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Símbolo centenário da cultura amazônica, redes conquistam público nos espaços da COP 30 em Belém

Item indispensável nas casas paraenses, as redes conquistaram espaço nos novos ambientes de Belém e também o coração de quem passa por eles

Andréia Santana e Bruno Roberto | Especial para O Liberal

A rede de descanso, invenção ancestral dos povos ameríndios, carrega séculos de história e permanece indispensável no cotidiano dos paraenses. Usada sobretudo para dormir ou repousar, ela já serviu também como meio de locomoção e até em rituais fúnebres. Nos novos espaços de Belém preparados para a COP 30, as redes se tornaram parada obrigatória para o público.

Na Green Zone, no Parque da Cidade, a médica Patrícia Arruda aproveitou o disputado redário para descansar após passear pelo local. “Já andamos bastante e conhecemos muitos espaços. Então, dá aquele sono, aquela vontade de dormir depois de comer e quando vimos esse espaço, achamos muito legal. Vale muito a pena”, relatou.

Para ela, as redes são importantes para os paraenses pelo conforto e tradição. “As redes são parte da nossa vida, desde a infância a gente é embalado nas redes pelos nossos pais, pelas nossas mães. Então ela faz parte mesmo da nossa cultura, da nossa vida. Elas trazem um aconchego e é gostoso com o nosso clima”, comenta.

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O estudante Irineu Ivan, de 17 anos, também aprovou o redário e acredita que as redes são importantes, pois são acessíveis. “A rede é importante para o povo paraense justamente por ela ser prática, fresca, de conseguirem colocá-la em qualquer lugar. Além de tudo, ela é acessível mesmo para as pessoas de classe social mais baixa”, argumenta.

O jovem comenta que aprovou o redário no espaço público da Green Zone, pois possibilita que pessoas de várias partes do mundo entrem em contato com a cultura paraense. “Eu gostei muito desse local aqui, porque os estrangeiros conseguem ter essa experiência e um contato maior com a nossa cultura”, explica.

‘Amor’ dos amazônidas por redes é antigo

O amor dos amazônidas pelas redes é ancestral, surgido muito antes da chegada dos portugueses. Foram eles, porém, que registraram os usos desse artefato entre os povos ameríndios que já habitavam a região e levaram as redes para outros lugares do mundo, como explica o historiador Aldrin Figueiredo.

“Os europeus na América, a partir de 1492, começam a identificar e documentar a presença da rede de dormir em diferentes povos ameríndios. A rede passa a interessar esses europeus de várias nacionalidades, e imediatamente ela começa a ter imagens circulando na Europa, a ponto de as tapeçarias de Flandres, onde é hoje a Bélgica, trazerem o desenho de indígenas deitados em redes, até africanos, porque os portugueses levaram também a rede para a Ásia e para a África. Logo viram que era um objeto de uso doméstico de muita utilidade, porque imagina você levar a sua cama para todo lugar. Isso impactou a cabeça dos europeus e ela passou a ser um objeto decorativo. Então não é uma coisa de agora, é uma criação ameríndia que, a partir dos europeus, se expandiu em uma espécie de relação planetária”, explicou.

Embora estivesse presente em toda a América do Sul, era no Brasil que se concentravam os principais relatos de uso das redes. Com o tempo, elas se tornaram um dos símbolos do país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, influenciadas pelo clima quente e tropical, como no Pará.

“A rede existe em toda a América do Sul, mas a maioria dos relatos que a gente conhece são oriundos do Brasil, a ponto de a rede se transformar, e isso talvez seja o mais importante, de um objeto doméstico para um símbolo da identidade brasileira. Então esse é um aspecto importante. Ela passa a ser um exemplo da identidade brasileira e ainda digo mais, exemplo da identidade paraense”, contou o historiador.

“Se a gente pensar na rede nos altiplanos do Peru, onde o clima é mais frio, ela já não é muito adequada. Mas, em lugares mais quentes, como no Brasil e principalmente na Amazônia, era usada o ano inteiro. Nas embarcações, por exemplo, o indígena em uma canoa maior podia amarrar a rede, algo muito comum na vida ribeirinha. Então, o clima do Brasil, sem dúvida, favorece o uso. O Norte e o Nordeste, sendo as regiões mais quentes do país, usam mais do que o Sudeste e o Sul. No Sul, você vê menos redes, exceto no verão, quando aparecem em algumas famílias, mas de forma bem minoritária. Já na Amazônia e no Nordeste, no sertão nordestino, a rede faz parte do cotidiano em todos os meses do ano”, completou.

