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Pssica, da Netflix, redefine a Amazônia no streaming; leia e entenda

Leia o terceiro texto do professor e pesquisador Relivaldo Pinho sobre a produção literária de Edyr Augusto e a minissérie "Pssica", baseada em seu livro homônimo.

Relivaldo Pinho (especial para O Liberal)

A primeira coisa que você, caro leitor, deve tirar da sua cabeça é tentar comparar, detalhe por detalhe, a minissérie da Netflix “Pssica” que estreou nessa quarta, com o livro de mesmo nome, de Edyr Augusto.

Para quem leu o livro isso parece inevitável, mas tente não fazê-lo. Como você verá, vou me trair a respeito disso mais adiante. Mas uma traição panorâmica, sem detalhes.

E você não deve compará-los não porque o livro não esteja na minissérie, mas porque - isso é um clichê, mas às vezes, – só às vezes, os clichês são necessários – são meios diferentes, para públicos diferentes, com finalidades diferentes.

Dividida em quatro episódios, a produção procura costurar uma trama para ser compreendida, percebida, assimilada. É próprio da imagem comercial gerar essas formas de identificação, reconhecimento, dizemos até torcida, entre o bem e o mal.

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E isso é construído na minissérie sem firulas estéticas. Não procure grandes revoluções estéticas, ou aulas sobre cinematografia com referências que só seu professor (eu me incluo na ironia) conhece. Não é esse o objetivo.

Mas o que ela traz de modo inegável é a representação de outra Amazônia e esse é um dos fundamentos do livro (como todo bom escritor que se trai, já estou comparando). E essa nova forma de mostrar a região, por si só, já seria um motivo relevante.

Relevante por vários fatores. Em primeiro lugar, não só por ser a primeira produção de um streaming mundial a veicular uma literatura da Amazônia Paraense. Em segundo lugar, por marcar, definitivamente, uma nova percepção que contrasta com a visão simplista e reducionista sobre a região.

Sim, é verdade que as temáticas sérias que a minissérie aborda, como tráfico de mulheres, corrupção policial, criminalidade, não devem, nesse caso, ser mostradas como se fossem um documentário com um tom pedagógico.

É possível que alguma reflexão seja mais bem realizada a partir desse modo de mostrar a Amazônia, porque ela é mais impactante, consumível e persuasiva. 

Talvez as pessoas ao verem a minissérie possam, pela primeira vez, se perguntar o quanto daquilo que é mostrado “realmente” acontece.

E a produção, diga-se, em nenhum momento busca esse tom pedagógico. Pelo contrário. Nesse aspecto, ela é realmente fiel à obra na qual se baseou. 

Seu ritmo é realmente muito rápido, tanto das cenas e sequências, como da relação de um episódio com outro.

É isso que faz com que pensemos que uma série que dura pouco mais de 200 minutos, poderia ser vista como um filme, ininterrupto, de uma só espiada, para ficarmos no regionalismo paraense.


Recomendo vivamente que, quando você for ver a produção, tente, como eu, vê-la de um tiro só. É desse modo que você poderá perceber com mais clareza, compreensão e profundidade a ideia de “Pssica”.

Dentro dessa ideia, existem várias ponderações a serem feitas, mas não quero dar spoiler aqui, isso ficará para outro texto. 

Mas é preciso prestar muita atenção como essas temáticas tão importantes para os ativismos de toda ordem, para a academia, para uma certa cultura e para o mercado surgem nas imagens.

Belém está nas imagens, mas seus monumentos são, no máximo, passagens para as cenas. Casebres, palafitas, calçadas entulhadas de gente e comerciantes são os habitantes dessa cidade.

O açaí está presente, mas ele é um meio, não um fim. Não é um discurso. Ele surge como alimento e muitas vezes é batido (moído em uma máquina) e consumido em momentos de profunda dor. 

Os campos do Marajó continuam lindos, mas, neles, carros repletos de bandidos atravessam seus caminhos, prontos para se afogarem em corrupção e tiroteios.

Os barcos da Amazônia continuam a singrar os rios, mas, em um ritmo de faroeste (a referência aqui é o filme “No tempo das diligências”, 1939), ladrões aos gritos, disparando para cima e montados em jet skis, cercam e aterrorizam as embarcações.


E os rios, sempre os rios. Mesmo com tanta violência, suas imagens vistas de cima ou em skyline insistem em trazer algum fôlego entre as cenas.

Mas não se pode reclamar que não esteja algum regionalismo na série. Sua trilha sonora, por exemplo, mesmo em reforço à cena ou em contraposição a ela, sempre está presente. A música adorna a cena, mas, na cena, a canção quase nunca diminui a dor.

É evidente que essa dor e toda a violência possível nas linhas de Edyr Augusto, não podem vir à tona em um tipo como esse de produção, pelos motivos já expostos.

Uma grande produção como essa, e todos os interesses que nela estão envolvidos, precisa ter parcimônia para não tentar ser bárbara demais.

Muitos concordarão e discordarão dessa percepção, exatamente porque a barbaridade, uma barbaridade programada, como já escrevi, é um dos motivos da literatura do paraense Augusto.

É muito provável que os choques das imagens da minissérie sejam suficientes para provocar algum tipo de estranhamento e nos façam pensar, de modo menos monolítico e mais matizado, sobre a região.

Eu sugeriria que em conferências internacionais que tratem sobre a Amazônia, fossem distribuídos a cada comissão um exemplar do livro e que as comissões vissem, em conjunto, os episódios da minissérie.

Talvez assim comecemos (todos nós) a entender que essa Pssica, esse mau agouro dos personagens, não seja uma simples praga jogada ao vento, um sussurro da boca pra fora. Mas sim uma realidade em relação à qual a região precisa contra-atacar.

Leia os dois primeiros textos desta série sobre Edyr Augusto e a minissérie Pssica:

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(Relivaldo Pinho é escritor, pesquisador e professor do Centro Universitário Fibra)