Sobre o querer fazer, o poder fazer e o dever fazer — a ética como liberdade virtuosa
Uma das definições mais completas sobre ética que já ouvi é a do filósofo Mário Sérgio Cortella, dada por ocasião de uma entrevista ao humorista Jô Soares. Ao responder à pergunta sobre “O que é ética?”, formulada pelo humorista, Cortella apresentou essa extraordinária síntese:
– “A ética é o conjunto de valores e princípios que você e eu usamos para decidir as três grandes questões da vida, que são: quero, devo, posso? Isso é ética!”, disse ele, acrescentando que, pessoalmente, usa os seguintes princípios à sua vida:
– “Quais os princípios que eu uso? Tem coisas que eu quero, mas não devo; tem coisas que devo, mas não posso, e tem coisas que eu posso, mas não quero”, afirmou, estabelecendo aquilo que posso qualificar como tríade comportamental relacionada ao querer fazer, ao poder fazer e ao dever fazer – trindade que repercute no estado de espírito da pessoa:
– “Quando que você tem paz de espírito?”, indagou ele ao humorista, para em seguida complementar o raciocínio argumentativo:
– “Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é o que você pode e é o que você deve. Tem coisa que eu quero, mas não devo, tem coisa que devo, mas não posso; tem coisa que eu posso mas não quero. O que é ética? é o conjunto de valores que você usa pra decidir isso.”
A partir dessa definição, quero associar a ética à virtude. Isso aparentemente pode ser óbvio, mas é bem mais profundo, porque envolve a liberdade de escolha e, portanto, define o caráter da pessoa.
A ética – todos sabemos pelo senso comum – é um conjunto de valores que a pessoa escolhe para viver e para estabelecer relacionamentos sociais com seus semelhantes.
Mas, a ética – por deduzir um prévio conceito moral relativo ao valor adotado como regra social aceita pela sociedade para regular comportamentos humanos – teleologicamente é a característica maior e mais profunda que marca ou revela a conduta humana.
Clóvis de Barros Filho, num colóquio sobre “Felicidade ou Morte” com Leandro Karnal – dois pensadores extraordinários do nosso tempo – disse que “Cada um de nós tem uma definição de si mesmo e acaba circunscrevendo a vida em função disso”. É verdade! Mas, a questão em nosso entorno é saber: qual a percepção que os outros têm a nosso respeito? Ao mesmo tempo em que circunscrevemos também estamos circunscritos nos muros morais entre os muros sociais.
Então, a percepção de si mesmo é a mesma coisa que se olhar no espelho mágico e se perguntar como o fez a rainha má – aquela da fábula da “Branca de Neve e os Sete Anões”, dos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm): “Fala, espelho meu, quem é mais bela do que eu? Ela se acha a mulher mais bela do reino. Logo, está circunscrita ao seu mundo egocêntrico. Mas o espelho, ainda que amedrontado, responde que existe uma mulher mais jovem e mais bela: a Branca de neve.
Na nossa conversa com o nosso espelho, queremos a resposta física que nos agrada. É uma espécie de ética egocêntrica. Então, diz-se no sendo comum: fulano de tal não tem escrúpulo. A afirmação quer dizer que a pessoa não possui essência moral, porque o seu caráter não é virtuoso. Portanto, a pessoa não elege a ética como valor de sua vida.
E, por outro lado, ouve-se dizer: fulano de tal é uma pessoa ética, não vende a própria alma para obter qualquer tipo de vantagem material. Nas duas afirmações, observe-se bem, estamos diante de escolhas de valores humanos.
O pensamento exposto por Cortella é muito profundo, porque diz respeito ao livre arbítrio. A tríade o querer fazer, o poder fazer e o dever faze – do que pode ser razoavelmente interpretado – então compõe as regras básicas e essenciais não apenas às escolhas humanas ao modo de vida, mas também, se projeta à paz de espírito, aqui compreendida como a vida sem graves problemas de ordem moral que possam afetar e tirar a paz de consciência.
A pior coisa, do ponto de vista moral, que pode acontecer ao ser humano é a perda da nobreza da alma. E por quê? Porque, circunscrito naquela situação de conteúdo e continente, a pessoa pode chegar a desconfiar de seu próprio caráter; poderá não ser acreditada entre os seus, tampouco por terceiros será reconhecida como ética.
Como disse Cortella: “A paz de espírito” está relacionada à escolha consciente acerca daquilo que se quer é o que se pode e deve fazer. Portanto, está no campo do dever-ser moral. Contudo, por essa perspectiva, a — a expressão “paz de espírito” pode ser adotada como a serenidade da alma, de que trata Lúcio Sêneca ( O moço) na obra “Sobre a brevidade da Vida” — serenidade que advém da sabedoria das escolhas éticas.
Digo que se trata de tranquilidade (ou a paz) da Alma (diferentemente e paz de Espírito) porque Alma e Espírito são distintos. Tomás de Aquino, em “A Física dos Anjos” e de Richard White, em “Os filósofos espirituais” apresentam conceitos diferentes.
“Alma” – no conceito de Tomás de Aquino – “é a parte sensitiva do corpo que produz a sensibilidade humana ou a Alma racional, relacionada ao princípio da razão”, enquanto que o Espírito “é o próprio Anjo, um Ser espiritual com missões distintas da Alma humana.”
Para White, a Alma é profunda e a marca maior do ser humano e o Espírito é a própria transcendência pelas escolhas, mas o eu ou a Alma pode ser negligenciada. “A Alma é a chave para descobrirmos quem somos e o espírito é a dimensão celestial de cada pessoa”, diz White.
Então, quando Cortella adota a traída ética comportamental ( o que se quer, o que se pode e que se deve fazer) como condição da “paz de espírito”, a rigor, posso interpretar que essa tríade seria essencial tranquilidade da alma, à medida em que a Alma – parte sensível e racional – é a porta pela qual o Espírito (ou Ser de Luz Celestial se comunica com o ser humano.
A ética, nessa perspectiva, é o caráter moral constitutivo e indispensável para a serenidade de Alma e, em última referência ou instância, é essencial à evolução espiritual do indivíduo, cuja evolução também indica que a ética é uma base moral das vontades de fazer o bem ou de fazer o mal.
Pode-se então afirmar que a ética, sendo uma escolha virtuosa, é o resultado da racionalidade da Alma humana. Desse modo, a ética nos passa a sensação de liberdade para o bem ou para o mal. E, por isso, por toda a existência – aqui é um delimitado espaço temporal da vida – buscamos um sentido ou significados especiais (baseados em valores) para a nossa serenidade de alma, que é a paz de espírito, que é a felicidade existencial.
Se a tríade comportamental é ignorada ou colocada de lado, o desprezo ético representa o desassossego ou a inquietação espiritual ou, ainda, a infelicidade da alma). E isso resultará que o sofrimento ético é o próprio sufocamento da alma e a negação da evolução espiritual.
A ética é, por conseguinte, pressuposto à paz de Espírito (pelas boas escolhas), que é pressuposto da serenidade da Alma, que é pressuposto da evolução espiritual, que é pressuposto da felicidade. A ética é um valor destinado à felicidade!
-----------------------
ATENÇÃO: Em observância à Lei 9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma: MORAIS, O.J.C.; Instagram: oceliojcmoraisescritor
Palavras-chave