Por trás da notícia: Pandemia altera vivência pessoal e profissional de jornalistas paraenses

Cerca 82% dos profissionais da comunicação tiveram ao menos uma reação emocional negativa ligada a crise pandêmica, diz pesquisa

Amanda Martins/Especial para O Liberal

“Muitas vezes senti meu dedo pesar uma tonelada na hora de clicar no botão da câmera, pelas coisas difíceis e pelo sofrimento que eu estava vendo”. Este é um breve relato do repórter cinematográfico Thiago Gomes, do Jornal O Liberal, sobre a cobertura jornalística que realizou durante o pico da pandemia ocasionada pela covid-19 nas unidades de saúde e nos cemitérios, na Região Metropolitana de Belém. 

O fotógrafo, que iniciou os trabalhos na empresa dez dias antes do lockdown, acompanhou de perto o caos em que se tornou a cidade após as primeiras confirmações de casos de infecção por coronavírus no Pará. “No jornal, os repórteres fotográficos não pararam, a gente era a linha de frente de batalha. Nós ficávamos muito expostos. Mas eu queria fazer o meu melhor trabalho, nem que pra isso precisasse me arriscar em certas situações”, declara.

A repentina disseminação da covid-19 impôs aos profissionais uma série de desafios e incertezas em um curto espaço de tempo. Mas, mesmo diante de um vírus (até então desconhecido), não hesitaram em se expor ao risco e foram às ruas noticiar o colapso da saúde e o avanço do contágio por coronavírus na cidade.

No último um ano e meio, imagens de desespero e dor foram vistas em toda parte do mundo. Em média, 592.960 mil pessoas foram vitimadas pela pandemia da covid-19 no país, segundo o consórcio de veículos de imprensa. Em janeiro do ano passado, mesmo diante de um alerta emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o alto risco de uma epidemia causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), autoridades foram incapazes de mensurar a crise que estava por vir. 

Mais rápido do que se imaginava o vírus começou a se disseminar pelos países e chegou ao Brasil no dia 26 de fevereiro. No Pará, o primeiro caso de covid-19 foi notificado no dia 18 de março. Pouco mais de um mês depois, o Estado já registrava, oficialmente, 75 mortos e 1.511 infectados pela doença, de acordo com os dados da Secretaria de Saúde Pública do Pará (SESPA).

O alto número de contaminados começou não só a causar preocupação em especialistas, como também a assustar aquelas pessoas que apresentavam os sintomas da infecção, como febre, tosse e dificuldade em respirar.  Um a um, familiares, amigos, colegas de trabalho, passaram a ser vítimas do coronavírus.

Em busca de um fio de esperança pela cura, a população passou a ir até as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) solicitar atendimento, mas o Sistema Único de Saúde (SUS) de Belém já se encontrava em total caos. Segundo a Sespa, em abril, o Pará já alcançava 97% da taxa de ocupação de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) disponíveis na região. Já na capital, a situação era bem pior com 100% dos leitos de UTI ocupados, sendo 80% do total com pacientes suspeitos ou confirmados da doença.

A explosão de casos de covid-19 mudou drasticamente a rotina nas redações jornalísticas e a forma de trabalhar de muitos profissionais. Os jornalistas e fotojornalistas passaram a ser demandados para ir às ruas cobrir os efeitos do primeiro pico da doença no Pará (registrado em 28 de maio do ano passado).

O repórter carioca Fabiano Villela, que trabalha há 11 anos na afiliada na Rede Globo no Pará, a TV Liberal, foi um dos jornalistas que tiveram a rotina profissional alterada durante a pandemia. Com os noticiários voltados exclusivamente para acompanhar casos suspeitos e o aumento de leitos na Unidade de terapia intensiva (UTI) dos hospitais, Villela passou a se desdobrar para atender às solicitações da emissora, que aumentaram significativamente no período. 

image Fabiano Villela entrando ao vivo no Jornal Hoje para noticiar aumento de casos de covid-19 no Pará. (Reprodução/Arquivo pessoal)

A partir da segunda quinzena do mês de abril, Fabiano relata que começou a ir mais intensamente às ruas registrar a superlotação nas unidades de saúde por conta da covid-19, como a Policlínica. Em uma das coberturas, o jornalista foi infectado pelo coronavírus, mas apresentou sintomas leves da doença e, após cumprir quarentena, pode retornar ao serviço. 

