JAMILLE SARATY

É advogada, mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, pós-graduada em proteção de menores pelo Centro de Família da Universidade de Coimbra, membro da diretoria do IBDFAM-PA, professora de graduação e pós-graduação em Direito. | jsaratyadv@gmail.com

O trabalho doméstico invisível da mulher conta?

Jamille Saraty

O sustento dos filhos deve ser provido por ambos os pais, na mesma proporção, levando em consideração a possibilidade financeira de cada um. Essas regras estão contidas nos artigos 229 da Constituição Federal e artigo 1.694 do Código Civil, além de serem ratificadas nos artigos 1.566 e 1.631 do mesmo Codex. A interpretação dessa igualdade no dever de sustento, até os dias atuais, não levava em consideração a perspectiva de gênero nas relações familiares, que em nosso país, ainda é bastante díspar.

Uma família nomeadamente patriarcal prosperou a chefia masculina absoluta até a promulgação de nossa Carta Magna democrática de 1988, ao conferir direitos iguais para ambos os sexos, garantindo à mulher liberdade e autonomia, porém, mantendo exclusivamente ao feminino as tarefas domésticas e familiares.

Após a Constituição de 88, a mulher vem veladamente acumulando funções para alcançar a igualdade formalizada em lei. Ela pode ter uma carreira profissional, desde que dê conta, com sucesso, de sua casa, família e marido. E em seu fracasso, suporte sozinha a família descontruída.

Nesse cenário, mulheres em conflito familiares, durante muito tempo, amargaram decisões que não contemplavam o seu contexto familiar de dupla jornada de trabalho, e que desprestigiavam o trabalho doméstico familiar que elas realizavam, lhes deixando sempre em desvantagem.

A autonomia feminina tinha um preço, dar conta com sucesso da casa. E essa premissa fez com que pensão alimentícia fosse fixada em valores que mal suportavam a subsistência das crianças, sob a argumentação de que, se elas trabalhavam, deveriam suportar metade das despesas dos filhos. Não se contabilizava o tempo afetivo, as ocupações múltiplas maternas (motorista, animadora, costureira, professora, psicóloga etc.), a estruturação de um lar, a salvaguarda, o cuidado. 

O trabalho doméstico da mulher foi invisibilizado não contabilizado e completamente descartado, mesmo após a vigência da Constituição Federal, até os dias atuais. Isso serve de exemplo para afirmar que até o presente momento, ainda deve-se falar e cuidar dos direitos das mulheres. 

Em 2021 o Conselho Nacional de Justiça lançou o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, com objetivo de conscientizar o judiciário sobre realidade da mulher chefe de família, alcançando decisões mais ajustadas com a realidade brasileira sem sobrecarga da mulher.

No último ano, o protocolo com perspectiva de gênero se mostrou presente nas demandas de processos de família em que versam sobre alimentos, contabilizando o tempo de trabalho doméstico na conta da pensão. A exemplo, o Tribunal do Paraná ponderou que as atividades domésticas realizadas pelas mães que residem com os filhos, criam sobrecarga que retira da mulher a oportunidade não apenas no mercado de trabalho, mas no aperfeiçoamento cultural e na vida pública. Na mesma tendência, a 1ª Turma de Direito Privado Tribunal do Pará, em decisão inédita em 2024, reconheceu que genitor possuía maior capacidade de trabalho em relação à genitora, considerando que ela teria que conciliar a maternidade com a vida profissional.

As decisões judiciais, sobretudo em conflitos familiares, que prestigiem a perspectiva de gênero, levando a contextualização da realidade familiar, são muito importantes para a efetivação da equidade não apenas legal, mas fática da sociedade.

Trabalho doméstico conta sim, e ele custa caro, ele custa uma vida inteira.

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