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'As mulheres são a revolução'

Lorena Filgueiras

EXCLUSIVO – EXCLUSIVO – A espanhola Pilar del Río conta que quando começou a ler o livro “O ano da morte de Ricardo Reis”, foi arrebatada. Não há outro verbete que defina melhor o sentimento que acometeu-lhe feito febre. Ficou tão apaixonada pela obra que postergou ao máximo, a leitura das duas últimas páginas. Demorou dias para fazê-lo, de maneira a adiar o encontro com o final. Quando terminou, afinal, decidiu que precisava conhecer Lisboa – não sem antes tentar contato com o autor do livro, o português José Saramago, àquela altura, um escritor respeitado e no auge de seus sessenta anos. Pilar tinha 36. Começava, então, uma história de amor à primeira lida. 

Ao longo de 22 anos, a jornalista/escritora/tradutora foi companheira inseparável do escritor – ela rechaça veementemente o título de “viúva” ou “esposa”. “Nasci e fiz-me sozinha. Não perdi minha identidade”, declarou, certa feita, em uma entrevista. 

No comando da Fundação José Saramago, entidade dedicada a preservar a memória do único Nobel de Literatura da Língua Portuguesa, Pilar traz consigo e cumpre diuturnamente um amoroso pacto, feito com o esposo, de que levaria adiante e ao máximo de pessoas seus pensamentos e sua obra.

Nossa entrevistada é uma impressionante força da natureza, por seu vigor, motivações e seu enorme brilho: uma mulher de personalidade e que, lucidamente, enxerga o que muitos não querem ver. 

Nesta entrevista exclusiva que concedeu à Troppo + Mulher, inicialmente prevista para ocorrer presencialmente na FJS (e cujos planos foram alterados em função da pandemia do coronavírus, que esvaziou completamente Lisboa, transformando a capital portuguesa num quase cenário de “Ensaio sobre a cegueira”), ela rechaça o pronome de tratamento formal e fala, naturalmente, sobre Saramago. Mas abre seu coração e inteligência para discorrer sobre o feminismo, a vitória da ignorância, a cegueira atual e jornalismo, sem deixar de se posicionar sobre amor, resistência e beleza.

Troppo + Mulher: A caminho da Fundação Saramago, onde ocorreria incialmente nossa entrevista, eu não conseguia parar de pensar no Ensaio sobre a Cegueira. Na realidade, parecemos viver em terra de cegos em Pandemia, além de assustadora inversão de valores e fatos: o levantamento da extrema direita na Europa e no Brasil, revisionismo histórico, terraplanismo... Como jornalista, qual sua percepção deste momento? 

Pilar del Río: Vivemos na sociedade dos cegos, sem dúvida, e essa sociedade é o mundo inteiro. Cegos que vendo, não fomos capazes de ver; que colocamos o egoísmo, o consumismo irracional e a ambição desmedida à frente do senso comum e dos valores que nos distinguem como seres humanos, ou seja, razão e consciência. Optamos pela cegueira e o caos chegou. Não poderia ser de outra maneira. Não vemos o presente, tampouco entendemos o passado, por isso o negamos frivolamente e aceitamos superstições incompatíveis com a ciência e a razão. 

T+M: Sua entrevista ocorre no mesmo dia em que o presidente da república (Brasil) fez um pronunciamento chamando o Covid_19 de “gripezinha”, rotulando a imprensa de alarmista e exagerada, ao mesmo passo em que convocou os brasileiros a saírem da quarentena e retomarem seus postos de trabalho. Trump, por sua vez, também neste dia, afirmou que em 15 dias os EUA deverão voltar ao seu pleno funcionamento [nota da editora: no último domingo, 29, Trump voltou atrás e pediu que os americanos ficassem em casa]. Se este momento fosse uma inspiração a um livro ficcional - seu, naturalmente -, qual seria o fim dele? Na vida real, você sente algum tipo de receio por tudo isso? Acordarão as pessoas dessa letargia? 

