Abdias do Nascimento ganha museu em Inhotim

Indicado ao prêmio Nobel da Paz em 2010, o artista, escritor e professor teve uma longa trajetória na luta contra o racismo.

Camila Martins especial para O Liberal

Um dos maiores artistas brasileiros, Abdias do Nascimento (1914-2011) ganha um espaço especial no museu de Inhotim, em Minas Gerais. O espaço será inaugurado neste mês de dezembro com a exposição “Primeiro Ato: Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra“, na Galeria Mata.

O projeto, que será dividido em quatro atos, traz no primeiro o diálogo entre a obra de Abdias, Tunga e o acervo do Museu de Arte Negra (MAN), em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) e o MAN, que ele fundou. A programação marca os 10 anos da perda do artista e intelectual.

Poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista e parlamentar, dramaturgo, artista plástico e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras, Abdias do Nascimento é responsável pela criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), que atuou no Rio de Janeiro, entre 1944 e 1968. Foi a primeira companhia a promover a inclusão do artista. Praticamente, ele é o pai do ativismo negro no Brasil, que teve a eminência de divulgar a influência africana na arte moderna e a pluralidade da produção artística da diáspora negra. Foi indicado oficialmente ao prêmio Nobel da Paz em 2010. Teve uma longa trajetória trilhada no ativismo e na luta contra o racismo.

“Todo o processo de construção do projeto foi com - partilhado. Não houve decisão unilateral, mas sim consenso entre as duas instituições. A definição de uma exposição que se desdobra em quatro partes, assim como a definição conceitual de cada ato, e as obras presentes na exposição foram decididos em conjunto. Nesse sentido, definimos o projeto geral, que agora passa a se desdobrar na exposição e em programação, sempre a partir do pensamento de Abdias e da coleção que ele formou”, explica Douglas de Freitas, curador do Instituto Inhotim, sediado Minas Gerais.

Arte como expressão da luta de um povo

A viúva de Abdias do Nascimento, Elisa Larkin Nascimento, comenta em entrevista exclusiva para O Liberal, sobre os avanços e retrocessos vivenciados pela população negra ao longo do tempo, em diversas áreas. “Esses avanços precisam ser creditados ao movimento negro, o que frequentemente não acontece. Falamos da ‘implementação das cotas’ ou da ‘adoção de ações afirmativas’, como se fossem fenômenos neutros, definidos por uma instância política superior para beneficiar a população negra. Todas essas conquistas são frutos da organização e expressão política do povo negro. A lei 10.639, de 2003, incluiu na Lei de Diretrizes e Bases da Educação a política de ensino da história e cultura africana e afro-brasileira e das relações étnico-raciais, cada programa que se instituiu, cada passo dado na formação de docentes, cada publicação para contribuir à implantação dessa política se deve aos esforços de pessoas negras mobilizadas, muitas vezes com o apoio de aliados”, afirma.

Elisa é formada em Ciências Sociais, com Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Atualmente é diretora-presidente do Ipeafro, localizado no Rio de Janeiro. Para ela, os negros sempre tiveram voz, a questão é que o mundo das artes se recusava a escutar essa voz ou dar valor às criações de artistas negros, cuja produção ele rotulava de “primitiva”, “ingênua”, “naïf” ou “exótica”.

“Em grande parte, essa produção foi considerada como folclore, artesania ou mero registro etnográfico. O fato de o mundo das artes abrir mais espaço a artistas negros é resultado da luta desses artistas e do movimento negro como um todo, e não da generosidade de uma elite que escolhe a quem quer, ou não quer, dar voz”.

Ela demonstra, no entanto, preocupação com o futuro do protagonismo negro no mercado das artes em geral. “Pessoalmente, eu tenho receio que esse interesse na arte negra seja uma bolha mercadológica num momento específico. Quero estar equivocada. Quero ver o mundo das artes atribuir valor estável e crescente à produção de criadores negros e dos povos originários, cuja visão estética é fundamentalmente ligada à vida e portanto defende e ajuda a compreender as peripécias da relação humana com a flora, a fauna e os biomas. Precisamos dessa visão, neste momento em que assistimos à destruição do planeta pela indiferença e pela avareza humana.

