MENU

BUSCA

Terra estrangeira

Elck Oliveira

Pouca gente sabe, no entanto, o Brasil também se tornado, cada vez mais, um destino de referência para estudantes estrangeiros. De acordo com os dados mais recentes do Censo da Educação Superior, relativos ao ano de 2018, apenas em cursos de graduação, o país contava, naquele momento, com aproximadamente 13,4 mil estudantes estrangeiros, espalhados por todo o nosso território. 

Estudar fora do país é o desejo de uma grande parcela dos brasileiros. Talvez não tanto agora, por conta da pandemia do novo Coronavírus, mas em tempos, digamos, normais, são muitos os que saem, todos os anos, para concretizar esse sonho. Entre os objetivos mais comuns estão melhorar a fluência em outro idioma ou mesmo reforçar o currículo com experiências internacionais.  

A Universidade Federal do Pará (UFPA), por exemplo, recebeu um número expressivo de alunos estrangeiros, por meio de diferentes programas, sejam de graduação ou de pós-graduação. Segundo a pró-reitora de relações internacionais da instituição, Marília Ferreira, um dos intercâmbios mais consolidados no País é o Programa Estudante-Convênio Graduação (PEC-G), que oferece a estudantes de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos, a oportunidade de realizar a graduação em instituições de ensino superior brasileiras. 

“Muitos africanos têm vindo por meio desse programa, bem como estudantes de países como o Paquistão e o Timor-Leste. Eles chegam ao Brasil geralmente no início do ano escolar, em fevereiro, e estudam língua portuguesa durante oito meses na instituição. Após esse prazo, realizam um teste de proficiência, e, se aprovados, iniciam, no ano seguinte, o curso de graduação na universidade brasileira. O aluno estrangeiro selecionado cursa gratuitamente a graduação. Em contrapartida, deve atender a alguns critérios, entre eles, provar que é capaz de custear suas despesas no Brasil, ter certificado de conclusão do ensino médio ou curso equivalente e proficiência em língua portuguesa”, explica.

De acordo com a pró-reitora, são selecionadas preferencialmente pessoas inseridas em programas de desenvolvimento socioeconômico, acordados entre o Brasil e seus países de origem. Os acordos determinam a adoção pelo aluno do compromisso de regressar ao seu país de origem e contribuir com a área na qual se graduou. “O projeto oferece apoio financeiro para os alunos estrangeiros participantes. O auxílio visa cooperar para a manutenção dos estudantes durante o curso, já que muitos vêm de países pobres. Para isso, o aluno, além de estar matriculado na Instituição federal de educação superior, deve ter bom desempenho acadêmico, de acordo com as exigências da universidade em que estuda”, detalha. 

Segundo Marília Ferreira, mesmo nesse período de pandemia, com as aulas suspensas, os alunos continuam recebendo o auxílio, assim como acontece com outros programas da UFPA. 

Enock Akodedjro, de 25 anos, nasceu no Benin, na África, e há três anos vive em Belém. Está cursando o quarto semestre de Engenharia Civil na UFPA por meio do PEC-G e conta que hoje se considera bem adaptado à cidade, apesar de algumas pequenas dificuldades, como o idioma, logo no início, afinal, no país dele, a língua oficial é o francês. 

“No início desse período, a principal dificuldade realmente foi a língua, pois ainda não a dominava, mesmo depois de ter feito a prova de proficiência. Fora isso, a discriminação por ser estrangeiro e negro e, também, a saudade da família, que apertou em muitos momentos. Não senti tanto a questão da cultura porque o Brasil tem muitas heranças do povo negro que aqui viveu no período da escravidão. Vejo muitas marcas da africanidade por aqui em vários lugares do Brasil e, de modo especial, na Amazônia, o que certamente foi um motivo que facilitou a adaptação”, explica. 

Enock diz que ainda pretende cursar um Mestrado no Brasil antes de voltar de vez para a África e que as amizades conquistadas aqui têm sido fundamentais para suportar a saudade de casa. “O povo paraense é muito carinhoso e eu só posso agradecer aos que sempre me ajudaram para que eu continue aqui em busca de conquistar os meus objetivos”, observa ele, que também revela ser fã da culinária e, de modo especial, do açaí paraense. 