PdR: Vamos ver, a “gripezinha” terá como objetivo a morte de umas quantas milhões de pessoas que não consomem e, portanto, estão a mais, sobram no mundo. Depois de ter se despendido dessa gente, o sistema se reiniciará para controlar tudo melhor: mercado, finanças, política. Aumentará o controle das pessoas e sociedades com o argumento de que é para o bem de ambas. Estaremos indefesos, submissos diante do “Grande Irmão” [Pilar faz referência ao escritor George Orwell e sua obra “1984”, em que relata uma sociedade sob controle e constante vigilância. O “Grande irmão” é como Orwell denomina o Estado controlador], indiferentes. José Saramago dizia isso, que nos querem indiferentes, resignados ou amedrontados. Estão conseguindo. Tenho pena que isso ocorra e não haja resistência. Como terminaria uma ficção que escrevesse sobre isso? Prefiro dizer como começaria: “No dia seguinte ninguém acreditou nos sacerdotes do poder”. E pediria que cada um continuasse a escrever o seu relato. 

"Não vemos o presente, tampouco entendemos o passado, por isso o negamos frivolamente e aceitamos superstições incompatíveis com a ciência e a razão". 

T+M: Por que quis ser jornalista, Pilar?

PdR: Para contar o que via e também como forma de militância social e de ativismo. Pense que comecei na profissão quando a Espanha estava sob uma ditadura nauseabunda [a era Franquista durou de 1939 a 1975]. Depois foi necessário construir uma democracia e como jornalista estive empenhada nessa tarefa. E continuo empenhada, por isso me parece tão ruim a suposta “neutralidade” que alguns meios defendem em situações graves quando a liberdade é questionada. Ninguém é neutro. 

 

Nós, feministas, já não temos paciência para discutir com terraplanistas.

T+M: Você preside uma fundação dedicada a manter vivo o legado de Saramago, em um cenário macro onde ainda há poucas mulheres no topo das cadeias corporativas. Aliás, pegando esse gancho, o Brasil é um dos países que mais mata mulheres - o feminicídio, crime cuja tipificação é recente. Em Portugal, tive acesso a alguns dados e vi que é um país que também reúne dados alarmantes a respeito. Qual o futuro do feminismo no mundo? 

PdR: O feminicídio é um mal absoluto. Matam mulheres porque a educação é deficiente, o sistema letal está obsoleto e os meios de comunicação não parecem ter entendido que uns e outras, todos os seres humanos, somos iguais, com os mesmos direitos e deveres. O patriarcado apresentou a mulher como um ser de serviços, a religião sacralizou a posição secundária das mulheres e, depois, a publicidade coisificou seres humanos sem que ninguém desse o grito de alerta. Do corpo da mulher e do que o cobre fizeram uma indústria, contaminaram a sociedade de dependências execráveis. Às mulheres negou-se até a educação, o acesso à universidade para que pudessem tomar decisões e serem elas mesmas. Basta dizer que em muitos países elas perdem até o nome por contrato matrimonial... E ainda no mundo há profissões masculinizadas ou com nomes masculinos, como presidir: ficam histéricos quando pensam que uma mulher pode ser presidenta. Esse é um terreno masculino, e eles uivam. Ou bispa: as igrejas não aceitam mulheres, salvo para tarefas secundárias ou para que cuidem a eles. Ou para enganá-las. 

“Sim, as mulheres, com consciência de o sermos - somos a revolução.”

T+M: O Feminismo será uma luta/assunto muito debatido na década a ser iniciada - que outros temas serão estarão em alta neste momento em que a sociedade desperta para alguns assuntos? O que será mandatório, emergencial que nos preocupemos? 

PdR: O feminismo não deve ser discutido, tem que estar na sociedade e nos planos de ensino dos países que se dizem civilizados e que não dependem de preceitos religiosos. Nós, feministas, já não temos paciência para discutir com terraplanistas. Agora é hora de atuar e ocupar espaços. Não somos propriedades de ninguém, nem de deuses, nem de pátrias, nem de maridos. Somos seres com direitos e ponto final. A incorporação das mulheres transformará, e muito, as sociedades: realmente acham que valorizamos tanto as bandeiras ou os exércitos para fazer disso matéria principal? De verdade, alguma vez as mulheres tiveram filhos para enviá-los a guerras e assim ampliar os domínios de um país? Realmente acham que as mulheres aceitam as novas formas de escravidão laboral? Entendo que o poder masculino e patriarcal não queira as mulheres por perto: não transigimos com a corrupção moral ou econômica e já demostramos isso. Sim, as mulheres, com consciência de o sermos - somos a revolução.

