Waiãpi sob ameaça: garimpo e escassez de saúde trazem riscos ao povo da floresta
Mesmo em uma das áreas mais preservadas da Amazônia, os Waiãpi enfrentam doenças e contaminação de rios com mercúrio. Lideranças cobram mais postos de saúde e ações contínuas para garantir a vida nas aldeias isoladas
Localizada no coração da floresta amazônica, no estado do Amapá, entre os municípios de Laranjal do Jari e Pedra Branca do Amapari, a Terra Indígena Waiãpi abriga um dos últimos povos que ainda conseguem viver, em grande parte, de maneira tradicional. Com uma área de cerca de 600 mil hectares, o território é comparável, em tamanho, a países como França, Espanha ou Ucrânia. No entanto, apesar da grandiosidade da terra e da riqueza cultural do povo que ali vive, a presença do Estado é frágil — e a ameaça à saúde e à segurança dos Waiãpi cresce a cada dia.
Hoje, cerca de 2 mil indígenas vivem nessa terra, distribuídos em 95 aldeias espalhadas por um terreno de difícil acesso, onde rios e trilhas substituem estradas. Nos últimos anos, essas comunidades têm relatado um aumento preocupante nas doenças e na contaminação do ambiente, provocada principalmente pela expansão do garimpo ilegal nas proximidades da terra indígena. Os garimpeiros têm utilizado mercúrio em larga escala para extração de ouro, o que já compromete a qualidade da água dos rios, contamina peixes e animais e, consequentemente, ameaça o modo de vida dos Waiãpi.
“Precisamos de construção de mais postos de saúde aqui na nossa região, estamos precisando cada vez mais de saúde. Temos parentes que moram muito mais longe que levam 2 dias, 3 dias, 5 dias para chegar aqui. Temos mais ocorrências de doenças como de malária e a gripe, além da diarreia causada pela contaminação de mercúrio feito por garimpo ilegal. Nós vivemos da pesca e da agricultura, tudo que consumimos é dos rios e da floresta”, alerta Japu Waiãpi, presidente do Conselho Local de Saúde Indígena.
A fala de Japu retrata não só a urgência de mais infraestrutura, como revela a vulnerabilidade de uma população que, apesar de viver em uma das áreas mais preservadas do planeta, sofre com o descaso de políticas públicas básicas, como a saúde indígena. O garimpo, que já provocou tragédias em outras regiões amazônicas, agora bate à porta do território Waiãpi, trazendo com ele doenças, contaminação e insegurança.
A presença militar e as ações emergenciais
Diante desse cenário, o Exército Brasileiro tem realizado, nos últimos anos, ações pontuais de Assistência Cívico-Social (ACISO), com foco na prestação de atendimentos médicos, distribuição de medicamentos, resgates aeromédicos e doações de suprimentos às comunidades indígenas da região. Essas ações são realizadas em parceria com órgãos do governo federal, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a Funai e o ICMBio, com o objetivo de oferecer suporte a territórios de difícil acesso, como é o caso da Terra Indígena Waiãpi.
Apesar dos esforços, lideranças indígenas afirmam que as ações, embora importantes, não têm sido suficientes para atender às demandas crescentes da população, que está em plena expansão e vive uma realidade de isolamento geográfico e emergência sanitária.
“Ação do Exército é muito bom pra gente, queremos que tenha mais e que passem mais tempo aqui com a gente, porque temos aldeias muito distantes, são dias pra chegar aqui na nossa sede e muitos ficam sem atendimento. Precisamos de mais recursos para saúde, para compra de medicamentos e mais ação para nossa aldeia”, destaca o cacique Kumaré, líder tradicional dos Waiãpi.
