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Semear, florescer e cuidar!

Por Lorena Filgueiras

O designer/paisagista/florista e jardinista Paulo Morelli dedicou [e ainda dedica] boa parte de sua vida às plantas e flores. Aos 53 anos, recém-completos, nosso convidado especial desta edição está passando a quarentena na companhia de suas plantas e bonsai – uma paixão assumida dele. Ele brinca a respeito disso, aliás, quando afirma que as plantas são os novos pets dos humanos. Apaixonadíssimo pelo que faz, Morelli bateu um delicioso papo conosco. Em pauta, como não podia deixar de ser, muito verde, a ressignificação da vida e, também, a tristeza de ver Belém cada vez menos frondosa.

T+M: Sempre tiveste esse olhar pro belo, Paulo? 
PM: Coisa de taurino, né? Mas é que há pessoas da minha família que sempre gostavam. Tio, avó... tinham uma ligação enorme com estética. Eles gostavam das coisas bonitas, do capricho, de receber, da boa mesa.

T+M: E dentre todas as coisas que fazes, o que te dá mais prazer? São as plantas?
PM: Olha, o trato diário delas é uma coisa muito prazerosa. Molhar as plantas, para mim, é uma meditação. É quando faço minhas orações, minhas meditações, minhas contemplações. Engraçado que cada vez mais, o momento de molhar as plantas, é especial. Fico completamente absorto ali, naquele ato, e depois que descobri que a gente pode meditar fazendo qualquer coisa, fiz dele um momento delicioso! 

T+M: Quando conversamos, uns dias antes desta entrevista ocorrer, justamente para marcar a data, você dizia que sairia rapidamente para molhar os bonsai.
PM: Isso. Bonsai significa “árvore do vaso” – bonsai é a arte, não o produto. Sou apaixonado por bonsai.

T+M: Diz-se, Paulo, quem lida muito com plantas e tem uma “boa mão” para elas, tem uma relação estreita com uma espiritualidade – assim, me permite dar um salto na tua trajetória e pular para te perguntar sobre como pintou o convite para ornar a berlinda de Nossa Senhora de Nazaré [no Círio]? Essa experiência mexeu muito contigo?
PM: Eu sou florista há 23 anos. A arte floral é minha expressão de arte. Aliás, preciso contar que minha primeira expressão de arte foi a fotografia – aprendi com meu pai e meu avô, que tinham isso como hobby. Ainda tenho a Leica [câmera fotográfica muito famosa entre a metade e o fim do século passado] do meu avô, de 1942 e a Leica do meu pai, de 1964. Eu as preservo com todo amor. Mas te dizia eu que minha primeira expressão de arte foi a fotografia e meu primeiro mestre foi o Miguel Chikaoka (fotógrafo paraense). Fiz o curso com o Miguel e um dia, ele disse algo muito interessante, que “via cor no meu trabalho”. Foi quando parti para o chromo.. À época, estava muito em alta fotos em preto e branco e eu quis cambar para fotos fashion e me identifiquei demais com fotos de natureza. Foi uma paixão e o Miguel sinalizou isso lá atrás. Na fotografia, me especializei em fotos de grandes animais, tipo cavalos e bois. Apaixonado por fazenda, tendo ligação com esse universo, findei tendo uma plantação de helicônias. Dessa época, com essa coleção de helicônias, tive contato com o Nelson Buoro, que foi meu mestre na arte floral – foi ele quem me ensinou a não ser apenas plantador de flores e, sim, florista. Daí, uma coisa foi encaixando na outra, né? Fiz eventos e passei muitos anos trabalhando com isso. Um belo dia, tive o prazer de ser convidado para fazer a berlinda. É importante que se diga que antes dela, eu sempre busquei muito estudo – nunca foi achismo. Sou a favor de que se você tem um dom, aprimore ele. Lapide, exacerbe! Quando eu me descobri florista, fui estudar.

T+M: Conseguirias pontuar isso cronologicamente?
PM: Começou em 1997.

[Eu e Paulo falamos quase que simultaneamente, “na virada para os trinta anos”]

T+M: Na virada para seus 30 anos!
PM: Na virada dos 20 para os 30 anos! Exatamente! Quando prevalece nosso ascendente!

T+M: E qual é seu signo ascendente, Paulo?
PM: Peixes!

T+M: Sonhador, contemplador do belo! Faz todo sentido.
PM: Então! Deixei a fazenda e, a partir da coleção de helicôneas, virei florista. Daí, me aprofundei: fui para Estados Unidos, Europa, Oriente. Não importava o lugar – se falassem que lá havia referências de arte flora, para lá eu ia. Em 2003 eu fiz a primeira berlinda. Costumo chamar esse período de “primeira temporada”, porque foi de 2002 a 2007. A segunda temporada foi de 2015 a 2019. 