"Não somos propriedades de ninguém, nem de deuses, nem de pátrias, nem de maridos. Somos seres com direitos e ponto final".

T+M: Aliás, você acaba de fazer aniversário. Habitualmente mulheres não gostam de revelar suas idades - então prefiro saber de onde extrai tamanho vigor para dividir-se entre tantas atividades e desempenhar múltiplas funções? 

PdR: A força, que não se é tanta, vem de 70 anos de vida procurando alargar espaços de convivência e buscando que a sociedade que me rodeia esteja melhor. A força também vem da ira de ver o “espetáculo do mundo”, como se inclinam cabeças diante de idiotas, como esses idiotas desprezam os seres humanos que são diferentes ou pobres, como veneram o poder e a riqueza que os uniformiza, embora tremulem bandeiras distintos e com elas se ameacem uns aos outros. A força me vem do papel histórico das mulheres, tão importante como silenciado, da beleza das grandes obras, a pintura e música, a literatura, o cinema... Também de saber que as mulheres cuidaram da vida ao cuidarem do que estava à sua volta e, sobretudo, a força me vem de me sentir dessa estirpe lúcida e salvadora.

“[Minha força vem] também de saber que as mulheres cuidaram da vida ao cuidarem do que estava à sua volta e, sobretudo, a força me vem de me sentir dessa estirpe lúcida e salvadora”

T+M: No belíssimo livro do professor Carlos Reis [“Diálogos com José Saramago – ed.ufpa], Saramago falou sobre a carreira tardia, sobre a felicidade de estar ao seu lado e que “se morresse em dois dias, deixaria qualquer coisa sólida”. Você o conheceu no auge de sua juventude - como enxerga suas escolhas desde então? Todas foram válidas? Ficou algum arrependimento ou um desejo não realizado? 

PdR: Não sei se meu marido deixou algum desejo por realizar, sei que deixou por terminar “Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas”, livro que ele estava escrevendo quando morreu – embora não o tenha terminado, o livro está publicado e é um livro completo que recomendo nestes dias em necessitamos tanto da ética da responsabilidade. Sei que ficou sem visitar o Japão, algo que teria gostado de fazer. Também ficou sem conversar com algumas pessoas que gostaria, mas que morreram antes. E sei que o que realmente lhe fazia perder a paciência não era nada pessoal: era a situação do mundo, ver que estava no final, que ia morrer e que isto não melhorava, como se o trabalho valoroso de tanta gente fosse engolido por um monstro... Ver que o mundo não mudava – essa era a sua tragédia. E a sua paz era a ilha onde morava, os seus amigos, a sua vida afetiva, o seu trabalho e os seus leitores.

T+M: E quanto a você?

PdR: Nenhum arrependimento. Não realizei determinados projetos profissionais, mas em troca desenvolvi outros muitos. Na vida, toda opção significa milhões de renúncias. A minha opção de compartilhar a vida e ser cúmplice diária de um ser extraordinário é algo inquestionável. Porque nós fomos isso, fomos cúmplices e a sintonia era tamanha que José Saramago disse em público, várias vezes, e por isso faço referência aqui, que queria que eu o continuasse. Antes eu disse que a minha militância é José Saramago porque me comprometi, com a mesma veemência com que tínhamos compartilhado vida, a continuá-lo. E ele também estava comprometido a me continuar, embora sobre isso prefiro não falar. Sabíamos quem éramos e o que fazíamos. 

“Sabíamos quem éramos e o que fazíamos” – Sobre preservar a memória e dar continuidade à manutenção da obra do marido, Saramago.

T+M: Após 10 anos da partida de Saramago, para além de sua ausência, qual seu sentimento cotidiano, já que lida diretamente com a memória dele?

