Bolsonaro preso por golpismo: o encarceramento que reconfigura a direita brasileira
A prisão preventiva de Jair Bolsonaro (PL-RJ), em 22 de novembro, decretada depois que o monitoramento eletrônico registrou uma tentativa de violação da tornozeleira, não é apenas um episódio judicial: é a materialização de uma derrocada simbólica que anuncia a perda de um quase monopólio do voto conservador que ele exerceu desde 2018. A decisão do ministro Alexandre de Moraes, acompanhado pela Primeira Turma do STF para manter a medida, reforçam que o Judiciário entendeu a violação como indício concreto de risco de fuga e de ameaça às medidas cautelares impostas ao ex-presidente.
Logo em seguida, no dia 24 de novembro, com o trânsito em julgado da condenação pela coordenação no plano golpista que teve seu ápice nos episódios de janeiro de 2023, Bolsonaro e os outros integrantes do núcleo crucial começaram a cumprir sua pena de 27 anos e três meses em regime fechado. A sentença e a sua execução em regime inicialmente fechado mudam o patamar político: política não deixa vácuo e começa a briga pelo espólio de votos de Jair Bolsonaro.
Esse duplo movimento – prisão preventiva por descumprimento de medidas e execução de pena por crime institucional – cria um vácuo imediato no campo bolsonarista. Mas o que parece, à primeira vista, uma simples dispersão de liderança é na verdade uma crise orgânica: o bolsonarismo não é apenas um conjunto de propostas, é uma relação de fidelidade personalista, construída em torno de um líder que era incansavelmente protagonista nas redes, nas ruas e nas instituições. Sem Bolsonaro para narrar, convocar e personificar a causa, a trupe vê reduzida sua coesão e a dinâmica de captação de novas adesões – sobretudo entre eleitores que se movem por carisma mais do que por programa. Os filhos do ex-presidente – o senador Flávio Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro –, por diferentes motivos, não parecem dispor de força política para herdar a liderança do país. Jair Renan, o “04”, atualmente vereador na cidade catarinense de Balneário Camboriú, não guarda em si nenhuma representatividade política. A esposa de Jair Bolsonaro, Michelle, corre por fora na luta por essa herança de votos, podendo se candidatar ao Senado.
Imediatamente começaram a surgir esforços de recomposição: caciques partidários, governadores de perfil pragmaticamente conservador e figuras do centrão trabalham para recompor um espaço que preserve votos sem carregar o peso do bolsonarismo radical. Pesquisas recentes já mostram Lula (PT-SP) à frente de todos os potenciais adversários da direita para 2026, o que indica que a direita ainda não consolidou um sucessor com densidade eleitoral comparável – e precisa negociar entre disciplina partidária, aliança com figuras militares moderadas e retórica menos beligerante para recuperar competitividade. Esse rearranjo é tanto estratégico quanto psicológico: trata-se de traduzir uma base de protesto em uma base eleitoral sustentável e institucionalizada.
A ausência de Jair Bolsonaro e a marginalização tática de seus filhos no centro da articulação política forçam escolhas dolorosas. Por um lado, há quem vede a continuidade familiar como risco de herdar os mesmos vícios – liderança personalista, litígios judiciais e eleitoralismo “incendiário” – e, por outro, existe quem considere que abandonar por completo o espólio eleitoral seria renunciar a milhões de votos disciplinados. O dilema é claro: tentar reproduzir a liturgia do líder encarcerado, com candidatos que funcionem como sua réplica simbólica, ou reconstruir uma direita que admita renovação programática e estilos de comando menos centrados na confrontação permanente.
As movimentações que já se desenham no tabuleiro político — negociações internas no PL, aproximações entre líderes regionais e figuras do centro-direita, e sondagens de nomes sem a estilhaçada imagem de 2022— mostram que a disputa pelo “espólio” será sobretudo de narrativa e tradução eleitoral.
Nesse novo cenário, nomes com peso estadual começam a disputar abertamente a herança política deixada pelo ex-presidente. Governadores como Tarcísio de Freitas, em São Paulo, e Cláudio Castro, no Rio de Janeiro — ambos diretamente associados ao bolsonarismo — buscam se apresentar como herdeiros naturais do campo conservador radical. Já Romeu Zema, em Minas Gerais, e Ratinho Júnior, no Paraná, adotam estratégia mais pragmática: miram o eleitorado de direita sem assumir integralmente o legado bolsonarista, preservando margem de diálogo com o centro. Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, tenta ocupar o espaço de uma centro-direita liberal que recupere votos conservadores moderados, enquanto Ronaldo Caiado, em Goiás, articula-se como figura de autoridade tradicional capaz de dialogar tanto com o agronegócio quanto com setores religiosos. Para Caiado, talvez faltem votos em escala nacional. Todos, cada um à sua maneira, movem-se para captar o espaço deixado pela implosão da liderança personalista de Bolsonaro e converter sua base dispersa em capital eleitoral para 2026.
Há, ainda, um componente institucional a considerar: responsabilizar atores políticos por tentativas de ruptura democrática impõe um precedente. A pressão por anistia, narrativas de vitimização e teorias da conspiração seguem sendo tentadas – e a forma como a sociedade, os tribunais e os partidos responderem a essas tentativas dirá muito sobre a capacidade de consolidar normas republicanas no pós-Bolsonaro.
Se olharmos para além do curto prazo eleitoral, o que está em jogo não é somente a disputa por votos, mas a reconstrução do pacto democrático. A retirada de cena de um líder carismático, agora condenado e presidiário pelos crimes cometidos contra a democracia, exige da política um salto: transformar a reação emotiva em institucionalidade, a lealdade pessoal em compromisso programático e a polarização em competição por ideias.
Há riscos claros, com a fragmentação, mas há também uma oportunidade rara para testar se o sistema político brasileiro aprendeu as lições entre 2018 e 2023. Normalizar alguém com o histórico e com a postura desrespeitosa com pessoas e instituições, como Jair Bolsonaro, pode ter sido um grande erro civilizatório da classe política e de segmentos significativos da imprensa e da sociedade brasileiras.
Por fim, a pergunta que fica é simples e incômoda: conseguiremos traduzir esta vitória da lei em uma vitória duradoura da democracia, virando essa triste página da nossa história republicana?
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