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Entenda os riscos reais sobre cores, ideologia de gênero e as falas de Damares

Psicóloga explica que há muitas implicações diferentes em determinar estereótipos sobre como meninas e meninos devem ser

Victor Furtado

Na primeira semana do governo Bolsonaro, várias medidas polêmicas foram anunciada: demarcação de terras indígenas e quilombolas feitas pelo Ministério da Agricultura; possibilidade de extinção da Justiça do Trabalho; salário mínimo abaixo do valor previsto pelo governo passado; extinção dos ministérios da Cultura e do Trabalho; fim de programas de combate à fome; decreto de facilitação à posse de armas; e a retirada da população LGBTI das políticas de Direitos Humanos. Entre várias outras. Mas o que realmente dividiu internautas ávidos por polêmicas foi uma fala da ministra Damares Alves: "meninos vestem azul, meninas vestem rosa".

Em meio às discussões nas redes sociais digitais, até mesmo a oposição ao governo Bolsonaro se viu dividida, achando que havia pautas mais polêmicas a serem debatidas. Mas especialistas em psicologia e educação infantil dizem que é necessário, sim, cuidado essa afirmação sobre cores e a perpetuação de desigualdades, estereótipos de gênero, machismo, LGBTIfobia e da falta de liberdade de ser e pensar. São questões constantemente debatidas por pessoas e grupos ditos "de esquerda", que compõem a oposição ao atual presidente. O primeiro risco então seria estancar o ritmo já lento de mudanças históricas em prol da igualdade de gênero.

Historicamente, nem sempre azul foi cor associada a meninos e rosa a meninas. Mudanças culturais, ideológicas e políticas foram transformando os conceitos atrelados às cores. Num determinado período, explica a psicóloga Bárbara Sordi, professora mestre da Unama e coordenadora do grupo "Relações de gênero, feminismos e violências", a cor dos meninos era a vermelha. Isso por conta da associação à agressividade, ao sangue. Às meninas, o azul já foi representativo por lembrar de um perfil calmo, celestial, angelical. Ela destaca que algumas coisas consideradas naturais, hoje em dia, nem sempre foram tão naturais. E nem tudo que é cultural hoje existe à toa. É reflexo de processos, histórias, relações de poder e transformações sociais.

Bárbara destaca que crianças não namoram. Logo, atribuir a cores ideias de sexualidade e de desejo para identificar gêneros, é forçar algo não ainda não natural. Achar que nunca vestir uma menina com azul, ou outra cor considerada "masculina", vai evitar ela se torne lésbica ou mesmo trans, é pura ilusão. É criar diferenças, separações e rupturas desde cedo. Culturalmente, a criação de meninos e meninas ainda é cercada de tradicionalismos e estereótipos que pouco ajudam no desenvolvimento das crianças, critica a psicóloga.

A professora cita uma pesquisa realizada em Madri (Espanha), com o objetivo de identificar os resultados de estereótipos de gênero na criação de meninas. As meninas entrevistadas, quando questionadas sobre o que gostariam de ser quando crescessem, respondiam: atriz, professora, estilista... profissões ligadas ou ao cuidado materno, expressão ou estética. Quando perguntadas sobre o que iriam querer se fossem meninos, as respostas se transformavam: cientistas, astronautas... E Bárbara questiona "por que mulheres não podem idealizar essas profissões consideradas de homens?".


 

SEPARAÇÃO DE BRINCADEIRAS, ESPORTES E INTERAÇÕES SOCIAIS

Meninas dificilmente ganham brinquedos de construção, criatividade, lógica e observações espaciais, como Lego, carros e quebra-cabeças, por exemplo. Costumam receber mais brinquedos relacionados a família, casa, cuidado, moda, estética. Bárbara associa esse padrão cultural à baixa identificação de mulheres com profissões da área de Exatas. Claro, isso vem sendo desconstruído historicamente e as salas de aula de cursos de Engenharia e Informática não são mais exclusivamente masculinas. Assim como as salas de Enfermagem, uma profissão considerada feminina, tem muitos homens hoje em dia.

Enquanto meninos ganham armas de brinquedos, recebem estímulos de comportamentos agressivos, fazem esportes mais ágeis e de força, as meninas ficam sentadas, de pernas cruzadas e precisam ser comportadas, bonitas e não podem sequer suar "porque é feio menina suada, brincando com meninos e ficando fedorenta". Para crianças, algumas atividades e brincadeiras ajudam nos estímulos e desenvolvimento de habilidades diversas de coordenação motora, organização de equipe, liderança, noções de espaço. Limitar o que podem fazer, é limitar o que crianças podem aprender, desenvolver e ser é limitar as possibilidades de futuro.

Aí Bárbara observa: até mesmo dentro de escolas, há divisões culturalmente desiguais entre meninos e meninas. Principalmente nas aulas de educação física. Geralmente, meninas e meninos não praticam esportes juntos. Depois, os meninos costumam ficar com as maiores partes dos ginásios e quadras para jogar futebol, basquete ou vôlei. Isso quando não ficam com o espaço todo. Às meninas, muitas vezes, sobram espaços menores para prática de aeróbica e queimada. Também são costumes em transformação, mas ainda muito comuns.