“No começo foi triste e me senti muito sobrecarregado. Começamos a perceber que o vírus estava se espalhando pela cidade. Eu via as pessoas passando mal na fila, nas portas das unidades, pessoas deitadas, sentadas na calçada esperando atendimento”, relembra Vilella.

O retrato da angústia vivenciado pelos pacientes infectados pelo coronavírus e a imensa tristeza de perder um ente querido de forma trágica e repentina foram documentadas pelas lentes de Thiago Gomes. Durante os meses mais críticos da doença (março, abril e maio), o fotógrafo do jornal O Liberal relata ter acompanhado o drama das famílias que enterraram os seus parentes, vítimas da covid-19, quando o sistema funerário apresentava colapso, com dezenas de covas abertas todos os dias.

Thiago afirma que não estava preparado para enfrentar tantas situações que mexessem com o psicológico. Por mais que trouxesse no currículo a experiência em coberturas pesadas, como pautas de homicídios, executadas durante os trabalhos feitos para a editoria de Polícia, ele confessou ter experimentado pela primeira vez durante uma cobertura a sensação de ‘nó na garganta' ao presenciar a dor alheia. 

“O clima era muito pesado. Eu via as pessoas vindo de ambulância, sendo carregadas por seus familiares e batia com a porta na cara. O cara chegava e dizia: “não tem vaga, não tem como entrar. Está lotado. Vai ter que ir pra outro lugar”. E você vê que a pessoa com falta de ar, parece que ela vai morrer ali na tua frente. Já no cemitério, o coveiro me dizia que tinham praticamente 46 corpos enterrados em um dia. Era ida e volta de carro, saía um corpo, entrava um corpo. Passei 20 minutos e vi seis enterros”, relata.

Relatos dolorosos marcam a cobertura jornalística 

A crise sanitária no Pará começou a se agravar durante o mês de abril de 2020, quando em menos de 24 horas, o estado registrou um aumento de 38% de óbitos por covid-19, segundo dados da Sespa. Nas ruas, era comum os repórteres e fotógrafos flagrarem a situação caótica no qual Belém se encontrava.

Uma das histórias mais marcantes presenciadas por Thiago Gomes foi durante uma “ronda”. O repórter fotográfico saiu acompanhado do jornalista do Jornal O Liberal, Victor Furtado, para registrar o desespero nas portas dos hospitais e a falta de médicos nas unidades de saúde da capital e dos distritos. Ao chegar ao Hospital e Pronto Socorro Municipal Mário Pinotti, localizado Travessa 14 de Março, em Belém, uma cena chamou atenção: 

"Um rapaz e uma moça choravam compulsivamente se abraçando. O rapaz se ajoelhou diante da porta e fez uma oração. O Victor, se ajoelhou perto dele e perguntou o que estava acontecendo. Eu vi que eles conversavam e eu continuei fotografando. Victor [voltou] e disse que ouviu a jovem falar que fulano não poderia ter morrido. Senti um nó na garganta, porque parece que eu me via ali, um familiar meu ali internado, que tinha morrido”, desabafa Thiago.

image Rapaz chora desesperadamente ajoelhado diante da porta da recepção do Hospital de Pronto Socorro.(Reprodução/Thiago Gomes)

Nesse mesmo dia, a situação caótica se repetiu para o fotógrafo, mas desta vez dentro do Hospital do Pronto Socorro Municipal Humberto Maradei Pereira, o PSM do Guamá, localizado no bairro periférico de Belém. Thiago acompanhou o doloroso momento em que uma pessoa estava quase desfalecendo na porta da UPA e teve o atendimento negado por não estar ‘passando mal o suficiente’ para receber ajuda. 

