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Queremos viver!

Caio Oliveira

“Eu não consigo respirar”. Essas foram as palavras que marcaram os momentos finais de George Floyd, homem negro que foi morto por um policial branco, em Minneapolis, cidade dos Estados Unidos, em maio deste ano. Em plena luz do dia, na frente de câmeras, Derek Chauvin não parou de pressionar o joelho contra o pescoço de um homem imobilizado e desarmado, que, suplicando, avisa que não vai suportar por muito tempo. Depois de ser sufocado até a morte e ser calado para sempre, outras vozes passaram a fazer coro aos apelos de Floyd, entoando uma frase que vai se espalhando cada vez mais pelo mundo: “Vidas negras importam” (tradução literal do inglês, black lives matter).

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“Nos Estados Unidos, eles aboliram a escravidão pouco mais de 20 anos antes daqui. Isso favoreceu a consolidação de algumas lutas, como o movimento pelos direitos civis nas décadas de 60 e 70, com o Luther King e Malcolm X. Foi um conflito mais aberto, enquanto no Brasil, criou-se um movimento de democracia racial mentiroso, ilusório, que dizia que já que acabou a escravidão, estamos todos em harmonia, mas a estrutura social continuou sendo mantida através de medidas legislativas e políticas públicas segregacionistas. Esse mito fez com que algumas lutas fossem muito mais difíceis no Brasil e o movimento negro teve que ter muito mais força, de brigar muito mais para quebrar a estrutura e identificar quem está nos oprimindo”, diz Squires.

Para a jornalista e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Raíssa Lennon, por ser um país que foi invadido em diversos momentos de sua história, o Brasil apresenta vários níveis de racismo que o diferenciam de outras partes do mundo. “O racismo em nosso país se instaura desde a invasão dos Portugueses aqui, e eu destaco ‘invasão’ porque não foi ‘descobrimento’, como estudamos na escola. Começou, então, esse processo de dominação e racismo, primeiramente contra indígenas e, após, contra os africanos que foram sequestrados para serem escravizados neste território. Houve um processo de desumanização e violência de todos aqueles que não estavam no ‘padrão branco e europeu’, com o silenciamento das nossas raízes africanas e negras. Por meio do discurso da miscigenação, se implantou uma ideologia de que ‘somos todos iguais’ e que brancos, negros e ‘índios’ convivem harmoniosamente. Isso não é verdade, o Brasil é desigual e dividido. Se você pegar todas as estatísticas você vai ver que a maioria da população carcerária é negra; que a maioria dos homicídios são de homens e mulheres negras; na pandemia da covid-19, foram os negros os mais atingidos por falta de habitação digna; as mulheres negras são as que mais sofrem de violência doméstica, etc. A raiz de tudo isso se deu no processo de colonização e escravização”, explica a estudiosa.

De acordo com o Monitor da Violência [projeto que levanta e analisa periodicamente os números relacionados a crime e violência em todo o Brasil], nos seis primeiros meses de 2020, houve aumento no número de mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, em relação ao mesmo período do ano passado – e as principais vítimas de feminicídio são mulheres negras. Dos 889 homicídios de mulheres, em que a raça foi especificada, 650 (73%) foram cometidos contra mulheres negras. A população negra tem 2,7 vezes mais chances de ser vítima de assassinato do que os brancos, segundo o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de homicídios entre homens jovens pretos e pardos em 2017 chegou a 185 a cada 100 mil habitantes de 15 a 29 anos, quase três vezes mais do que os brancos, com média de 63,5.
No Pará, bem como nos casos que deram origem ao Black Lives Matter nos EUA, a violência policial e urbana é uma constante na vida da população negra. Mais que isso. Aqui, há outro fenômeno macabro que marca o cotidiano de quem mora nas periferias: as chacinas. Conforme apontou o relatório "Situação dos Casos de Chacinas e Extermínio de Jovens Negros no Estado do Pará”, elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA), a maioria das vítimas dessas chacinas são jovens, negros e pobres, pessoas que são penalizadas por morarem na periferia, que é o palco desses massacres. Para os estudiosos, isso tem nome: genocídio da população negra, que é perpetrado de formas físicas e sociais, oprimindo o ser humano em sua própria essência.