Discriminação – Mas nem tudo foram flores para Enock por aqui. Ele lembra que já se sentiu discriminado por ser africano e negro, o que muito o entristece, especialmente num País com tantas referências negras em sua história. “Isso é ruim, horrível mesmo, até porque a raça humana é única. Hoje, tenho mais maturidade para lidar com isso e espero que no futuro tenhamos um mundo melhor, onde as pessoas possam olhar o próximo sem preconceito, porque somos todos iguais”, enfatiza. 

Já o moçambicano Cassiano Eusébio, de 24 anos, cursa o Mestrado em Ciência Política na UFPA. Ele revela que a vinda para Belém foi marcada por estágios “longos e emocionantes”. Tomou conhecimento do edital do programa de pós-graduação e logo se interessou pelo curso. Passou com muita ansiedade por todas as etapas, foi aprovado, e chegou à capital paraense em fevereiro do ano passado. 

Mestrado
Para ele, ter no Brasil o mesmo idioma oficial do seu país, o português, facilitou bastante o processo. Formado em Administração Pública, relata que sentiu mais dificuldade com as disciplinas do Mestrado, bastante diferentes das que ele tinha estudado na graduação, mas diz que já está “no ritmo”. 

“Com relação à cultura do Brasil e de Belém, em particular, há muitas diferenças com Moçambique, país de onde eu venho, mas também há muitas coisas em comum, para além do idioma. A culinária, por exemplo. Mas, é claro, a culinária do Pará é rica e deliciosa. Por outro lado, há também alguns comportamentos que eu não conhecia, como os relacionamentos homoafetivos, por exemplo. A luta pela igualdade e identidade é algo que mexeu comigo e talvez com outras pessoas que passam ou passarão em Belém”, acredita. 

Para Cassiano, mesmo depois de voltar para a África, a relação com o Brasil estará sempre presente. “Sempre tive objetivo de fazer o mestrado fora do meu país. Esse objetivo deve-se a duas razões: a primeira, é que venho de uma família humilde, e não conseguiria sustentar a formação de pós-graduação. Segundo, porque queria agregar experiência para além do meu país ou continente. A princípio, tinhas os países falantes de língua Inglesa como referência, mas, com o tempo, fui me guiando pela experiência na diáspora mesmo”, aponta. 

Casa - Quem já está no fim desse processo e, literalmente, embarcando de volta para casa é o mexicano Miguel de la Cruz, de 25 anos. Nascido em San Cristobal de las Casas Chiapas, ao sul do México, ele defenderia, incialmente, a dissertação de Mestrado em Ciências Ambientais, também pela UFPA, em maio. Por causa da pandemia, no entanto, a defesa terá que ser feita à distância. “O governo mexicano está enviando um avião para buscar seus cidadãos e eu vou voltar para a cidade do México”, contou, nesta semana. 

Miguel lembra que veio ao Brasil pela primeira vez em 2014, para um intercâmbio no Recife, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Depois, já de volta ao México, soube da possibilidade de cursar o Mestrado na UFPA e resolveu tentar. “Quando eu cheguei aqui, tive uma família paraense que me ajudou muito a me adaptar na cidade. Embora morasse um pouco longe da UFPA, conheci a realidade de Belém. Na universidade, as primeiras aulas foram um pouco difíceis porque não conseguia entender direito o sotaque das pessoas. Hoje, estou aqui há dois anos e já morei em quase todas partes da cidade. O mais difícil para mim foi a comida e o clima, porque aqui faz muito calor”, lembra.

Apaixonado pela cultura brasileira, Miguel é fã das nossas danças – ele pratica capoeira – e acredita que o Brasil oferece aos estrangeiros muitas oportunidades de desenvolvimento profissional e humano. “Eu sou consciente de que se eu tivesse mais oportunidades para ficar no país eu ficaria sim, apesar da saudade da família. Ficar longe de casa muito tempo faz, de alguma maneira, você se acostumar a ser independente e a procurar o seu caminho. Eu aconselho todos que se arrisquem a conhecer novos lugares e ter coragem de buscar o crescimento pessoal. Sempre falo que é bom deixar a área de conforto e aprender com a vida”, ensina.

* A matéria e as fotos foram realizadas antes da adoção dos critérios de isolamento social. Os dados aqui expostos foram atualizados na última semana, ou seja, durante a quarentena. Esclarecemos as circunstâncias para tranquilizar nossos leitores: profissionais e entrevistados não foram expostos a qualquer risco.

Troppo