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As orquídeas deixam a primavera com um perfume da alma

Ocelio de Moraes

Toda alma tem uma flor, a flor que a perfuma e a embeleza, para os bons propósitos da vida: expandir o néctar da bondade a quem desejar compreender a sua essência. Orquídea é a  flor da minha alma.

No romance   "Hamlet”, William Shakespeare usou as orquídeas para representar “os amores-perfeitos” e também para simbolizar os pensamentos de loucura da personagem  Ofélia. Dinamarquesa, a jovem desperta a paixão do príncipe Hamlet.  Mas, por causa das palavras e ações desprezíveis do príncipe e devido às pressões políticas do pai (Polônio) – que a queria vê-la casada com o príncipe –, ela ficou louca, tendo um final trágico: morreu afogada ao cair no rio, porque o galho do salgueiro quebrou, quando tentava pendurar nele grinaldas de botões-de-ouro, urtigas, margaridas e orquídeas. 

Não apenas em relação às orquídeas, mas também quanto à simbologia de outras flores – “Columbinas” (amor abandonado e ingratidão), “Funcho” (decepção, falsidade e a traição), “Margaridas” (inocência e pureza), “Violetas” (fidelidade, lealdade e modéstia), “Alecrim” (lembrança e luto), “Rosas” (amor, beleza e pureza) e “Salgueiro” (amor abandonado e tristeza) – referidas pelo autor, somente tomei conhecimento quando li o romance, pela primeira vez, nos meus tempos de Seminário São Pio Dècimo em Santarém. 

Na nostalgia da minha infância, lá na zona rural de Monte Alegre, por óbvio, nem sabia da existência de Shakespeare, tampouco que tivesse escrito “Hamlet” entre 1599 e 1601 – um século depois do descobrimento do Brasil em 1500 – conferindo às orquídeas a simbologia contraditória dos amores-perfeitos e da loucura da donzela Ofélia. 

Nas áreas rurais da Sulfurosa, do Jacaré, do Ipiranga e da Serra do Itauajuri (Serra Azul), a gente dizia que as orquídeas eram “flores preguiçosas”, porque cresciam (e ainda crescem)  sobre outras plantas. Das espécies naturais de orqídeas, nos campos tropicais da Amazônia, prevalecem as Cattleya violacea, nas cores lilás e rosa.  Assim afirmam os botânicos, os entendidos na vida das flores. 

E o conhecimento popular tinha as orquídeas como propriedades medicinais: elas eram utilizadas como remédios caseiros tradicionais para controlar dores de cabeça, problemas digestivos e respiratórios, como cicatrizantes, anti-inflamatórias e analgésicas.  Com essas finalidades, ainda são utilizadas nos dias atuais, segundo a farmacologia moderna. 

Na colônia da minha infância, em Monte Alegre, o pé da Serra Azul era o canteiro natural das orquídeas; mas, entre setembro e novembro, no auge da primavera amazônica – o período da renovação e de retomada da atividade na floresta –  por quase todos os lados, elas adornavam aqueles campos tropicais, já naturalmente viçosos e envolventes pela diversidade dos biomas.

A Serra Azul  se perdia no horizonte da vista como uma majestade elevada num trono naquele cerrado (solo arenoso e clima sazonal) “pinta-cuia”, a alcunha montealegrense, herdada dos povos indígenas Gurupatuba. Era uma espécie de encantamento, porque – além da sua beleza natural com uma altitude de 300 metros acima do nível do rio Gurupatuba – pelas entranhas da montanha percorriam (e ainda percorrem) igarapés cachoeiras. La, ao pé da Serra Azul – quando setembro chega – as orquídeas são mais viçosas e dominantes, parecendo um vale encantado, misturando-se à floração de outras espécies.

Um parêntesis: a Serra Azul é, originalmente, a Serra do  Itauajuri, o nome dado pelos indígenas da etnia Gurupatuba, os povos que habitavam a região antes da chegada dos frades capuchinhos de Santo Antônio, por volta de 1620, apenas quatro anos, depois da fundação da Feliz Lusitânia (atual Belém do Pará) pela expedição militar de Francisco Caldeira Castelo Branco em 12 de janeiro de 1616. Fecho o parêntesis

Como a corrente de ar vinha no sentido anti-horário, como sempre ocorre no hemisfério Sul, as manhãs daqueles tempos pareciam mais felizes e as noites mais encantadoras sob o brilho de uma infinitude de estrelas.  

Até parecia que a primavera era somente das orquídeas, porque todas as manhãs e à tardinha, o frescor da brisa espalhava o seu  leve e suave perfume por toda a redondeza. 

Até o sono chegar, e envolvido pelo seu perfume  noturno, a diversão era localizar as constelações do Cruzeiro do Sul e as Três Marias, e  conferir as estrelas como se fossem os carneirinhos do imaginário popular  ao relaxamento  do corpo e da mente.

Por tudo isso, com o seu aroma e com as suas cores lilás e rosa predominantes, ao contrário de Shakespeare, as orquídeas sempre foram orquídeas, para mim.  Também por isso, não se pode negar que  as orquídeas deixam a primavera com um perfume da alma:  suas cores  branca, roxa, amarela, rosa, azul e vermelho –  dependendo da região –  harmonizam a natureza como nenhum decorador pode imaginar ou  fazer. Certamente, essa é uma das razões por que, em todas as primaveras das orquídeas, a alma sempre parece estar mais expressivamente feliz. 

As orquídeas de setembro  são as flores da minha alma. Elas estavam lá, aromatizando o setembro da minha chegada ao mundo e, desde então, e por todas as primaveras de minha existência,  elas  continuam me  dando este recado especial:  a felicidade é o caminho que escolhemos para vivermos com e pelos bons propósitos – boas escolhas e bons princípios  que  nos ajudam a enfrentar e superar os  problemas que vão se interpondo no curso da vida. 

E você caro leitor, qual a flor que embeleza  e perfuma a sua alma e os seus bons propósitos de vida? 

ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma: MORAIS, O.J.C.;  Instagram: oceliojcmoraisescritor