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Cacique Raoni acusa cineasta belga de reter recursos arrecadados em seu nome

A parceria de cinco décadas entre os dois foi desfeita

O Liberal

Durante cinco décadas, o cacique Raoni Metuktire e o cineasta belga Jean-Pierre Dutilleux, tiveram uma parceria considerada das mais produtivas no mundo. Juntos recrutaram presidentes, realeza e até o papa Francisco para melhorar as vidas dos povos indígenas brasileiros e proteger as terras. A dupla fez amizade com celebridades e estrelas de cinema. Sting, a lenda da música, foi um de seus maiores defensores. Hoje, o Cacique Raoni acusa cineasta belga de reter recursos arrecadado em seu nome. Entenda a história! 

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Há pouco tempo atrás, o vínculo entre eles parecia mais forte do que nunca. O cacique Raoni, ostentando o icônico botoque no lábio e um cocar de penas verde-esmeralda, e o cineasta, trajando um smoking, estavam no Festival de Cinema de Cannes para promover o documentário, “Raoni: uma amizade improvável”. Os dois estavam de mãos dadas, em pé no tapete vermelho, em meio a um furor de flashes das câmeras, como velhos amigos. Porém, o que ninguém imaginava é que nos bastidores o relacionamento estava chegando ao fim. O líder dos Kayapó retornou ao Brasil em maio e rompeu relações com o cineásta pouco tempo depois.

Explicações 

Raoni e pessoas próximas a ele disseram à Associated Press que há muito tempo desconfiavam de Dutilleux e suspeitavam que ele não estivesse transferindo recursos arrecadados para os Kayapó. Eles também o acusavam de explorar a imagem e a reputação do cacique para impulsionar a própria influência e carreira cinematográfica.

“Meu nome é usado para arrecadar dinheiro”, disse Raoni à Associated Press, durante uma entrevista em Brasília. “Mas o Jean-Pierre não me passou muito para eu fazer alguma coisa.”

O cacique, dois integrantes de organização sem fins lucrativos, o Instituto Raoni e o sucessor de Raoni relataram que Dutilleux se comprometia a transferir a eles dinheiro para financiar projetos sociais, mas só entregou uma fração do que prometeu. Eles também disseram que o cineasta se recusou a ter transparência com o dinheiro arrecadado em nome de Raoni durante as viagens pela Europa ou proveniente dos livros e filmes sobre os Kayapó. Dutilleux nega qualquer irregularidade, repetindo que nunca teve acesso ao dinheiro.

“Ele às vezes diz coisas assim, tem a ver com a idade. Talvez aconteça comigo também, dizer besteiras”, disse Dutilleux, agora aos 74 anos, em uma entrevista à AP em Paris, acrescentando que o dinheiro “não me interessa. Sou um cineasta, um artista. Não sou um contador”.

Apesar das suspeitas de longa data dos Kayapó, que remontam a quase 20 anos, os mais próximos de Raoni consideravam que ele não podia abandonar Dutilleux. Segundo eles, foi uma decisão fundada nos séculos de desequilíbrio de poder que surge quando um povo indígena faz uma parceria com um “kuben” influente, a palavra kayapó para o homem branco.

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O cacique

Raoni nasceu em algum momento da década de 1930 — ninguém sabe o ano exato — no ramo Metuktire do povo Kayapó. Naquela altura, o primeiro ciclo da borracha na Amazônia já havia se encerrado, após quase três décadas de exploração muitas vezes brutal das populações indígenas. Sua família e os integrantes de povo eram seminômades e passavam os dias caçando e pescando na bacia do rio Xingu, uma área do tamanho da França que abriga dezenas de grupos indígenas.

O primeiro contato com os kubens (homens brancos) foi em 1954. Naquela época, Raoni era um guerreiro carismático e pajé, respeitado pela perspicácia política e bravura no combate contra os povos rivais e todos que buscavam explorar os recursos.
Ele aprendeu a falar português, mas não a ler e escrever. Se tornou o principal interlocutor de seu povo com o mundo exterior, além de uma voz de liderança na proteção dos direitos indígenas no Brasil.