"Isso tudo é prejudicial a ambos. Meninos são criados para serem agressivos, fortes e reprimirem sentimentos e expressão. Já as meninas são criadas para serem passivas, quietas, com mais interação social entre meninas. Homens adultos não costumam falar de si. Mulheres adultas sim. Por isso tantos homens morrem por suicídio, por não gostarem de se expressar e nem procurar ajuda. Homens morrem por câncer de próstata pelo medo do toque no ânus, para um exame médico, ser associado à homossexualidade. Já mulheres, com medo de não serem competitivas socialmente e arranjar um parceiro, ficam com medo de serem feias e até desenvolvem distúrbios alimentares, sofrem com depressão", analisa a psicóloga, mostrando como estereótipos de gênero, aplicados a crianças, formam adultos com problemas.

 

PRÍNCIPES, PRINCESAS, PAPEIS E VIOLÊNCIA

Outra fala da ministra Damares Alves é que meninos seriam tratados como príncipes e mulheres como princesas. As figuras de príncipes sempre são heroicas, másculas, corajosas, líderes e responsáveis tomadores de decisões. Quando se pensa em princesas, se não se associar o papel à de uma "princesa guerreira", como a da antiga série "Xena" ou da princesa Leia, da saga "Star Wars", se pensa em princesas indefesas.

Às princesas, por muito tempo, sobrou o papel de ser um troféu para o príncipe. As princesas estiveram quase sempre em perigo e situações em que tinham de esperar pelo príncipe encantado para resolver os problemas delas. Até o recém-estreado "Wi-Fi Ralph" dedica uma cena inteira pra criticar, com bom-humor, como esses papeis foram tão preconceituosos com mulheres e limitadores por tanto tempo.


"Com isso, vemos mulheres sempre oprimidas, delicadas, passivas e submissas. Essa história de princesa, dessa forma, não dá autonomia às meninas a compreender espaços, habilidades e direitos. Consequentemente, isso ensina os meninos a ideia de mulher ser propriedade. Tudo se desenrola em crime, violência, opressão, sofrimento e o alto índice de feminicídio que temos. Nossas leis, por muitos anos, nem tratavam da violência contra mulher. Foi preciso anos de sofrimento da Maria da Penha e pressão internacional para que a lei fosse feita", destaca Bárbara.

A professora aponta para a necessidade de repensar valores e conceitos morais de uma sociedade machista, conservadora e patriarcal. Meninos podem brincar com bonecas porque vão ser pais no futuro e precisarão saber cuidar dos filhos. Mas isso recai sobre meninas. E resulta em pais ausentes ou pouco carinhosos. Isso não afetará diretamente e impositivamente a afetividade ou sexualidade de um homem. Nem o mesmo ocorrerá se meninas brincarem com carrinhos, ferramentas ou mesmo armas - apesar de armas não serem recomendadas para criança alguma.

"Estamos falando de direitos humanos, de todos os seres humanos. Autonomia, possibilidades igualitárias. Meninas e meninos podem tudo porque têm capacidade intelectual. A ideia é que todos se amem, se respeitem, convivam com ética. Mas onde estão as mulheres na política, em cargos importantes e posições de poder e decisão. São poucas. E quando há, são atacadas. Se comenta mais sobre a beleza e roupas do capacidade intelectual e opiniões. Essa igualdade de gênero não existe de fato. É um mito sustentado".

 

IDEOLOGIA DE GÊNERO: EXISTE MAIS DE UMA

Bárbara reconhece que os padrões culturais são tão antigos, fortes e presentes que, mesmo ela tendo um grau de esclarecimento diferenciado, ainda se vê reproduzindo comportamentos que não considera ideais. Para ela, como mãe de uma menina, é um exercício diário de não forçar padrões e mostrar à criança que ela tem infinitas possibilidades de ser quem ela quiser.

"Um dia ela me perguntou: 'como assim, mãe, as mulheres antes não podiam trabalhar?'. Ela sabe que pode usar azul. Sabe que pode brincar com meninos de várias coisas. Debato com ela questões sobre raça. A educação dela é inclusiva, com livros e instrumentos com noções de solidariedade e amor ao próximo. Ela já questionou por que nas novelas quase não tem atores e atrizes negras. Nem nos desenhos animados. Ela tem padrões de feminilidade e adora coisas ditas de menina. Mas não por imposição. É por liberdade e direito. Não há como afetar negativamente em sexualidade. Crianças não namoram. Mas podem pensar, criticar, amar e ser livres, inclusivas. Isso sim é ensinar valores", conta Bárbara.

A professora pontua que essa discussão, da ministra Damares em relação a direitos humanos, envolve esse termo ideologia de gênero. "Esse termo veio de um papa muito conservador, [Benedito XVI]. Diferente do papa atual [Francisco], que é acessível à realidade atual, é mais humano, com menos preconceitos e querendo abraçar comunidades. Um pesquisador argentino teorizou esse conceito conservador de ideologia de gênero e isso veio parar no Brasil", lembra.

"O que é ideologia? É um conjunto de conceitos e ideais. Se falarmos desses padrões de príncipes e princesas, de azul para meninos e rosa para meninas, estamos falando de uma ideologia de gênero também. E são estereótipos problemáticos. Estamos vivendo algumas conquistas e mudanças que são graças ao movimento feminista sim. Algumas pessoas distorcem por ódio. Se os pais acham que estão protegendo os filhos de uma suposta homossexualidade, na verdade, estão criando um futuro de espaços específicos que hoje compõem as estatísticas de violência e desigualdade. Isso é questão de reflexão para todos nós, pais. Temos é que pensar num mundo onde as pessoas possam conviver melhor", conclui Bárbara.

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