Rede pode ser feita de materiais diversos

Com a popularização, a rede deixou de ter qualquer associação a classe social e passou a circular em todos os ambientes, distinguindo-se apenas pelos tecidos, qualidade e ornamentação. Segundo Aldrin Figueiredo, o material de fabricação sempre variou, mas a rede continuou sendo um objeto de amplo uso e grande alcance.

“A rede é feita de muitos materiais. Você pode encontrar redes de sisal e de algodão. Desde o período colonial, existe na Amazônia uma cultura de fiar, introduzida quando os portugueses trouxeram as rocas de fiar. Gravuras do século XIX mostram que, no interior de Alenquer, nas áreas mais prósperas do Baixo Amazonas, as pessoas plantavam algodão, colhiam, fiavam e teciam o material para produzir redes. Depois, os portugueses também passaram a pesquisar tintas e a usar pigmentos como o carajuru e outras plantas já conhecidas pelos povos indígenas para tingir os tecidos. Assim surgiram redes de sisal e, entre os séculos XIX e XX, redes de juta, além de modelos feitos com diferentes tecidos, couro, crochê e tricô. Os indígenas, por sua vez, faziam redes de fibras diversas retiradas da mata, mas, com a chegada das tecnologias portuguesas, também passaram a usar o algodão, às vezes com facilidade, às vezes não, porque preferiam suas próprias redes, mais abertas e espaçosas, que permitem melhor circulação de vento”, explicou.

Redes também são parte de rituais amazônicos

Ao longo da história, as redes não serviram apenas para dormir. Elas já foram usadas como objetos de decoração e até como meio de transporte para pessoas abastadas, que eram carregadas em redes por pessoas escravizadas. Na Amazônia, porém, um dos usos mais característicos ocorria nos rituais fúnebres, nos quais as redes substituíam os caixões.

“Pessoas mais simples eram enterradas em redes. Eu cheguei a presenciar isso em Alenquer. Ribeirinhos eram trazidos das canoas em redes e levados direto para o cemitério, enterrados nas redes, assim como os indígenas também são enterrados. A maioria dos grupos indígenas é enterrada nas suas redes. Era uma maneira tradicional que essas pessoas têm e a rede é, inclusive, simbólica, porque tem um contato mais direto com a terra, uma coisa de que aquilo que você usa durante o ano inteiro vai te abraçar no fim”, contou o historiador.

Segundo Aldrin Figueiredo, até mesmo judeus que vivem na Amazônia chegaram a utilizar redes em seus rituais fúnebres. “Os judeus não vão no caixão, não iam no caixão. Então, geralmente, embrulhados em linho e aqui, na rede, na sua rede de dormir. Em ritos religiosos judaicos na Amazônia, você vai ver a rede também no enterro de populações mais simples, mais pobres”, disse.

Parte essencial do cotidiano

As redes continuam fazendo parte do cotidiano paraense, seja na hora de dormir ou no descanso após o almoço, o tradicional “cochilo da tarde”, tão comum entre as pessoas da região Norte.

“A rede está presente desde o nascimento também das crianças. Então, você vai ver redes de casal, de embalar a criança. É um objeto que está muito ligado ao cotidiano e a uma hora do dia, sendo fundamental para aquele sono da tarde, quando depois do almoço você vai descansar ali na rede. Hoje, ainda muita gente tem essa imagem de que a rede não é para dormir à noite, mas para descansar à tarde”, contou.

“A rede continua fundamental. As pessoas sempre vão buscar uma forma de ter uma em casa, seja na sacada do prédio, seja no quarto. Estamos vivendo um período de emergência climática, de muito calor, mas o paraense já tinha esse hábito muito antes disso. A rede divide espaço com a cama, como sempre dividiu, talvez até mais agora por questões de organização, com ar-condicionado e tudo mais, mas continua muito presente”, finalizou.