Na década de 1970, os povos indígenas estavam sob crescente pressão da ditadura militar brasileira, que, em um esforço para promover o desenvolvimento da Amazônia, construiu rodovias, patrocinou programas de colonização e ofereceu generosos subsídios aos agricultores. Raoni e os demais estavam fazendo tudo o que podiam para impedir a destruição de suas terras ancestrais. Foi por volta desse período, também, que Raoni salvou a vida de Dutilleux.

O cineasta

Nascido em uma família burguesa de uma cidade provinciana da Bélgica, Dutilleux sonhava com paisagens distantes. Aos 22 anos de idade partiu para o Brasil, onde iria dirigir um filme etnográfico sobre povos indígenas na floresta amazônica. Lá, um grupo de indígenas Kayapó o confundiu com um dos operários da construção de rodovias, que costumavam levar a morte e doenças para a região, e ameaçou matá-lo. Raoni interveio para evitar a violência e os dois homens se tornaram amigos.

Alguns anos depois, Dutilleux voltou ao Xingu para filmar um documentário focado no pajé. O cineasta convenceu Marlon Brando a narrar a versão americana, que foi indicada ao Oscar em 1979. O sucesso do filme transformou Raoni em uma das principais figuras dos povos indígenas e Dutilleux, seu guardião. Quase imediatamente, alguns defensores da causa e lideranças indígenas manifestaram preocupação com a possibilidade de que Dutilleux estivesse mais interessado em lucrar com Raoni do que em apoiar a causa indígena.

Um dos que suspeitou de Dutilleux foi Alexis de Vilar, um fotógrafo espanhol que fundou a organização sem fins lucrativos Tribal Life Fund, dedicada à proteção dos povos indígenas. A Tribal Life Fund patrocinou a estreia do documentário nos EUA, com um evento de gala no Mann's Chinese Theatre, um local icônico em Hollywood. A cerimônia de gala foi apresentada por Jon Voight e Will Sampson, que estrelou “Um estranho no ninho” e atraiu um público do primeiro escalão.

“Hollywood inteira estava lá”, recorda-se Vilar. Considerando que alguns convidados haviam desembolsado milhares de dólares por um ingresso, Vilar esperava que a organização fosse receber pelo menos 50 mil dólares, que haviam dito que seriam usados para financiar vários projetos sociais.

Mas, segundo Vilar, a Tribal Life Fund não recebeu nada. Dutilleux era o responsável por receber o pagamento dos ingressos e nunca entregou nenhuma parte desses valores. “Não havia dinheiro, nem para construir uma escola”, conta o fotógrafo.
Dutilleux defende que o evento não gerou nenhum lucro.

O músico

Uma década depois, Dutilleux apresentou o cacique ao ex-vocalista do grupo The Police, um encontro que transformaria Raoni em uma celebridade ainda mais conhecida. Depois de fazer um show no Rio de Janeiro, Sting viajou para a Amazônia e se tornou um aliado entusiasmado de Raoni e dos Kayapó. Ele e Dutilleux criaram a Rainforest Foundation, uma organização sem fins lucrativos que até hoje promove a proteção de florestas em todo o mundo.

Em 1989, Sting deixou seu baixo para viajar pelo mundo com Raoni e Dutilleux e chamar a atenção para a situação dos povos indígenas. Seus esforços contribuíram bastante para que o governo brasileiro reconhecesse, e, teoricamente, protegesse, a Terra Indígena Menkragnoti, uma área de cinco milhões de hectares. Apesar dessa vitória, o trio já havia se desentendido. Dutilleux foi afastado da Rainforest Foundation após ser acusado por Sting de tentar lucrar com a instituição, retendo os direitos autorais de um livro sobre a turnê. De acordo com a capa do livro, os valores correspondentes aos direitos autorais deveriam ser destinados aos povos indígenas.

