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JAMILLE SARATY

É advogada, mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, pós-graduada em proteção de menores pelo Centro de Família da Universidade de Coimbra, membro da diretoria do IBDFAM-PA, professora de graduação e pós-graduação em Direito. | jsaratyadv@gmail.com

Filho de criação tem direito a herança?

Jamille Saraty

Raimunda era uma mulher de 45 anos que tinha uma vida pacata até a morte de sua mãe, dona Ana, quando ainda no velório, foi convidada a se retirar imediatamente da casa em que sempre morou, pelos seus irmãos, José e Alberto. Sem entender, Raimunda questionou aos dois seus direitos de herança sobre a casa e os demais bens da mãe, quando teve a notícia reveladora de que ela era uma mera filha de criação e não tinha qualquer direito na sucessão de dona Ana.

Mas afinal, o que era uma filha de criação? Raimunda sempre foi chamada de filha por dona Ana, foi criada na mesma casa e com mesmos cuidados de José e Alberto e para ela isso bastava, nunca se importou do nome de Ana não constar em sua certidão de nascimento, para Raimunda isso era um mero detalhe, o que importava era a relação de cuidado e afeição que ambas tinham uma pela outra. Ela nunca imaginou que essa falta de documentação poderia mudar o rumo da vida dela de vez.

Os Filhos de criação são sujeitos bastante presentes na família brasileira; às vezes é um enteado criado pelo padrasto, um sobrinho que foi morar com a tia desde criança, ou ainda uma filha de uma funcionária que não tinha condições de ficar com a criança. Pessoas tratadas como filhos sem sê-los biologicamente ou civilmente (adotados), mas estão lá, em estado de posse de filho, ou seja, sob a responsabilidade de alguém que cumpre o múnus da autoridade parental, criando laços de afeto, mas sem qualquer garantia jurídica.

Os filhos de criação não têm relação jurídica com os pais de criação e precisam regulamentar o quanto antes, para evitar que sejam preteridos de quaisquer efeitos da filiação, sobretudo os efeitos patrimoniais muitas das vezes roubados pelos herdeiros legítimos.

No caso de Raimunda, foi ela quem dispôs de uma vida para cuidar da mulher que enxergava como mãe, e quando da sua morte, a falta de regulamentação lhe deixou à mercê de qualquer direito, conferindo tudo aos irmãos que apesar de ser filho biológico, não tinham o mesmo compromisso com a genitora.

A sucessão brasileira privilegia a hereditariedade, conferindo direitos quase que absolutos aos sucessores numa escala de parentesco (Arts. 1. 829; 1.845 do CC), deixando pouco e coadjuvante espaço para a autonomia privada, na sucessão testamentária, pouquíssimo utilizada no Brasil. Isso quer dizer que, na falta de um planejamento sucessório, prevalece a lei, que confere direito à família formalizada, o que naturalmente deixa de fora aqueles que se mantiveram em relação informais, caso de nossa protagonista, Raimunda que vivendo na informalidade, será afastada da sucessão.

A boa notícia é que a relação de afeto familiar já pode gerar efeitos jurídicos, através do reconhecimento de maternidade ou paternidade socioafetivos, que é a regulamentação jurídica do estado de posse de filho envolvendo um pai/mãe e filho de criação (afetivo). Essa validação solene garante direitos aos filhos socioafetivos da mesma forma daqueles que foram concebidos ou adotados na forma da lei (art. 1.596 do CC).

Atualmente o provimento 83 de 2019 do Conselho Nacional de Justiça garante que o reconhecimento de filiação socioafetiva pode ser feita mediante cartório e até dispensa a presença de um advogado. No entanto, Raimunda não poderá fazê-lo, pois a sua mãe já faleceu, tendo que ajuizar ação judicial de reconhecimento de filiação socioafetiva póstuma, e provar a relação de afeto que existia entre mãe e filha, para assim ser reconhecida como filha e herdeira, um caminho árduo e demorado, sem dúvida, mas que não deixa mais Raimunda à margem do Direito das famílias.

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Jamille Saraty
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