“[Na unidade de saúde] só estavam entrando pacientes muito graves. Mas, ao mesmo tempo, não se sabia o que era grave e o que não era, porque chegou uma moça, chamada Mônica dos Santos, que se sentou em um banco e chorava pedindo ajuda. Victor foi falar com ela. Ela relatou que sentia tosse e falta de ar, mas não conseguiu atendimento por apresentar ‘sintomas leves’", relembra.

image A estudante Mônica dos Santos chora ao não conseguir ajuda em frente a UPA. (Reprodução/ Thiago Gomes)

Sem espaço dentro das UPAs para comportar os doentes e a falta de médicos para realizar atendimentos, o sistema de saúde paraense entrava em crise. Em uma semana, o número de mortes por Covid-19 no Estado aumentou 222%, saltando de 95, no dia 25 de abril, para 306, segundo dados do Ministério da Saúde. 

Dentro das unidades de saúde, os corpos das vítimas que não resistiram à infecção começaram a ser amontoados em salas, porque o sistema funerário já não dava conta de lidar com o aumento de 116% na remoção de corpos por doenças ou causas naturais, de acordo a Secretaria de Estado de Saúde (Sespa).

Para o apresentador da TV Liberal João Jadson, um dos momentos mais fortes na cobertura jornalística foi noticiar a fila de carros funerários em frente ao Instituto Médico Legal (IML) para entregar os corpos. Ele relata que a todo momento recebia várias denúncias sobre pessoas que tinham familiares mortos dentro de casa que nem ao menos chegavam a ser atendidos.

“As pessoas ligavam para a TV pedindo ajuda, dizendo que tinham parentes mortos em casa: “A minha mãe tá lá desde ontem morta na sala de casa. E não tem ninguém pra olhar”. Chegavam imagens de gente na porta das unidades de saúde, implorando, gente chorando: “Meu pai lá dentro com falta de ar''. Aquilo me tocava de uma forma tão absurda”, afirma.

Uma das cenas mais emblemáticas do caos epidêmico foi noticiada na noite do dia 23 de abril do ano passado pelo repórter Fabiano Villela: a remoção dos corpos do Instituto Médico Legal (IML) para dentro de um frigorífico. O jornalista conta que a cena era impactante, porque a equipe transportava as vítimas dentro de sacos plásticos pretos e colocavam, uma a uma, dentro do caminhão de grande porte. Para o jornalista, foi uma das piores coberturas jornalísticas que ele vivenciou.  

“Mostrar os corpos sendo ‘ensacados’ e transportados para um caminhão até serem condicionados a fazer algum tipo de exame ou o enterro foi uma cena triste e bem dramática. Foi uma cobertura muito difícil, a gente se emociona, mas isso não pode deixar travar o desempenho profissional”, observa Villela. 

Os cuidados na batalha contra o vírus 

Em março de 2020 o mundo parou. Mas, quem trabalha com atividades essenciais, como os jornalistas, não podem parar. Mais do que nunca estavam expostos à contaminação ao trabalhar nas ruas e seguiram arriscando as suas próprias vidas apurando os fatos. 

Mesmo com a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de higienizar as mãos, usar máscara e álcool gel, a proliferação do vírus continua ocorrendo pelo mundo. Um dossiê “Jornalistas vitimados por Covid-19”, realizado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), mostra o quanto a profissão foi de risco durante este período. 

De acordo com o documento, o Brasil foi o país com o maior número de mortes de profissionais da comunicação pelo novo coronavírus. Foram 169 jornalistas mortos entre abril de 2020 e março de 2021. Ainda segundo os dados, o Pará foi o segundo estado brasileiro com mais número de óbitos entre esses profissionais, registrando 19 ocorrências. O Estado ficou empatado apenas com o Amazonas e São Paulo, seguido do Rio de Janeiro (15) e Paraná (13).

Quem viveu de perto o medo e a insegurança de se contaminar durante o trabalho foi Thiago Gomes. Ele foi um dos fotojornalistas que esteve à frente da fotografia no Jornal O Liberal durante os períodos mais contagiosos da doença. Diferente de alguns repórteres de texto, não pode entrar no regime de home office, pois era os "olhos" dos repórteres nas ruas.

