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Feliciano Lana Desana, o filho dos desenhos e dos sonhos

Nina Matos

Tive o prazer de conhecer Feliciano Lana Desana em meados de1998, quando fui trabalhar no Museu de Arte de Belém – MABE, para pensar e coordenar a Galeria Municipal de Arte, que ficaria vinculada ao museu. Então, através da antropóloga, museóloga e pesquisadora Lúcia Hussak Van Velthem, diretora do MABE à época, fui apresentada ao universo pictórico desse artista visual indígena, que traduzia em seus desenhos e pinturas uma linguagem gráfica descritiva da tradição oral de seu povo, o enredo mítico da criação do universo e da humanidade. 

Ele estava em Belém para a realização de uma exposição, organizada por Lúcia, em parceria com o MABE e o Museu Emílio Goeldi. Assim trabalhamos, no exercício de uma curadoria participativa, entre o corpo técnico museal e a participação efetiva de Feliciano, a mostra “Mitos Gráficos: Pinturas de Feliciano Desana”, a primeira exposição, realizada em um museu de arte no Brasil, com obras de um artista visual indígena e o MABE foi pioneiro nessa ação. A mostra apresentou ainda a publicação de um jornalzinho com a relação dos desenhos e textos.  Em um deles, Feliciano escreveu sobre a sua obra e destaco um trecho aqui: “...ajudei a trabalhar o Padre Casemiro, gravando as histórias e rezas. Logo em seguida, já comecei a escrever as histórias, o mesmo tempo fiz uns desenhos com lápis e borracha, representando as histórias antigas. Assim comecei a desenhar ‘histórias da criação do mundo’”. O MABE, ainda sob orientação de Lúcia Hussak, adquiriu toda a série de pinturas em guache apresentada na referida exposição, um acervo que nos orgulha, sendo que parte dessa série foi mostrada recentemente na exposição “Olhares sobre a Amazônia – acervo Mabe”, uma mostra que teve como objetivo dar a conhecer a riqueza da Amazônia, em seus aspectos naturais, culturais, sociais, míticos e históricos, através das coleções do expressivo acervo desta emblemática instituição da região amazônica. 

Em um breve histórico sobre o artista, a mãe era Tukano e o pai, Desana. Ele era Desana, do sib Kenhiporã, cujo significado em português é algo como “filhos dos desenhos dos sonhos”. Nasceu em 1937, às margens do rio Tiquiê, afluente do Uaupés, no rio Negro (AM), próximo à fronteira com a Colômbia, e recebeu o nome de Sibé. Passou a infância ouvindo as histórias narradas pelos mais velhos, que explicavam a origem do mundo. Quando completou onze anos, Sibé saiu da comunidade Desana de São João Batista para estudar no internato salesiano de Pari-Cachoeira. Foi ouvir e viver outras histórias. Lá, sem deixar de ser Sibé, falante de duas línguas indígenas, passou a ser também o aluno Feliciano Pimentel Lana, nome com o qual ficaria conhecido no mundo da escrita e da língua portuguesa. 

Feliciano ganhou, em 1965, um gravador e uma máquina fotográfica do padre Casemiro, missionário salesiano, que lhe pediu para gravar histórias completas contadas pelos velhos, sobre a criação do mundo, estimulando-o a mergulhar em sua cultura. Aproveitou, assim, para gravar também outras narrativas: orações de como curar as doenças, como benzer o cigarro, como benzer a moça na sua primeira menstruação, a origem da noite, o roubo das flautas sagradas..., algo que mais tarde o acompanhou, uma vez que seguiu pintando e curando, já que era muito procurado por ser também um benzedor reconhecido. 

As narrativas gravadas foram ilustradas com desenhos, transformando as histórias em ‘narrativas gráficas’. Os desenhos de Feliciano percorreram o mundo, adquirindo uma dimensão internacional. Pertencem a acervos de museus nacionais e internacionais e foram expostos em São Gabriel, Belém, Manaus, Rio de Janeiro, França, Áustria, na Alemanha (em mostra organizada pelo Museu de Etnologia de Frankfurt), Espanha e Itália. Feliciano e seu primo Luiz Lana, incentivados no exercício de sua arte, criaram uma série de desenhos que acompanham o registro escrito das mitologias Desana, publicados no livro “Antes o mundo não existia”, organizado pela antropóloga e pesquisadora Berta Ribeiro, que enxergou na expressividade gráfica de Feliciano e na de outros indígenas um grande potencial para contribuição com a cultura e a ciência de nosso país.

Feliciano elaborava, principalmente, o mito da criação, objeto exclusivo de sua narração pictórica, alegorias de uma cultura de construção mítica, que se encontra tão profundamente ligada ao cosmo, à natureza, ao espiritual, a simbolismos, que fornecem elementos para a formação de um imaginário poético, presente naquele que habita o cenário monumental da floresta e suas margens ribeirinhas. Era ainda dotado, de muita sabedoria sobre a arte de curar com a música.

Causa-nos tristeza a perda deste artista e sábio brasileiro, de extraordinária contribuição para a cultura da Amazônia, ocorrida no ultimo dia 12 de maio, aos 83 anos, em São Francisco, comunidade situada no Alto Rio Negro, tristemente em decorrência da Covid-19. Nosso pesar por esta grande perda e cabe salientar aqui uma preocupação vigente com as comunidades indígenas brasileiras, neste momento de pandemia, pelas condições vulneráveis nas quais se encontram e pelo histórico perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado, bem como nossa preocupação com a natureza, tão ameaçada, fonte de inspiração e de sabedoria deste artista.

Salve Feliciano, a arte, a natureza e os indígenas deste país!

* Nina Matos é artista visual e curadora.

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