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Doce aroma do bacuri corre risco na Amazônia

Bacuri é uma das frutas mais apreciadas pelos paraenses, mas sofre com a diminuição dos bacurizais

Vito Gemaque

O aroma adocicado e intenso do bacuri exala e toma todo o ambiente ao redor da fruta. Embora menos conhecido que o cupuaçu e o açaí, o bacuri possui um lugar especial entre os paraenses. Herança dos povos indígenas, a fruta é encontrada na Amazônia e em parte de alguns estados do Nordeste brasileiro. A polpa é amplamente utilizada como matéria-prima para doces e sorvetes.

 

 

 

 

 

Na região amazônica, a colheita do bacuri está diretamente associada a sistemas agroflorestais que ajudam a preservar a floresta e geram renda para comunidades tradicionais. No entanto, as áreas de cultivo da fruta sofrem cada vez mais pressão da expansão de monoculturas.


Cientificamente conhecido como Platonia insignis Mart., o bacuri possui algumas características particulares. Ao contrário de outras frutas, apenas 10% do bacuri é comestível — correspondente à polpa. Os caroços representam 20% do fruto, e a casca, 70%. Para produzir um quilo de polpa, são necessários aproximadamente 50 frutos.

O professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Flávio Bezerra Barros, doutor em Biologia da Conservação e integrante da Rede Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), ressalta a importância do fruto para a Amazônia.

“O bacuri é uma das nossas frutas mais apreciadas na nossa biodiversidade amazônica. Ela ocorre mais na parte oriental da Amazônia, no Pará e partes do Maranhão e Amapá. É uma fruta apreciadíssima, muito especial, devido ao seu sabor, pela textura, simbolismo e importância para o povo amazônida", destaca. "A sua safra ocorre num período muito curto e específico, que vai do final de dezembro até meados de fevereiro e março. Quando é o momento da produção do bacuri, as pessoas costumam correr até as feiras, mercados, porque é uma fruta que chega e acaba rapidamente”, detalha.

As árvores de bacurizeiro só começam a frutificar entre oito e doze anos de idade. A produção está diretamente ligada às comunidades tradicionais, que há séculos colhem os frutos com respeito à floresta.

“O bacuri tem uma importância do ponto de vista simbólico, do manejo que as populações fazem desse produto nas suas biodiversidades. A coleta do bacuri é algo impressionante que impõe uma dinâmica cultural, uma questão identitária. As famílias se reúnem, crianças, mulheres, homens, jovens, para fazer a coleta de madrugada, embaixo de chuva", afirma. "O bacuri tem também uma importância nessa construção de saberes e identidade dessas populações. No processo de coleta, [o bacuri] é apanhado no chão. O bacuri não se tira da árvore”, expõe o professor Flávio Bezerra.

Um dos desafios para tornar o bacuri mais acessível é aumentar a produção e verticalizar a cadeia produtiva, possibilitando haja beneficiamento do fruto no Pará. A fabricação de licores, cervejas, geleias e compotas para venda no Brasil e no exterior pode agregar valor ao fruto e gerar maior renda aos produtores locais.

DESTRUIÇÃO - A devastação de florestas naturais pelo avanço do agronegócio — com culturas como arroz e soja — e a exploração da madeira do bacurizeiro estão entre os principais riscos à preservação da planta e à produção do fruto. O Quilombo Providência, em Salvaterra, no arquipélago do Marajó, foi um dos locais que perderam toda a produção por conta da destruição da floresta.

Segundo uma liderança quilombola da comunidade, que teve a identidade preservada por segurança, há cerca de quatro anos, houve um incêndio de todo o bacurizal da área. A comunidade perdeu a produção que rendia de dois a três mil frutos por família na safra.

“Já foi a safra do bacuri. Hoje em dia, a gente não tem mais. Foi tirado tudo nosso com o agronegócio que chegou e destruiu todo o nosso bacurizal, mais de 300 árvores de bacuri frutíferas que levaram e fora as não frutíferas. A comunidade não tem mais nada de bacuri. O que a gente tem é ainda de planta no terreiro que dá alguns, mas para venda mesmo não tem mais”, declarou.

O professor Flávio Bezerra também registrou casos de destruição dos bacurizais. “Algumas áreas de bacurizais estão sendo devastadas, como na ilha de Salvaterra, no Marajó. Em que a chegada do monocultivo do arroz tem trazido uma ameaça grande para os bacurizais. Isso é um alerta e um perigo, porque o extrativismo feito pelas comunidades traduz para a gente o que chamamos de sistemas alimentares sustentáveis. Essas comunidades desenvolvem a agricultura, a criação de animais domésticos para consumo, desenvolvem o trabalho da caça e o extrativismo vegetal. É um conjunto de modos de produção alimentares, que são modos sustentáveis, porque não trazem impactos para a sustentabilidade da floresta”, explica.

Carmelita dos Passos Rocha, de 74 anos, uma das feirantes mais tradicionais do Mercado do Ver-o-Peso e profunda conhecedora das frutas regionais, confirma a dificuldade crescente de adquirir bacuri. Ela relaciona isso ao desmatamento. “Não deu muito no inverno passado. Foi bem fraco. A cada tempo é uma fraqueza a mais. Estão usando mais a madeira do bacuri do que a fruta. É só você ver que saem caminhões com a madeira da gente para fora”, aponta.

A comunidade quilombola Deus Ajude, também em Salvaterra, sofre com a mesma pressão da expansão do agronegócio e com a redução das áreas de plantio. Segundo o professor e antropólogo José Luis Souza, de 33 anos, está cada vez mais difícil manter os bacurizais.

“Hoje vivemos um problema muito sério devido o avanço do agronegócio dentro dos territórios quilombolas. Avançou muito. Foram tombadas e tiradas muitas áreas de bacurizal. A gente preserva aquelas que estão dentro do nosso território dos limites que temos, mas aquelas que estavam dentro do território de uso comum, que a gente entendia como área da comunidade por usufruto, infelizmente a maioria foi para o chão tombada a trator na corrente”, conta.

Os recursos obtidos com a venda do bacuri e da polpa eram fundamentais para a economia das comunidades. “Dentro da comunidade essa renda supria a necessidade das famílias e era a fonte principal que as famílias poderiam comprar material escolar para os seus filhos, nesse início do período de ano letivo”, destaca José. A liderança do quilombo Providência também lembra com saudades da ajuda que os bacurizais possibilitavam. “Era uma coisa que dava muito para a gente. Tinha uma sobrevivência muito boa mesmo. Apesar de ser pouco tempo a gente sabia aproveitar”, relembra.

O professor Flávio Barros reforça a importância de preservar as áreas de plantio de bacuri para a cultura e para a preservação da floresta amazônica. “A sustentabilidade não é somente da produção e do manejo, mas no trabalho. A importância é que a identidade paraense passa pelo consumo desses frutos que são nossos. O bacuri está nos nossos territórios, não é uma fruta que vai ser forçada na nossa alimentação, que não vem de fora, não precisa pegar estrada para chegar aqui. É uma fruta que está na nossa vida, sem agrotóxicos, sem trabalhos escravos, está produzindo uma fruta tipicamente amazônica”.