Por ter uma esposa hipertensa, que trabalha na área da saúde, por morar com a sogra idosa e diabética, Thiago revela que teve que montar uma "estratégia de guerra" dentro de casa para não infectar os familiares. “Por ser o único que estava trabalhando em casa na época,  passei a dormir separado da minha esposa. Nós descemos uma cama e eu fiquei dormindo no andar debaixo. Passei a usar meu equipamento e o higienizava com álcool apropriado no fim de cada pauta. Ao chegar na redação, lavando a mão, o rosto e usava o álcool 70 nas mãos. Trocava de máscara de duas em duas horas. Consegui um óculos de proteção e sempre usava camisa de manga comprida, calça comprida e mudando tênis”, conta o fotógrafo. 

image Fotógrafo Thiago Gomes com os equipamentos de proteção contra a covid-19.  (Reprodução/Arquivo pessoal)

Thiago relata que a rotina cheia de cautelas se repetia dentro de casa também. Assim que chegava do serviço, antes de entrar dentro de casa, o repórter cinematográfico costumava tirar os sapatos e deixar no pátio de casa, e as roupas iam direto para a máquina de lavar. 

O contato com a família do profissional também passou a ser restrito para evitar contaminação. Ele revela que passou meses conversando com a esposa apenas pela escada que dividia os dois andares da casa. “Foi uma das coisas que me deixou pirado. Eu acordava de manhã, tomava banho e dava: “Tchau, amor'' e saía. Foi muito complicado praticamente se individualizar para proteger as pessoas daqui de casa”, confessa.

João Jadson também precisou ficar longe de quem amava para garantir a segurança de todos, principalmente daqueles que eram do grupo de risco. A solução encontrada pelo apresentador da TV Liberal, foi drástica: ficar meses sem vê-los. “No primeiro pico, eu fiquei isolado de todo mundo. A minha esposa tem pais diabéticos. A minha mãe era idosa. Eu tenho uma filha que é asmática e fiquei com muito medo”, relata o jornalista. Para impedir que a contaminação ocorresse dentro de casa, João passou a adotar medidas de seguranças mais rígidas, como rotineiramente limpar a residência onde mora com desinfectantes. 

No home office, jornalistas aprenderam a se reinventar dentro de casa  

A pandemia impôs novos desafios para o jornalismo, dentro eles foram as mudanças feitas nas redações dos jornais. Alguns profissionais passaram a participar de revezamento de serviço dentro da empresa para garantir a prevenção contra o vírus e, outros, considerados como o grupo de risco, foram designados a ficar em regime de home office.

E tem sido em casa que o repórter do Jornal O Liberal Dilson Pimentel tem dado continuidade na profissão que exerce há mais de três décadas. Por ser hipertenso, o jornalista teve, em março do ano passado, pela primeira vez de se afastar do serviço presencial e começou a trabalhar em casa. Ele revelou ter enfrentado vários contratempos do dia a dia durante a adaptação remota.

image Repórter Dilson Pimentel trabalhando em home office. (Reprodução/Arquivo pessoal)

“Eu e a minha filha começamos a trabalhar em home office juntos e tivemos que comprar um segundo computador. Eu moro no nono andar e teve um período do ano passado, que começou uma obra no andar de cima. Era um barulho infernal, muito ruim para trabalhar. Chegou um momento em que eu não conseguia fazer ligação, eu não conseguia ouvir ligação. Foi um transtorno muito grande”, afirma o jornalista.

Distante das ruas por conta do atual cenário e sem contato físico com as fontes, Dilson também teve que se reinventar para trabalhar dentro das possibilidades do home office. O repórter passou a contar com a ajuda dos fotógrafos, os únicos que iam aos locais presencialmente, para realizar o contato com a fonte e gravar conteúdos multimídia que o ajudavam a escrever a matéria.

A outra forma encontrada pelo profissional foi usar a experiência de um repórter de rua acumulado por mais de 31 anos ao seu favor. “[Eu já sabia] como era o cenário, como pedir para o fotógrafo coletar essas informações. Eu pedia ajuda para os entrevistados. Na vacinação de covid, eu perguntava: 'Foi tranquilo? Tinha muita fila? Como você chegou aí? Você chegou de carro? De moto?'. ‘Você  conseguiu uma carona? Estava sol? Estava chovendo? Como é que você irá voltar?'. Tentando extrair o máximo possível de detalhes”, explica.