A barragem

Os dois homens fizeram as pazes depois que Dutilleux se ofereceu para escrever a biografia de Raoni, que foi publicada em 2010. Naquele ano e em 2011, eles fizeram uma turnê para divulgar o livro e arrecadar dinheiro para os Kayapó. Na época, a construção da gigantesca hidrelétrica de Belo Monte estava em curso, colocando em alerta as comunidades indígenas, preocupadas com a possibilidade de que ela secasse vastas extensões do rio Xingu.

Durante décadas, Raoni e outras lideranças indígenas combateram agressivamente a construção da barragem, alegando que ela deslocaria dezenas de milhares de pessoas. Em reuniões com governantes europeus durante a campanha de 2011, porém, Raoni e Dutilleux não discutiram realmente Belo Monte, segundo Christian Poirier, que estava à frente da campanha da organização sem fins lucrativos Amazon Watch para interromper as obras. Poirier, que já tinha ouvido falar do histórico questionável de Dutilleux na Amazônia, fez uma investigação e considerou que o cacique havia sido mantido longe dos opositores à construção da barragem e recebido traduções de baixa qualidade, e que Dutilleux havia minimizado intencionalmente as objeções de Raoni.Embora Raoni estivesse desesperado para interromper o projeto, Dutilleux disse à imprensa local que esse não era o foco da viagem.

Robert Dardanne, presidente da Association Forêt Vierge, disse à AP que a organização entregou ao Instituto Raoni todo o dinheiro que era devido. A organização forneceu registros indicando a remessa de 14.200 euros (76 mil reais) após a viagem de arrecadação de recursos em 2011 e pouco mais de 80.000 euros (430 mil reais) após a campanha de 2019. Não foram apresentados registros de pelo menos quatro campanhas anteriores, no entanto, sob a alegação de que a legislação francesa só exige que eles sejam conservados por uma década. Raoni e outros próximos a ele dizem que esses valores são insignificantes em comparação aos milhões que Dutilleux lhes havia reiteradamente prometido.

Raoni acusou Dutilleux publicamente em 2016 de tê-lo induzido a assinar um documento mal traduzido, que dificultava a captação de recursos por uma organização sem fins lucrativos concorrente. O cacique também acusou Dutilleux de usar a imagem para fins comerciais.

Em 2019, ele abordou Raoni e se ofereceu para mediar um encontro entre o cacique e o presidente francês Emmanuel Macron, além de outras importantes figuras europeias. Durante as reuniões, Macron concordou em doar um milhão de euros (5,3 milhões de reais) para o Instituto Raoni e outro povo do Xingu. O dinheiro acabou sendo enviado ao Instituto Raoni por intermédio da Agência Francesa de Desenvolvimento e da organização Conservação Internacional.

O rompimento

No ano passado, Dutilleux visitou Raoni e o convenceu a embarcar em uma última viagem para ajudar a promover seu mais recente documentário, prometendo ao cacique que arrecadariam recursos expressivos para o povo. Raoni aceitou a proposta com relutância. A situação já se tornara mais grave na Amazônia. Madeireiros e garimpeiros ilegais ganharam espaço no governo de extrema direita de Jair Bolsonaro e o desmatamento aumentou drasticamente. Mesmo após a eleição de Lula, que prometeu acabar com o desmatamento ilegal, estima-se que 240 hectares da Amazônia brasileira sejam derrubados a cada dia.

Raoni e líderes Kayapó viam as promessas de Dutilleux com ceticismo. Mas aqueles que conhecem o cacique dizem que não se surpreenderam com sua decisão de se unir ao cineasta na Europa.

“Ele vê muito além das disputas mesquinhas entre egos e famílias”, diz o ambientalista francês Philippe Barre, que já trabalhou com Raoni no passado. “O que importa para ele é que os assuntos importantes surjam (...) mesmo que alguém encha os próprios bolsos no processo.”

Os Kayapó mais próximos de Raoni disseram à AP que o cacique finalmente cortou relações com Dutilleux. Como prova disso, destacaram que ele não compareceu à estreia no Rio, em outubro, do filme de Dutilleux, “Raoni: uma amizade improvável”.


 

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