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O novo vício

Patricia Caetano

A inteligência artificial entrou na nossa vida sem pedir licença. Chegou de mansinho, como quem visita uma casa já cheia, curiosa, atenciosa, oferecendo ajuda. “Posso escrever por você?”, “Quer que eu organize sua agenda?”, “Quer que eu desenhe o futuro?”. E nós, cansados de tanto pensar e correr, deixamos. Era prático, rápido, fácil. E agora cá estamos, conversando com máquinas como quem fala com um velho amigo.

É curioso: passamos anos reclamando da falta de tempo e, de repente, temos uma ferramenta que o dobra, multiplica, costura e mesmo assim seguimos sem tempo. Talvez o problema nunca tenha sido o tempo, mas o que fazemos com ele. A inteligência artificial virou nosso novo vício: elegante, silencioso, útil. Ela nos escuta sem julgar, responde sem pausa, entende sem emoção. E isso, de certo modo, é assustador. Somos seres moldados pelo olhar do outro, pela pausa na conversa, pela dúvida que nos obriga a pensar. A IA, com sua perfeição calculada, oferece o contrário: o conforto do acerto imediato, o alívio de não precisar errar.

Mas errar é o que nos faz humanos. É o tropeço que ensina, a pausa que faz respirar, o não saber que move o aprender. Outro dia percebi que passei mais tempo pedindo ideias ao ChatGPT do que conversando com uma amiga. E pensei: desde quando a facilidade virou prioridade absoluta? Quando trocamos o olhar por um cursor piscando? Não demonizo a IA, seria hipocrisia. Uso, testo, aprendo com ela todos os dias. Mas há um risco sutil: a dependência não da tecnologia, e sim da sensação que ela oferece, o controle sobre quase tudo. Com a IA, tudo parece possível, previsível, perfeito. Só que a vida não é.

A vida tem arestas, ruídos, silêncios. A IA não hesita, não gagueja, não se contradiz e talvez por isso estejamos gostando mais dela do que de gente. Lidar com gente exige tempo, paciência, escuta. A IA, não. Ela dá respostas prontas e nunca pede nada em troca, além de atenção. E atenção é justamente o que temos negado a nós mesmos. O perigo não está em usar a IA, mas em esquecer como viver sem ela. Esquecer de pensar antes de perguntar, de criar antes de pesquisar, de sentir antes de escrever. A IA pode até entender o que é amor, mas nunca vai sentir um arrepio. Pode descrever o pôr do sol, mas nunca vai sentir o seu calor e se emocionar com o cheiro da chuva. Pode reproduzir poesia, mas jamais saberá o que é escrever porque precisa desaguar. A máquina é ferramenta, não refúgio. Pode até iluminar o caminho, mas o passo ainda é nosso. Gosto de imaginar um futuro onde ela seja só parceira, não substituta onde sobre tempo para o que é humano: o abraço, o riso, o improviso.

Pra isso, precisamos voltar a escutar o silêncio, esse espaço entre uma ideia e outra, entre o pensar e o sentir. A IA, com sua pressa, tem ocupado até esse intervalo. Tem gente que acorda e pergunta à IA o que fazer do dia. Eu, às vezes, pergunto ao céu. Ele não responde, mas sinto e ele sempre muda de cor. E nessa mudança silenciosa há uma sabedoria que nenhuma máquina simula.

A tecnologia vai evoluir e ainda bem. Mas que a gente não desaprenda a pausar, a olhar, a duvidar. Que não perca o prazer de errar com alma, de tentar com medo, de conversar sem roteiro. Porque, no fim, o verdadeiro milagre da inteligência não está na máquina que cria, mas no humano que sente.
E que bom que, por enquanto, sentir ainda não é programável.

PATRÍCIA CAETANO 
patymops@gmail.com 
@patyccaetano