Acúmulo de tarefas gerou sobrecarga nos profissionais

Um estudo nacional feito pela FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas) no ano passado, mostrou como os jornalistas que trabalham em redação e com ou sem vínculo formal de emprego, foram afetados mentalmente durante a pandemia. Segundo estes dados, 55,5% dos entrevistados sentiram aumento da pressão no serviço, com acúmulo de tarefas, sobrecarga de horário e cobrança por resultados. Destes jornalistas, a maioria (75,2%) estava trabalhando em home office, enquanto os outros (24,8%) seguiam trabalhando presencialmente.

“A gente ‘respirava’ matéria da covid-19”. É assim que Dilson Pimentel definiu a rotina de trabalho dele durante o pico da doença no Pará. Por estar inserido no regime remoto há mais de um ano, o repórter afirmou que começou a sentir o trabalho dobrar por causa do volume de demandas enviadas. 

Outro ponto que chamou a atenção do jornalista foi o fato dele não conseguir se desconectar totalmente do serviço fora do expediente, principalmente por sentir a necessidade na época de sempre estar se atualizando de informações sobre a pandemia. “Eu ficava ligado no noticiário para saber se ia surgir alguma coisa, se aumentava o número de casos, se estava aumentando o número de mortes. Muitos amigos, familiares, pessoas próximas, colegas de trabalho adoeceram e eu absorvi tudo isso”, afirma.

Tanto o cansaço físico quanto o mental por estar em uma longa cobertura passaram a adoecer, psicologicamente o jornalista. Dilson revela que começou apresentar quadro de ansiedade e sintomas semelhantes a infecção do coronavírus. Ele afirma que precisou passar por uma bateria de exames para perceber que o emocional estava abalado. 

“Durante a pandemia, qualquer sintoma que a gente tinha antes [poderia ser] um sintoma normal, uma gripe, uma alergia.  Mas, nesse novo cenário, podia ser covid. Então, eu comecei a ter a sensação de falta de ar, meu corpo estava sempre febril embora eu não estivesse com febre. Em um determinado momento, fiz exames de rotina, porque sou hipertenso. E aí eu vi que fisicamente, clinicamente, eu estava bem. Então, me mostrou que era o meu emocional que eu precisava trabalhar”, relata o jornalista. 

Jornalistas tiveram ao menos uma reação emocional negativa ligada à pandemia, diz estudo

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já considerava, antes da pandemia, o Brasil como um país de pessoas ansiosas e com o maior índice de depressão da América Latina, em torno de 12 milhões acometidos pela doença. Devido ao fato de estar em constante contato com as pessoas e exercendo atividades in loco, os jornalistas estavam mais suscetíveis a viver situações que poderiam gerar ansiedade ou trauma.

Esta afirmação é comprovada com os resultados preliminares do projeto “Jornalismo e Pandemia”, realizado pelo International Center for Journalists (ICFJ) em parceria com o Tow Center for Digital Journalism da Columbia University. De acordo com a pesquisa, feita com 1406 jornalistas de 125 países, 82% dos entrevistados tiveram ao menos uma reação emocional negativa ligada à pandemia. Durante a cobertura jornalística da crise sanitária, o repórter cinematográfico Thiago Gomes revelou ter enfrentado transtornos psicológicos após vivenciar tantas cenas angustiantes no exercício da profissão. Em um certo momento,  ele chegou a acreditar  que havia se infectado e entrou em pânico ao apresentar sintomas da doença:

“Eu surtei mesmo e o meu psicológico abalou. Acordava e, na minha cabeça, eu estava com falta de ar, com a garganta inflamada, dor no corpo. Eu já trabalhava na pior das hipóteses: ‘Como eu vou disputar um leito de UTI com tanta gente que eu via?’. Fui afastado [do jornal] por sete dias após apresentar sintomas. Consegui pela empresa fazer um exame e deu negativo. No dia seguinte, a chefia me mandou para uma pauta de abertura do Abelardo Santos. Na minha cabeça, eu pensava: 'acabei de fazer o exame e já vou ter que fazer outro”.