“Esse é mais um paralelo entre o Brasil e os EUA, que apesar das diferenças históricas, há a semelhança da imagem do preto ser o primeiro alvo da violência policial, o primeiro suspeito, o primeiro a ser ‘baculejado’. Há essa imagem do perfil do ladrão como sendo o preto, de estatura média, magro, por todo o histórico da escravidão, por a população negra estar à margem de direitos. Quando falamos em violência, não é só a arma apontada pra cara, que envolve a violência das milícias e da polícia, mas também a falta de políticas públicas: a ausência do Estado faz com que a população preta fique à margem de direitos, não tenha saneamento, não tenha saúde, educação, e isso também é um genocídio. Toda essa estrutura, e o fato dela atingir a maior parte da região periférica - e dentro dessa região, estando a maior parte da população negra - não é por acaso. O negro passa a ser o alvo dessas chacinas, e destacadamente, o jovem preto”, conta Paulo Victor Squires.

O papel da internet na luta diária

A publicitária Roberta Aragão, mestre pelo PPGCom da UFPA e integrante da Rede de Ciberativistas Negras, entende há bastante tempo que, se usada de maneira correta, a internet pode ser uma valiosa ferramenta no combate ao racismo, mas o ambiente virtual também é marcado pela violência contra negros.

“Sou da geração que nasceu usufruindo das grandes possibilidades que a internet tem a nos oferecer, mas como estudiosa e militante do tema, a cada dia eu e meus irmãos negros e negras temos a certeza que a internet, que deveria ser um lugar mais horizontalizado e de diálogo, acaba sendo mais um lugar verticalizado de opressões. É importante, portanto, destacar que nós, enquanto mulheres negras, temos nos organizado na rede e fora dela. Acreditamos e temos lutado para que a internet seja um espaço de construção de conhecimento e de combate às opressões, mas, principalmente, de troca de experiências”, diz Roberta, que reforça que seu ciberativismo atua em várias frente para atingir seus objetivos.

“São realizadas campanhas de conscientização, estratégias de autocuidado, cursos de como nos protegermos nas redes e, é claro, o fortalecimento da própria rede de negros, sempre com o diálogo com outros militantes de outros lugares do país. O objetivo é pensarmos soluções, tanto na internet quanto fora dela, que de fato tenham êxito na busca de uma sociedade menos opressora a todos os homens e mulheres negras. Importante ressaltar que organizar-se em rede não significa agir exclusivamente nas redes sociais, vai além. Estar em rede é o ato de permanecermos unidos e nos mobilizando, mesmo que à distância, e através das redes”, explica a ativista, que tem sua fala reforçada por Raíssa Lennon.

“O Black Lives Matter foi importante como uma resposta popular contra o assassinato das pessoas negras, no sentido de que não podemos naturalizar a morte, mas não existem soluções rápidas e fáceis, e uma hashtag não vai acabar com o racismo. É preciso que todos e todas, inclusive os brancos, encarem essa questão com seriedade e mudem suas práticas diárias. Precisamos lutar por políticas antirracistas e de ações afirmativas, e também ocupar os espaços de poder, porque não somos minoria no Brasil”, diz a comunicóloga.

Outro ponto importante que deriva da origem virtual desses movimentos é a adesão por parte de pessoas influentes e artistas que, em suas redes sociais, declaram apoio à causa negra, fazendo com os temas discutidos cheguem a ainda mais gente. Para Gessycka Gino, é fundamental que uma pessoa negra e de influência use os meios que dispõem para falar disso com seu público.

“Eu, como mulher negra e jovem, uso sempre do espaço que tenho para dar voz a esses assuntos, fazendo chegar a outros tantos jovens que me seguem e que, às vezes, não ouviram falar, ou não estão por dentro. Então eu não perco essa oportunidade de levar a eles pautas como o racismo. Quem me acompanha quer me ver do jeito real, então sempre que trago assuntos tão importantes como esse para as minhas redes, mostro como eu me sinto, e acho que não deve ser de outra forma, né?”, comenta, completando que tocar em temas tão essenciais costuma mexer com seu emocional. “Às vezes, é bem difícil pra mim falar de assuntos como racismo, porque querendo ou não, são feridas pra mim, mas eu tento, porque sei da minha voz na internet e que ela vai chegar em muita gente”, conta Gessycka. 

E é assim, por meio das vozes de tantas irmãs e irmãos, que aqueles que foram sufocados até a morte por um sistema que oprime conseguem ser ouvidos, e o mundo começa a entender que nós não seremos mais calados.

Para conhecer mais:
@paulovitorsquires
@gessyckagino
@betaragao
@lennonraissa

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