Legado

Com racismo não há democracia. Pensamento que ganhou força na última década, já era defendido por Abdias Nascimento desde 1945, quando o Teatro Experimental do Negro, que ele fundou, organizou a Convenção Nacional do Negro. O Manifesto dessa convenção fazia propostas para a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, em que a democracia se estruturava após o Estado Novo. E novamente, a partir de 1978, quando participou do difícil processo de reconstrução da democracia no final do regime militar.

“Uma ideia de Abdias era difícil e desafiadora naquele momento em que o mundo se mobilizava contra o regime de Apartheid: ele dizia que o racismo brasileiro era pior que o da África do Sul ou dos Estados Unidos, por ser covarde. Na forma da ‘democracia racial’, o racismo brasileiro nega ao povo discriminado o direito de lutar e o convence, em boa medida, de que não há mesmo razão para lutar”, afirma a viúva do artista.

Abdias traz a ideia do genocídio do negro brasileiro no livro publicado em 1978. Há mais de 40 anos, ele dá nesse livro as bases empíricas, históricas e teóricas dessa ideia, fundamental à compreensão do racismo no Brasil. Assim como a ideia do “Quilombismo”, lançado em 1980, no 2º Congresso de Cultura Negra das Américas, além de tratar as bases históricas e culturais para a compreensão do racismo e a construção de um caminho de luta, propõe um modelo de organização da nação a partir do simples princípio democrático. O Ipeafro cuida do acervo de Abdias e das organizações que ele criou. O acervo inclui documentos, fotografias e obras artísticas. Com base no acervo e em parceria com outras organizações, o instituto realiza atividades culturais voltadas à implantação da política de ensino da história e cultura negras.

Abdias e Tunga juntos no primeiro ato “Primeiro ato: Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra” dá início ao projeto e apresenta a obra de Abdias através do trabalho do também célebre Tunga (1952-2016), artista de extrema importância na coleção Inhotim. Abdias Nascimento era amigo de longa data do poeta Gerardo Mello Mourão, pai de Tunga, que cresceu em contato com Abdias e sua obra, e diversas vezes afirmou que as ideias do artista o marcaram profundamente.

“A arte negra é fundamental para o futuro dos museus , no mundo como um todo, de maneira geral. Uma vez que ela é uma arte inclusiva e diversa”, afirma Julio Menezes Silva, jornalista e pesquisador do Ipeafro. Abdias fazia parte da Santa Irmandad Orquídea, um grupo de jovens poetas argentinos e brasileiros que se juntaram nos anos 1930 para uma aventura literária e uma amizade para toda a vida. O poeta cearense Gerardo Mello Mourão era irmão de Abdias pela Santa Orquídea. Sendo Gerardo o pai de Tunga, este era um sobrinho de Abdias. Além da convivência afetiva, eles comungaram ideias e rompiam barreiras. Aos 15 anos, Tunga comentou no jornal Correio da Manhã que a arte negra foi a primeira a romper com as chatas convenções renascentistas na arte. Ele foi entrevistado ao lado do quadro que ele doava à coleção Museu de Arte Negra. A ocasião era a exposição inaugural realizada no Museu da Imagem e do Som naquele ano de 1968, 80º aniversário da abolição da escravatura no Brasil.

Na exposição em Inhotim, passados mais de 50 anos, é possível notar a similaridade entre temas e formas de expressão dos dois artistas, como o círculo e a serpente, a curva e o movimento. Tunga também ganha destaque, quatro anos após a última exposição póstuma, no Masp (O Corpo em Obras). O artista pernambucano é tema de uma ampla retrospectiva no Itaú Cultural, Tunga: Conjunções Magnéticas. A mostra, com curadoria de Paulo Venâncio Filho, reúne aproximadamente 300 obras - algumas inéditas, outras raras, pertencentes a colecionadores privados.

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