T+M: E como foi esse primeiro encontro com Ela, sob uma perspectiva diferente?
PM: Sempre fui muito apaixonado por Nossa Senhora. Mas muito, muito apaixonado mesmo! Ela sempre foi mais que a Igreja. Sou muito curioso com religiões e gosto muito do Espiritismo, do Budismo. Inclusive acho que nestes tempos estou mais búdico – porque o Budismo não é uma religião e, sim, uma filosofia. Mesmo dentro desse enorme sincretismo religioso, o lugar Dela era só Dela. Como moramos uma vida inteira na avenida Nazaré, meu pai recebia as pessoas em casa quando era Círio. Estamos falando dos amigos dele, que não eram de Belém. Ele fazia questão dessa proximidade com o rito, com Nossa Senhora. Ele tinha muito orgulho de mostrar a elas como era a festa. Era um super almoço na casa do meu pai e da minha mãe. Até que um dia, fui convidado para decorar Sua berlinda. Inicialmente, o teste era decorar um cantinho da berlinda e lá fui eu, levando uma quantidade enorme de flores. Fui aprovado e assim foi uma emoção incrível! É até hoje! Fico envaidecido, sim, por fazer a berlinda, porque isso tudo é para Ela. É para Nossa Senhora!

T+M: É lindo e demonstra o quanto você compreende o real sentido disso tudo.
PM: Aí, quando eu fiz 50 anos, passei por uma cirurgia de aneurisma na cabeça. Nessa época, eu estava encantado com os bonsai e depois da cirurgia, quis me dedicar mais ainda a eles, por conta de ser algo vivo. Na arte floral clássica, você pega a flor e ela está morta. Já foi cortada. Está linda, fresca, mas está morta. Tem uma frase budista com a qual eu me identifico muito: “se você ama uma flor, você não a arrancará – você a contemplará”. Eis o verdadeiro sentido do amor e eu me vejo envolvido por ele. 

T+M: Paulo, ninguém passa por uma cirurgia como a sua e sai a mesma pessoa. Há uma enorme tendência de ressignificar a vida. Especialmente nestes tempos como agora.
PM: Sim, sim. Engraçado você dizer isso porque há uma curiosidade interessante a respeito da cirurgia. Meu pai morreu ao fazer a mesma cirurgia, aos 49 anos. E completei 50 anos dois dias antes da operação. O papai teve o AVC. No meu caso, o aneurisma foi descoberto antes e operado. 

T+M: Nossa, tinhas noção de tantas similaridades?
PM: Essa coincidência de tempos, de números, de histórias é interessante, né? Os médicos chamam essas coincidências de esmeraldite. Meu pai era médico [a esmeraldite é uma psico-patologia que, em tese, afeta apenas os médicos e é assim chamada em alusão à pedra/gema da profissão, que é a esmeralda] e essa coincidência ocorreu conosco. Por conta de um defeito congênito, uma vez que eu só tinha uma veia e foi justamente nela que ocorreu o aneurisma, a cirurgia não poderia ser laparoscópica. Foi de cabeça aberta, que foi longa, complicada, mas que, enfim, deu certo. Tô aqui até hoje para falar dela. E mais importante: sem sequelas.

T+M: Saíste diferente?
PM: É uma coisa muito forte passar por uma cirurgia como essa. Fiquei com mais vontade de cultivar a vida e as plantas entram aí. Aprimoro esse cuidado, esse olhar justamente com os bonsai – porque são plantas que exigem todo um cuidado. Estão em vasos rasos e precisam de direcionamentos. A poda precisa ser precisa nos galhos, na raiz. O simbolismo é muito profundo desse amor aprofundado e afunilado com a natureza.

T+M: São eles tuas maiores ocupações neste período pandêmico? Observas que as pessoas estão se relacionando de maneira diferente com as plantas no momento?
PM: Ah, então, eu vejo que sim. Lembro demais da minha avó [dona Altair “Titá” Morelli]. Íamos para a fazenda e eu a observava pegar os vasos de plantas externos e levá-los para dentro de casa. Ela os arrumava na varanda, na sala. Sempre havia um vaso perto de uma fruteira. Esse cuidado era lindo. Vó Titá fazia algo muito legal, porque morávamos no mesmo prédio e eu e meus primos, volta e meia, aparecíamos para almoçar com ela e meu avó. A mesa sempre tinha flores elegantemente arrumadas. Ela amava jasmim e se víssemos uma flor em um vasinho colocado em frente a um prato, já sabíamos que tinha um convidado! Uma comadre, uma amiga. Esse receber, esse cuidado com mesa é a cara de um taurino, não? [ele ri]

T+M: Muito! Taurinos amam boa mesa, amam comensais.
PM: Mesa, comida boa, gostosa. Mesa acolhedora. Sabes que mesmo morando só atualmente, arrumo minha mesa! Sozinho em casa, em plena pandemia, por hábito, por exemplo, eu estranho sentar à mesa sem camisa. Aí, eu lembro que estou só e relaxo. Meu pai não gostava de ver a gente andando de pijama pela casa – e até hoje continuo sem andar de pijama, quando estou sozinho em casa.