PdR: Meu trabalho é uma militância em José Saramago. Como sabemos, a sua obra é extraordinária e a minha dedicação vai nesse sentido, em mantê-la em permanente atualidade. Porque somos propensos à falta de memória e também sabemos que existem censuras – algumas mais; outras menos encobertas. E trabalho porque não gostaria de ver que José Saramago não é lido e comentado, como acontece com tantos outros grandes escritores e escritores, porque a sua obra nos ajuda a pensar e a valorizar a nós mesmos, a cada um de nós, a humanidade. Não tenho saudades pessoais, tenho a satisfação de trabalhar na sua obra e, a partir da Fundação, compartilhar com leitores do mundo esse legado de resistência e beleza. 

T+M: Presidenta, tenho uma curiosidade pessoal. Revelou-se, há pouco as circunstâncias da conquista do Nobel e da véspera do anúncio oficial, quando você foi a única pessoa a saber que ele ganharia o prêmio. Qual foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu?

PdR: Puf, foi como ter uma enorme pedra colocada sobre mim, um peso impressionante. Imagina receber um telefonema, entender a dimensão do que significava e não poder comentar com ninguém, porque tive que prometer silêncio absoluto até o dia seguinte... Mantive a promessa, vivi aquelas horas em situação de desconcerto total, não avisei ao meu marido, que estava na Alemanha. Sabia o importante que seria o prêmio para José Saramago e para a literatura em língua portuguesa, também via que a vida nos iria complicar muito, que tudo seria muito diferente... tive até medo. Depois, no dia seguinte, com a notícia já sendo pública e com a serenidade de José Saramago, tudo foi distinto, mas aquelas horas prévias de angústia eu não as desejo a ninguém. A verdade é que esses dias foram muito intensos, extenuantes, não houve espaço para o pessoal, somente para fazer do Nobel um bem compartilhado pela cultura portuguesa: José Saramago reivindicou a importância de todas as culturas, mas teve muito presente que estava em suas mãos difundir a sua própria. Fez isso em todas as entrevistas e conferências que deu naquela época. Era uma forma de agradecer aos escritores e escritoras da língua portuguesa, clássicos e contemporâneos, pelo legado que transmitem e que nos constrói como seres humanos.

T+M: A única vez em que esteve em Belém, em 2013, foi para lançar os dois livros de/sobre Saramago. Quais recordações guarda deste momento? 

PdR: Recordações maravilhosas, apesar de que tive uma quebra de tensão que pensei que ia morrer... A apresentação dos dois livros na universidade [Federal do Pará] foi um luxo: os alunos, mais de mil numa sessão, com livros para serem assinados, lembrando de José Saramago... Isso é algo inesquecível. Senti muito carinho e respeito, além da lucidez de tantas pessoas. Vi obras incríveis, assisti a uma ópera, saboreei pratos que nunca tinha provado e compartilhamos tertúlias e conversas que nunca terminaram... Chegava ao hotel extenuada, mas até isso era um motivo de júbilo porque significava que o tinha sido ganho.

T+M: Ouvi também que contemplou de perto o jardim da casa da Estrella, de Benedito/Maria Sylvia Nunes - que recentemente nos deixou. Lembra com exatidão o que conversaram? 

PdR: Lembro, claro. Foram horas no jardim. Almoçamos, recordamos momentos de nossos maridos, o que Benedito Nunes tinha escrito sobre Saramago; o gosto de Saramago pela companhia dele, por suas reflexões tão interessantes... Falamos da universidade [UFPA] e dos livros que a universidade edita, da sessão daquele dia, falamos da vida e do que ela contém. Senti muito quando recebi a mensagem da professora Simone Neno [coordenadora editorial da ed.ufpa] dizendo “Perdemos a Maria Sylvia”. Guardo essa mensagem como se guardasse a vida mesma. 

T+M: Em tempos de coronavírus, quais são seus planos para o futuro?

PdR: Continuar trabalhando nos assuntos que a Fundação tem, entre outros o centenário de José Saramago, que será em 2022. Também insistir na Declaração Universal dos Deveres Humanos, que já deveria estar circulando na sociedade como um instrumento que nos ajude na reconstrução social e moral que será necessária depois desta pandemia. E continuar a insistir que a cultura, agora mais do que nunca, pode e deve nos ajudar a entender a vida. Enfim, sim, tenho planos para quando a peste acabar: colaborar para que a parcela do mundo que é da minha incumbência seja melhor, pelo menos um pouco melhor.

Para conhecer mais:
@fjsaramago

Troppo