No Pará, intolerância religiosa é maior com religiões de matrizes africanas

Casos cresceram em 2020. Delegacia especializada instaurou quatro inquéritos e Segup lista 230 registros

Dilson Pimentel
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“Se a gente pega um ônibus, e está de turbante e roupa branca, não sentam perto da gente. É raro alguém sentar perto de mim", conta Mãe Nangêtú, do Instituto Nangetu, de Belém. “Quando eu me visto com as minhas roupas, as pessoas me chamam de palhaça e dizem: ‘Lá vai aquela palhaça endemoniada’”, detalha ela sobre uma rotina que afeta milhares de paraenses que vivem violências apenas por terem suas culturas de fé ligadas a matrizes africanas.

No próximo dia 21 de janeiro é comemorado o Dia Mundial da Religião, data criada em dezembro de 1949, em uma Assembleia Espiritual Nacional dos Baha’is, para promover o respeito, a tolerância e o diálogo entre todas as diversas religiões existentes no mundo. E, na mesma data, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído pela Lei n° 11.635/2007, em homenagem à Mãe Gilda, do terreiro Ilê Abassá de Ogum (BA), que foi vítima desse tipo de violência.

Uma associação sem fins lucrativos, o Instituto Nangetu atua na valorização das culturas tradicionais negras e no desenvolvimento de projetos artísticos com identidade cultural afro-amazônica. E também tem atuação política na defesa dos direitos de cidadania dos negros e povos tradicionais de matriz africana.

O Mansu Nangetu foi fundado em 1988 e se tornou um dos terreiros mais conceituados entre a comunidade afro-religiosa de Belém, assim como uma referência regional e nacional da cultura religiosa afro-amazônica.

Raízes africanas são maiores alvos, diz Sejudh


A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Pará (Sejudh) explica que a intolerância religiosa é a incapacidade de reconhecer a religião do outro. Atinge todas as crenças, mas a perseguição a determinadas religiões de matrizes africanas são mais atingidas. Pode ser configurada pela discriminação, violência física e ideológica, ou qualquer ato que fira a liberdade de culto.

“Sofri uma intolerância quando ia botar um presente ali nas águas do Ver-o-Rio”, conta Mãe Nangêtú, acrescentando que jamais faria algo para prejudicar a natureza. “Tenho consciência ambiental, de preservar meio ambiente, sou plantadora de árvores na rua, faço jardinagem”, explicou. “Passei por todas as formas de intolerância”.

Ela contou que, quando algum candidato a um cargo público associa sua imagem a um afro-religioso, é logo motivo de “mangofa (deboche). Põem colares, põem turbantes no candidato”.

“Já sofri uma intolerância quando ia botar um presente ali, nas águas do Ver-o-Rio”, conta  Mãe Nangêtú. “Se a gente pega um ônibus, e está de turbante e roupa branca, não sentam perto da gente. Quando eu me visto com as minhas roupas, as pessoas me chamam de palhaça e dizem: ‘Lá vai aquela palhaça endemoniada’. Já passei por todas as formas de intolerância"

Mãe Nangêtú contou que, no quintal da casa dela, em Belém, há árvores que considera sagradas. “Considero um quilombo urbano. Eu tenho árvores sagradas. Preciso dessas folhas para deitar, tomar banho, para dar banho às pessoas, fazer chá. Os vizinhos não querem saber desse meio ecológico que tenho aqui com essas árvores sagradas, incomoda a vizinhança. Vem um manda cortar, vem outro e manda cortar. Isso é muito ruim. Para mim, isso também é uma intolerância. Porque, se fosse no bosque, eles iam matar cortar? Mas não incomoda, dá um vento muito grande no quintal”, contou.