Em uma palestra sobre notícias e saúde mental, a professora assistente de psiquiatria da Universidade de Washington, Jessica Gold, afirmou que no pico da doença, o papel dos jornalistas de ouvir os entrevistados se assemelhavam aos de psicólogos. Para ela, foi uma situação desafiadora imposta aos profissionais, principalmente porque ‘ouvir repetidamente [sobre morte] e não demonstrar uma reação’ podem causar dores psíquicas.

O fotógrafo confessou que não estava preparado para enfrentar tanto sofrimento. Ele revelou já ter se pego chorando por lembrar momentos tristes que lhe vinham a cabeça no final do dia e, encontrou forças nas pessoas que mais amava para seguir trabalhando.

“Chegava em casa cansado e dolorido após um dia de serviço.  Achava que alguém da minha família ia morrer, que eu ia morrer. Eu busquei muito refúgio conversando com a minha esposa, amigos próximos, familiares, a minha mãe. Teve uma vez que fui direto para o banheiro e não aguentei, desabafei  sozinho no chuveiro”, declara Thiago.

A vida por trás das câmeras: o medo ao se infectar e a dor de perder quem se ama

Desde o início da pandemia, os jornalistas nunca deixaram de trabalhar. Assim como os profissionais da saúde, que também não puderam fazer isso. Enquanto os médicos e as enfermeiras combatiam a infecção dos vírus dentro dos hospitais. Longe dos olhares do público, houve uma categoria que precisou cumprir com o dever profissional de informar os cidadãos.

image O apresentador João Jadson, da TV Liberal. (Reprodução/Arquivo pessoal)

Para algumas pessoas poderia até passar uma impressão de ter sido fácil.  Afinal, os jornalistas deveriam estar preparados para tudo o que der e vier. Mas, o que ninguém imaginou é que o medo de adoecer, o cansaço após mergulhar fundo na cobertura e a angústia estiveram presentes na vida de cada profissional. 

João Jadson afirma ter vivido ‘vários anos em um só’. Em um curto espaço de tempo, ele teve que lidar com uma série de abalos emocionais: o adoecimento de colegas de trabalho e a preocupação de internar o irmão mais velho após a contaminação do vírus. Por muitas vezes, o jornalista relata ter se sentido psicologicamente sobrecarregado ao fechar o JL2, onde ele é apresentador, após tomar conhecimento das notícias ruins que chegavam, sejam de pessoas próximas ou do desenrolar da cobertura pandêmica. 

“Foi todo mundo adoecendo. Meu irmão mais velho adoeceu de covid e foi parar na UTI. Eu ficava conversando com ele e meu irmão sumiu do WhatsApp. Eu falei: 'meu irmão foi intubado'.Mas tinha que apresentar o jornal. Quando acabou, sentei, abaixei a cabeça e chorei com aquele peso, a sensação era que eu não ia aguentar mais”,  confessa.

A morte da mãe do apresentador, dona Adélia, vítima da covid-19, em novembro do ano passado, foi um divisor de águas na vida profissional de João Jadson. Na época, ele precisou  encarar o desafio de organizar a ‘Retrospectiva de 2020’ do jornal enquanto vivia o luto de ter perdido um familiar para o vírus, assim como tantos outros brasileiros. Ele recorda como uma experiência dolorosa e marcante. 

“[A minha mãe] entrou no hospital na segunda-feira e na quinta morreu de covid-19. Enquanto eu fechava a retrospectiva e escrevia sobre a covid-19. Assim foi tudo mais difícil e precisei me afastar por quatro dias. Fazer a retrospectiva foi como passar por um inferno pra mim. Eu chorei muitas vezes sozinho, escrevendo, vendo aquelas pessoas perdendo os seus familiares, revendo, lembrando e relembrando da minha mãe”, conta.

Em menos de um ano, o apresentador do JL2 precisou travar uma segunda batalha contra o coronavírus. Agora, ele precisava lutar pela própria vida. Diagnosticado com a doença, o jornalista teve que se afastar do serviço e ficar internado em uma hospital particular da capital paraense após ter 75% do pulmão contaminado. 