Avanço do garimpo ilegal e riscos à saúde
Relatórios recentes do Instituto Socioambiental (ISA) e de organizações indígenas como a Apina indicam que a atividade garimpeira ilegal vem se aproximando das fronteiras da Terra Indígena Waiãpi, especialmente a partir de áreas abertas ao sul do território. Embora ainda não haja registros massivos de invasão direta na TI, como ocorreu em outras terras indígenas da Amazônia, a pressão é crescente, e o impacto já pode ser sentido na saúde das populações que vivem nas aldeias ribeirinhas.
Estudos conduzidos por universidades e ONGs de saúde ambiental têm identificado níveis alarmantes de mercúrio no sangue de comunidades indígenas próximas a áreas de garimpo. O metal pesado pode causar danos neurológicos, problemas renais, má formação fetal e diversas outras doenças — e seus efeitos são silenciosos e duradouros.
Além disso, a floresta em torno da TI também registra aumento de queimadas ilegais, desmatamento e rotas de entrada clandestinas. A situação gera insegurança para os indígenas, que dependem diretamente dos recursos naturais da floresta para viver. Com o solo e a água contaminados, a pesca e a agricultura — bases do sustento tradicional — se tornam ameaçadas.
População em crescimento e ausência de infraestrutura
Outro desafio enfrentado pelos Waiãpi é o crescimento populacional sem o devido acompanhamento de políticas públicas. A estrutura atual da Sesai e da rede de saúde indígena na região não é suficiente para dar conta da demanda. Há carência de profissionais fixos, medicamentos básicos e, sobretudo, postos de saúde próximos às aldeias mais distantes.
Com deslocamentos que podem durar dias em trilhas na floresta ou em canoas pelos rios, muitos indígenas adoecem gravemente antes mesmo de conseguir atendimento. O cenário se torna ainda mais crítico em épocas de chuva, quando os caminhos ficam alagados e o acesso aéreo também é comprometido.
Um apelo por presença permanente do Estado
A Terra Indígena Waiãpi representa não só um patrimônio cultural e ambiental do Brasil, mas também um alerta sobre o abandono de comunidades tradicionais frente ao avanço da ilegalidade e da destruição ambiental. As falas de Japu Waiãpi e do cacique Kumaré revelam uma realidade em que a presença ocasional do Estado não é suficiente. É necessária uma política consistente, com presença permanente, infraestrutura adequada e recursos humanos capacitados.
Garantir a saúde dos povos indígenas não é apenas uma questão humanitária ou de direitos constitucionais, mas também uma estratégia de proteção territorial e de preservação da floresta amazônica. Onde há indígena vivendo bem, há floresta em pé — e vice-versa.
A luta dos Waiãpi por mais saúde, segurança e dignidade é a luta de todos que compreendem que a Amazônia não é só um recurso natural, mas um lar ancestral que precisa ser protegido com urgência e responsabilidade.
Serviço:
Essa é a segunda reportagem de uma série de 3, em diferentes formatos nos veículos do Grupo Liberal. Confira:
*Série Operação Ágata - fronteira no Norte do Brasil
» 1ª reportagem - Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque:
- Publicada no O Liberal e no Amazônia da segunda-feira, 4 de agosto
- Já disponível no portal O Liberal.com
- Exibido na segunda-feira (4/8), no programa Comando + Liberal, da Liberal +. E já disponível no Youtube, no canal de O Liberal (www.youtube.com/@OLiberalPA)
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» 2ª reportagem - Terra Indígena Waiãpi:
- Jornais O Liberal e Amazônia - terça-feira (5 agosto)
- Programa Comando + Liberal, da Liberal + (FM 98.9 e no Youtube) – terça-feira (5 de agosto) - 14h
- Portal OLiberal.com - terça-feira (5 de agosto) - 15h
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» 3ª reportagem - distrito de Clevelândia do Norte, no Amapá:
- Jornais O Liberal e Amazônia - quarta-feira (6 de agosto)
- Programa Comando + Liberal, da Liberal + (FM 98.9 e no Youtube) – quarta-feira (6 de agosto) - 14h
- Portal OLiberal.com - quarta-feira (6 de agosto) - 15h
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