Para reverter esse cenário, ela diz que governo e prefeitura precisam fazer campanhas, lançar livros e promover seminários e debates sobre a importância de se respeitar todas as religiões. E, no âmbito do Estado, os delegados de Polícia Civil devem ser capacitados. “Quando a gente chega em uma delegacia, para fazer uma queixa de racismo religioso, o que acontece? O delegado diz: ‘não, isso é uma briga de vizinho’. E não é”, contou.

Mãe Nangêtú  quer ter o direito, garantido na Constituição, de caminhar e se vestir como quiser. “O país é laico, Belém é laica, não tem religião, mas continua essa intolerância religiosa”, afirmou. Laico é não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa

“Tenho o direito, pela Constituição, de cultuar e respeitar a religião do outro. Mas quero que me respeite”, completou. Ela é membro do Comitê Inter-Religioso do Pará, do qual é uma das fundadoras. “Fazemos a cultura da paz”, afirmou. “Venho batalhando há muito tempo para que eu e meus irmãos tenhamos direito de fazer o que nós queremos da tradição, claro com respeito e dignidade. Porque temos respeito e dignidade com as outras tradições”, explicou, deixando claro que intolerância religiosa é crime.

“Considero minha casa um quilombo urbano. Eu tenho árvores sagradas. Preciso dessas folhas para deitar, tomar banho, para dar banho às pessoas, fazer chá. Os vizinhos não querem saber. Incomoda a vizinhança. Vem um, manda cortar, vem outro e manda cortar. Isso é muito ruim. Para mim, isso também é uma intolerância. Porque, se fosse no bosque, eles iam matar cortar? Mas não incomoda, dá um vento muito grande no quintal”, conta Mãe Nangêtú

image Mansu Nangetu: 'quilombo urbano' protege tradições (Igor Mota)

Polícia Civil investiga casos de intolerância


Em dezembro passado, a delegada Leilane Carvalho Reis assumiu a direção da Delegacia de Combate a Crimes Discriminatórios e Homofóbicos, da Polícia Civil do Pará. Em 2019, foram registrados quatro casos nessa delegacia, que foram transformados em quatro inquéritos policiais. Esse número se manteve em 2020, e os quatro casos também viraram quatro inquéritos.

A delegada explicou o que significa o crime de intolerância religiosa. “Consoante apregoa o artigo 208 do Código Penal Brasileiro, o referido crime consiste em ‘escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso", disse.

“Do conceito acima descrito colocamos que escarnecer significa tratar com zombaria e vilipendiar significa tratar com desprezo ou desdém”, afirmou. A pena é detenção, de um mês a um ano, ou multa. Como agora de assumir a delegacia, a delegada explicou que não tinha detalhes sobre os casos investigados em 2019 e 2020.

“Nossa função é investigar e encaminhar para a Justiça”, explicou. A pessoa que for vítima de intolerância religiosa pode procurar qualquer unidade policial. “Mas, caso queira algo mais minucioso, também estamos à disposição”, afirmou a delegada Leilane. A Delegacia de Combate a Crimes Discriminatórios e Homofóbicos está localizada na rua Avertano Rocha, número 417, ao lado da Seccional do Comércio, bairro Campina, em Belém.

Casos aumentaram em 2020, aponta Segup 


Procurada pela redação integrada de O Liberal, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informou que em 2020, de janeiro a dezembro, foram registrados 230 casos de intolerância religiosa em todo o Estado, tendo como local centros religiosos.

Em 2019 no mesmo período foram 58 ocorrências. A Segup informa, ainda, que não há como identificar no Sistema Integrado de Segurança Pública (SISP) os crimes registrados por motivo de intolerância religiosa, como solicitado

Apenas em 2019, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Pará realizou 21 reuniões ampliadas com a sociedade civil sobre intolerância religiosa. No ano de 2020, foram 16. Por conta da pandemia, as reuniões estão temporariamente suspensas. Para 2021, a Sejudh informa que ainda as reuniões ainda não têm previsão para acontecer.   

A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos também lembra que o artigo 5º da Constituição Federal prevê que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

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