A meta nacional é reduzir para até 30 mortes por 100 mil nascidos vivos até 2030, enquanto o desafio global é o de redução para menos de 70 mortes no mesmo período".

Violência obstétrica segundo o Ministério da Saúde:

É o desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas.

 

Caso Alyne Pimentel

Alyne Pimentel, 28, era moradora de Belford Roxo, estado do Rio de Janeiro. Tinha uma filha de cinco anos e estava grávida da segunda, aos seis meses de gestação. Em 11 de novembro de 2002, ela procurou a Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória com dores e náuseas. Foi atendida por um ginecologista, mas mandada para casa sem fazer exame. Apenas foi agendado exame de sangue e urina para dois dias depois.

Em 13 de novembro, Alyne retornou ao hospital e foi atendida por outro médico, que solicitou a sua internação. Um terceiro médico a examinou e detectou que não havia batimento cardíaco do feto, atestando morte fetal. Alyne foi encaminhada para indução de parto, tentativa que não foi bem-sucedida. Apenas 14h depois, uma curetagem foi realizada. Contudo, a situação de Alyne não melhorou. Na busca por um hospital que tivesse melhores condições de atendê-la, Alyne chegou a ter o transporte por ambulância negado, além de registros médicos retidos.

Alyne chegou a entrar em coma durante a espera. Durante a transferência para outro hospital, apenas um relatório oral sobre seu quadro de saúde foi repassado, omitindo que a paciente esteve grávida. No dia 16 de novembro, Alyne faleceu. A autópsia determinou como causa da morte hemorragia digestiva, entretanto, ao solicitar o prontuário médico do primeiro hospital em que buscou socorro, os médicos disseram à mãe de Alyne que o feto já estava morto há dias e que esse fato havia causado a morte da paciente.

O caso de Marabá

Tereza Nunes de Castro, de 23 anos, que estava internada em estado gravíssimo no Hospital Regional do Sudeste do Pará (HRSP), em Marabá, sudeste do Estado, morreu na noite deste sábado (27). Ela teve o intestino perfurado durante o parto do segundo filho, nascido em outubro do ano passado, no Hospital Materno Infantil (HMI), localizado no mesmo município. 

Sespa

A Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), por meio do Hospital Regional do Sudeste do Pará (HRSP), esclareceu que o corpo da paciente Tereza Nunes Castro, de 23 anos, foi liberado à funerária conforme o protocolo institucional, considerando que não havia solicitação de encaminhamento da necrópsia por parte da família. "O HRSP também nega que tenha sido retirado o intestino da paciente. Por fim, o HRSP se solidariza com a família e amigos da jovem", diz a nota.

Prefeitura de Marabá

No dia 26 de janeiro, a Prefeitura de Marabá confirmou que a paciente Tereza Bianca Nunes de Castro foi atendida no Hospital Materno Infantil – HMI no dia 24 de outubro de 2023. Também informou que a paciente deu entrada nesta casa de saúde na referida data, por meio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – Samu, sem acompanhante, em franco trabalho de parto, sem registro de pré-natal ou qualquer acompanhamento médico, apresentando fala desconexa, desnutrição grave, pesando 39 kg.

"Sendo assim, logo durante o primeiro atendimento foi identificado que o feto encontrava-se em posição transversa (atravessado no útero), tendo sido realizado parto cesáreo com difícil extração devido a apresentação anormal. Após o parto, no dia 26/10/2023, a genitora recebeu alta com sinais clínicos estáveis e sem queixas no momento, em observância à recomendação do Ministério da Saúde de alta médica 48 (quarenta e oito) horas após o procedimento", diz a nota.

"No dia 30/10/2023, a paciente retornou ao Hospital novamente trazida pelo Samu com histórico de dor abdominal, vômitos e evacuações, ferida operatória com odor fétido e desnutrição grave. Após avaliação, a paciente foi diagnosticada com infecção abdominal, momento no qual foi realizada internação para início de antibióticos durante 10 (dez) dias. Ocorre que, a paciente evadiu-se do hospital no dia 02/11/2023 sem autorização médica, interrompendo assim o tratamento indicado de antibioticoterapia no 3º dia", detalha a nota.

A Prefeitura de Marabá também acrescentou: "Ato contínuo, no dia 04/11/2023, 02 (dois) dias após a evasão, a paciente retornou ao HMI mantendo quadro de infecção quando foi novamente internada para realizar tratamento com antibióticos e avaliação com cirurgião geral que solicitou transferência para UTI do Hospital Municipal de Marabá, sendo realizada a transferência no dia 05/11/2023".

A nota também que afirma que, durante a avaliação médica pela equipe do Hospital Municipal, foi identificado que a paciente possuía abcesso cavitário (quando há presença de pus ou material infectado geralmente decorrente de uma infecção localizada dentro da cavidade peritoneal), sendo realizada laparotomia exploradora para drenagem do abcesso.

"Atualmente a paciente se encontra internada no Hospital Regional do Sudeste do Pará para realização do tratamento médico necessário. Por fim, a Secretaria Municipal de Saúde iniciou processo de auditoria interna para elucidação do caso, com o devido informe ao Ministério Público Estadual e Conselho Regional de Medicina do Estado do Pará, para os quais encaminhará parecer conclusivo da auditoria tão logo seja finalizada", finaliza a nota. 

A reportagem soliciou uma nova nota para a Prefeitura de Marabá na segunda-feira (29/01), mas não houve retorno até o fechamento desta edição.

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