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Põe tapioca, põe farinha

Dominik Giusti

Café com leite e farinha de tapioca, cupuaçu com farinha, peixe no açaí, manga verde com sal: existem combinações gastronômicas populares improváveis para paladares estrangeiros, mas que, para os belenenses, são verdadeiros deleites. Esses hábitos são mais fortes no entorno de Belém e na região nordeste do Pará, onde se estabeleceu um vínculo com os insumos do território amazônico de forma peculiar; diferente de outras regiões do estado, que por conta dos movimentos migratórios de famílias do Sul e Sudeste do país, acabaram tendo sua culinária marcada também por outros sabores.

Na casa de Sérgio Paulo de Carvalho, 62, servidor público federal aposentado e ministro presbiteriano, nunca faltou criatividade na hora de usar a farinha, por exemplo. Ele conta que foi ainda adolescente que começou a usá-la, daquelas que chamamos de “baguda” (mais grossa), para incrementar os pratos e sobremesas . “Experimentei adicionar a farinha ao pudim, ao creme de frutas, mousses e alguns sucos de frutas. Gostei da crocância que adiciona e até hoje eu o faço. A farinha tem que ser de qualidade e torrada. Não para fazer um pirão, vou jogando por sobre o alimento e absorvendo junto às colheradas”, revela.

“Meus parentes gostam da farinha, mas no cotidiano, sem o uso que eu faço. Uso também com leite moça, castanha do Pará ralada, no açaí e tantas outras maneiras. Com abacate amassado farinha e leite em pó. Quase tudo leva um pouco dela”, confessa. Além disso, Sérgio destaca algo muito importante na relação com nossa cultura: a crença na cura pelos alimentos, algo transmitido por diversas gerações, a partir do uso rotineiro de determinadas receitas. 

De origem humilde, ele recorda o hábito de fazerem o chibé (frio) ou o caribé (quente), “como um suplemento alimentar por suas carências e restrições de recursos. E também durante o restabelecimento e tratamento das enfermidades e dos resguardos das parturientes nas famílias”, comenta, relembrando ainda que, sendo neto de portugueses, foi criado desde menino com um pontual café com leite, sempre às 16h, acompanhado com pão massa grossa (o francês) e o massa fina, com manteiga, ou mesmo filhós - doce típico de Portugal feito com farinha de trigo, mas que também foi ressignificado e é feito por aqui com a farinha de mandioca, água e sal, além de ser frito. 
 
E não é privilégio dos que têm mais idade esses hábitos alimentares. O estudante Carter dos Santos da Silva, 23, é apaixonado pelos produtos regionais e sente muito orgulho da diversidade e abundância das nossas frutas, verduras, legumes - as cores e as sensações na boca são um convite ao consumo. “Impossível ver uma manga e não pensar logo no sal, principalmente se ela estiver verdinha”, confessa. “Amo muito e é muito comum a gente tomar café com farinha de tapioca aqui em casa”, diz. 

Romário Almeida, 25, geólogo também tem o mesmo sentimento, que é mais latente por um dos nossos frutos mais celebrados nos mercados interno e externo: o açaí. “Açaí para mim tem que ser raiz! Puro, sem açúcar e com farinha d'água, sempre acompanhado de carne, peixe ou camarão, de preferência. É mais saboroso! Açaí com açúcar não desce, meu paladar rejeita. Aqui em casa ninguém toma com açúcar – é meio que uma tradição”, diz. Ele também era acostumado a comer bacuri com farinha, nas tardes da infância em Cametá, de onde sua família tem origem. 

A saudade foi intensa quando ele precisou morar por cinco anos em Marabá, para cursar a faculdade. “Lá as pessoas não têm muito o hábito de comer as comidas típicas do Pará. Acredito que seja por conta da quantidade de pessoas de fora da região. Então, eu sentia muita saudade de comer vatapá, tacacá, até mesmo de tomar açaí, pois era um pouco difícil de encontrar e era caro! Quando eu vinha a Belém, aproveitava e era açaí toda hora”, conta.

Em São Paulo, onde ficou um mês, também deu um jeito de descobrir onde poderia comer o que suas memórias afetiva e gustativa pediam e, levou consigo, além de um paulistano, um costarriquenho para se deliciar com os temperos e produtos regionais. “Essas comidas sempre nos remetem à nossa infância, à nossa família pois é algo que a gente cresce e vai absorvendo. É um mix de sensações”, filosofa.

De acordo com a professora Sidiana Ferreira de Macêdo, historiadora da alimentação e professora da Faculdade de História da UFPA, a alimentação tem esse poder de transportar as pessoas às suas mais tenras memórias. “Por meio da alimentação podem-se identificar os valores culturais de uma dada sociedade. Como parte cotidiana da vida dos indivíduos, ela nos diz sobre o que significa alimentar-se nos diferentes tempos e sociedades. Em larga medida, somos aquilo que comemos, não sendo o ato de se alimentar tão somente fisiológico, afinal comida é cultura e, sendo cultura, é parte importante das identidades construídas socialmente com seus diversos marcadores sociais, étnicos e religiosos, bem como de gênero”, analisa.
Ela explica ainda que a cozinha de Belém foi construída ao longo dos anos com uso de sabores e técnicas ancestrais de grupos indígenas, mas, também, com ingredientes e conhecimentos de portugueses e africanos, de forma majoritária. “O caribé era um hábito alimentar de grupos indígenas que, somado ao uso europeu do consumo de caldos quentes, como as sopas para uso medicinal, ganhou espaço como consumo para fortalecer o corpo”, explica, em alusão ao que é tão comum na família de Sérgio, nosso personagem do começo desta matéria. 

Manteiga de tartaruga
Além dos produtos mais conhecidos, há ainda aqueles que ficaram famosos em outras épocas e que não são mais habitualmente encontrados, como a manteiga de tartaruga. Sidiana conta que esse produto era muito consumido na Belém do no século XIX e início do século XX. A manteiga era produzida a partir dos ovos de tartaruga, ainda frescos, e conta-se que os ovos eram coletados nas areias dos rios, ao longo da Amazônia. 

“Estes ovos eram colocados em vasilhas, nas quais se colocavam água e ficavam expostas ao sol mais de uma vez até estarem prontos. A manteiga de tartaruga era líquida e, sendo assim, muito utilizada para frituras e bastante consumida pelos ribeirinhos e pela população dos interiores e da capital. Era muito apreciada pelos moradores que, além da manteiga, faziam com os ovos de tartaruga biscoitos, doces e outros alimentos”, explica a professora sobre esta iguaria.

Ela diz que o consumo dessa manteiga acabou diminuindo e foi substituída pela manteiga importada, sobretudo as de origens inglesa e francesa, já que, sendo um produto importado, conferia status aos seus consumidores. “Outra questão era a forma como ela era produzida, ou seja, era preciso dizimar muitos ovos e consequentemente ‘futuras’ tartarugas. Muitos viajantes quando passaram pela Amazônia faziam críticas à forma com que esta manteiga era produzida. Ainda assim, a manteiga de tartaruga continuou sendo consumida sem a mesma importância pela população dos interiores e da capital também, já que para eles a manteiga de tartaruga além de fazer parte dos hábitos alimentares era, em muitos lugares, a única manteiga que podiam dispor”, esclarece.   

Troppo