T+M: A monja Coen, em entrevista concedida à Troppo há algumas semanas, disse que o mundo nunca mais será o mesmo...
PM: Penso da mesma forma! A gente precisa se aprofundar nas relações. Quem ainda não percebeu mudança de “casca” pela qual o planeta Terra está passando, não percebeu nada! Por isso que eu acho, mas é achismo mesmo, que essa pandemia vai durar uns dois anos e ensinará muito as pessoas as viver melhor – viver no presente é fundamental! Fundamental! Falar de passado pra quê? O passado foi ontem! Falemos de ideias, de conceitos.

T+M: Isso vem muito ao encontro de uma tendência que já começa a se apresentar, não? De casas mais vivas, mais verdes, com mais plantas...
PM: Hoje as pessoas percebem, como talvez não percebessem antes, que é melhor descascar do que abrir uma embalagem. Já sentem na própria pele o que é comer melhor, em vez de comer enlatado. As pessoas já observam melhor seus entornos, a natureza. Fazemos parte de algo maior, que precisa ser respeitado. A própria NASA já falou, há uns dois anos, da importância da espada de São Jorge – que é a planta de maior transformação energética e purificação do ar! Recomenda-se que elas fiquem em casa, perto de TVs, em áreas de trabalho. O que a NASA descobriu já era de sabedoria dos nossos antigos, dos ancestrais, porque a espada de São Jorge é de origem africana e veio para no Brasil junto com os negros, que as traziam como proteção. As sanseviérias [gênero das espadas de São Jorge] ficaram populares por causa da crença africana. Vejo as pessoas se voltando à vida saudável, à Medicina, à qualidade dos momentos em família. Essa mudança de ares e entrada de mais plantas nas residências vai se dar de maneira muito natural. As pessoas têm buscado mais informações sobre como cultivar, com qual periodicidade molhar as plantas. Eu digo sempre que os pets estão virando filhos e as plantas estão virando pets. Isso é maravilhoso! Uma troca de energia fantástica!

T+M: Para finalizar, Paulo, queria que falasses mais sobre a arborização de Belém, que já foi uma das mais arborizadas do país e que ostentou, com verdade, o título de “cidade das mangueiras”.
PM: Tenho posições bem peculiares a respeito. Na Amazônia, as pessoas chegaram “ontem”. 1500 foi ontem! Principalmente na Amazônia, nas casas do interior, quase todos têm um terçado. O caboclo vai lá e, com o terçado, abre um espaço ao redor do seu lar, para impedir que uma onça ou cobras se aproximem de sua família. E esse hábito está tão enraizado na cultura cabocla, que jardineiro, aqui, poda planta que não é para ser podada! Ele acha que cuidar de um jardim é meter o terçado para mostrar serviço – e não tirar folhas secas, molhar e conversar as plantas. Isso é coisa de doido! Nós somos uma das piores cidades, em termos de arborização, no Brasil, sabia? Essa fama de “Cidade das mangueiras” diz respeito a apenas 8% da capital. Queres saber o que é mais preocupante ainda? As mangueiras têm, em média, 120 anos de vida. Todos os exemplares de Belém foram plantados no começo do século passado, entre 1904 e 1905, ou seja, elas estão fazendo 120 anos dentro dos próximos dois anos. 

T+M: Há algum plano de manejo para substituí-las?
PM: Não vejo nada ser feito! Volta e meia, cai um mangueirão desses. Isso vai ser corriqueiro e elas estão morrendo. Aí você anda um pouco pela cidade e vê fícus por todo o lado! Trata-se de uma planta também do sudeste asiático que não se adapta bem aqui. Já sugeri que fosse plantado, no lugar das mangueiras, o pau preto [Dalbergia Latifolia] por ser nativa da Amazônia, sua copa ser frondosa, ter uma flor linda e ser absolutamente adaptável à vida urbana. E ninguém olha para isso! Já pensaste no túnel de mangueiras da Praça da República caindo de uma vez só? Ninguém faz uma poda de proteção nas copas, de modo que elas ficassem mais fortes. Talvez não percebam que são senhoras de idade, que precisam ser cuidadas, tratadas... com amor e com o cuidado que merecem. Podem durar mais de 120 anos? Podem, claro que sim! Mas precisam de cuidados. Estão asfixiadas entre concreto e asfalto. Não pensam nisso e é tudo muito triste.

Troppo