Um estudo feito pela universidade inglesa de Oxford apontou que um em cada 16 pacientes curados da covid-19 apresentou algum tipo de transtorno mental após três meses da recuperação da infecção. 

“Eu tive um quadro de pré-depressão. Foi muito difícil pra eu voltar. Na minha cabeça, eu dizia que não tinha condições, me sentia frágil, fraco fisicamente. Eu via os outros colegas de profissão apresentando e pensava: 'eu não vou conseguir ter esse fôlego mais'. É muito assustador”, afirma João Jadson. 

Marcas sentimentais deixadas por uma pandemia

A dor de perder um familiar em um momento tão crítico é algo que não se apaga tão fácil da mente e, muito menos do coração. João Jadson revela ainda conviver com a cobrança sentimental  de não ter conseguido proteger a mãe do vírus, apesar de todos os dias debater no telejornal quais são os cuidados e as medidas que devem ser tomadas para prevenir a contaminação. 

“Fica a ausência da perda pela covid. Perder pai, mãe, irmão, marido, é sempre doloroso. É muito difícil tu não poder fazer o rito do velório. Não poder tá perto. A pessoa que tu ama entra na UTI e não saí. Depois eles entregam o caixão fechado pra mim e você para um sepultamento de 20 minutos. Tudo isso te maltrata. A pandemia veio para elevar a décima potencial da perda”, declara. 

image Sepultamento das vítimas da Covid-19, em um cemitério  de Belém.  (Reprodução/Thiago Gomes)

Negacionismo da população 

De acordo com o Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil  – 2020, divulgado no início deste ano pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a descredibilização da imprensa foi uma das agressões verbais mais frequentes contra os profissionais, com 152 casos registrados.

Também houve um aumento expressivo nas categorias de censuras (750% a mais) e agressões verbais/ataques virtuais (280% a mais) em comparação ao ano anterior. O fotógrafo Thiago Gomes chegou a sofrer xingamentos e hostilização durante a cobertura de duas reportagens feitas nas ruas. Ele revela ter sido ameaçado de apanhar se continuasse registrando a aglomeração de pessoas sem máscaras.

“O  feirante ‘encasquetou’ comigo, começou a me xingar, mandou eu sair, senão ele ia me dar porrada. Já durante um ato a favor do presidente, quando a pandemia estava matando várias pessoas, fui atacado por ser 'da Globo'. Eu achava um absurdo ter que passar por aquilo, ver as coisas que eu estava vendo e alguém que não sabia de nada, não estava na nossa situação do jornalismo de ser linha de frente e dizer que o vírus não existiu e que tudo não passava de uma manipulação mundial”, disse o repórter fotográfico sobre os atos negacionistas.  

A pandemia reforça a importância do jornalismo para a sociedade

Foi por meio das notícias que os cidadãos puderam conhecer o cenário epidemiológico, puderam se orientar sobre quais medidas sanitárias tomar e buscar a prevenção contra a covid-19. Mas, os deveres da profissão não param por aí. Denunciar e cobrar das autoridades também fazem parte do ofício dos jornalistas. 

E foi ao evidenciar a história de uma moça que morava na Ilha de Mosqueiro, município de Belém, que o repórter Dilson Pimentel conseguiu garantir que ela recebesse atendimento no Hospital de Campanha do Hangar e se recuperasse da covid-19. 

“Uma moradora, que tinha o meu contato, me procurou dizendo que havia uma outra moradora com covid, de Mosqueiro, cuja a família estava fazendo uma campanha nas redes sociais para ela ser atendida no Hangar, pois não estava tendo atenção devida. Consegui falar com a família e a partir daí fiz a matéria, entrei em contato com a Secretaria de Estado de Saúde Pública. A matéria que saiu no jornal e a família me relatou que o atendimento para essa moradora mudou. Depois que ela recebeu alta, me mandou mensagem agradecendo dizendo que eu tinha sido um anjo na vida dela”, diz o jornalista, comprovando o papel social da profissão para com os cidadãos.

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