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Saúde materno-infantil no Marajó atinge média de um parto ao dia após o pico da pandemia da covid-19

Dois anos após pior momento da covid-19, hospital de Melgaço tem média de um parto ao dia. Pandemia agravou os riscos às vidas de mães e bebês

Dilson Pimentel e Tarso Sarraf

Sentindo dores, Maria do Socorro dos Santos Nobre, 35, pilotou sozinha por três horas uma rabeta – como se chama a embarcação a motor pequena e veloz, comum nos rios da Amazônia –, até conseguir chegar à sede de Melgaço, município do Arquipélago do Marajó de 28 mil habitantes, localizado a 250 quilômetros de Belém. No dia seguinte, ela deu à luz o quinto filho, no hospital municipal da cidade.

Era uma tarde de sol do último dia 11 de maio. A pequena Patrícia, cujo nome praticamente foi escolhido logo após a vinda do novo bebê ao mundo, nasceu com 3,2 quilos. O trabalho de parto foi rápido. Começou por volta das 17h10. A criança nasceu em torno das 17h21.

image Maria do Socorro dos Santos no Hospital Municipal de Melgaço 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Maria do Socorro começou a sentir dores que anunciavam a aproximação do nascimento ainda no dia anterior. Foi a experiência com os partos dos outros filhos o que a fez decidir a hora certa de se lançar com a embarcação no longo trecho pelas águas, a caminho do hospital de Melgaço. Do pequeno trapiche para a rabeta, embarcou ainda, ao seu lado, três dos seus filhos - o outro, mais novo, ficou com uma parente. Não podia deixar as crianças sozinhas na pequena casa de madeira à beira do rio, fragilmente equilibrada sobre estacas e pontes que dão alguma proteção aos humores das marés.

As contrações transformaram as três horas a caminho do hospital quase intermináveis. E as dores só aumentaram até a quarta-feira, dia em que ocorreu o parto. Maria já estava com nove centímetros de dilatação - dos dez esperados nesses casos – quando chegou a Melgaço e ao hospital da cidade, na terça-feira.

Uma prima que mora no município a encontrou no hospital. Lá, acompanhou todo o procedimento. “Ela pesca, vai para o mato. É só ela e os meninos. Ela se vira”, conta Maiara da Silva, de 24 anos. A prima acompanhou todas as dificuldades enfrentadas pela mãe solteira. Talvez por isso mesmo Maiara insista em detalhar: está fazendo o curso técnico em Enfermagem, para que, assim que possível, possa começar a ajudar outras mulheres como a prima, que agora é mãe de cinco crianças. Até o nascimento da pequena Patrícia, o filho mais novo de Maria era um menino de três anos - ela já tinha dois garotos. E agora, com a chegada do novo bebê, são três as meninas em casa.

Maria do Socorro dos Santos deu à luz a filha Patrícia 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

A avó das crianças não conhecerá a mais nova integrante da família. A mãe de Maria morreu logo no começo da pandemia. Suspeita-se que a senhora idosa tenha falecido por causa de complicações da covid-19. Na época, tudo era muito difícil e ela não fez o teste necessário. Mas os sintomas relatados levam a crer que tenha morrido por causa do coronavírus.

Marajó, terra de mães jovens

“Aqui trabalhamos tendo muito carinho pelas pacientes. São mães, e essa é uma das horas mais difíceis na vida de uma mulher”, pondera a médica Handressa Maira Rodrigues Ribas, num necessário intervalo no turno que cumpre no pequeno Hospital Municipal de Melgaço. A profissional de medicina atuou no município no auge da pandemia, há exatamente dois anos. E é hoje a equipe de Handressa que cuida de partos como o de Maria do Socorro.

A médica Handressa Ribas em uma comunidade ribeirinha de Melgaço 2020 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Ao resumir o ciclo mágico que espelha parte a força das mulheres do Marajó - da médica que cuida da mãe que deu à luz uma nova menina – a médica pondera sobre o vívido contraste experimentado entre dois momentos, separados por um intervalo de dois anos. No auge da pandemia, a luta de Handressa era para salvar vidas. E tudo sob as duras condições impostas pelo pior momento da disseminação do coronavírus na região - dias nos quais algumas cidades marajoaras, como Breves, alcançaram índices de letalidade por covid-19 acima de 11,5%, e oito meses antes de que qualquer socorro possível fosse esboçado pela esperada chegada das vacinas. Agora, a médica voltou a se dedicar à nobre missão de trazer mais vidas ao mundo.

Handressa Ribas em atendimento no Hospital Municipal de Melgaço 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

O sentimento é de agradecimento a Deus. Sempre que a gente entra para um procedimento assim, um parto, coloca Deus em primeiro lugar. Somos apenas instrumentos dEle”, emociona-se, ao contar também como confia e respeita sua equipe de trabalho. “É uma alegria poder trazer mais uma criança ao mundo, uma vida com saúde. E principalmente depois de tudo o que a gente viveu. O sentimento é de muita alegria e, acima de tudo, muita gratidão”.

Sinais de esperança: os nascidos na pandemia

O atendimento a nascimentos de novos bebês no Marajó, assim como em outros rincões brasileiros, virou uma espécie de termômetro, uma senha para se dar atenção à nova temporada iniciada, após a pior fase da pandemia. O hospital de Melgaço fechou o mês de maio de 2022 registrando praticamente um parto por dia. “Dificilmente passamos dois ou três dias sem fazer partos. Só hoje foram três”, detalha o diretor do hospital, Eliseu Cavalcante. No cargo há um ano, Cavalcante inclui nas suas notas o parto de Maria.


O hospital municipal de Melgaço é modesto. Tem, ao todo, 16 leitos. Todos estavam ocupados no dia 11 de maio, quando a pequena Patrícia nasceu. As mães marajoaras lá atendidas são, em sua maioria, mulheres jovens, entre 18 e 25 anos.

Dependendo do período, o perfil da procura muda e o número de internados aumenta, detalha o diretor. “Agora, estamos vivendo um período de muitos casos de infecção intestinal. Esse período chuvoso, de ‘água grande’ no interior. Temos muitos casos de crianças vindo com esse sintoma de infecção intestinal. Quando chega no período de verão, aí é a vez das infecções respiratórias”, explica Eliseu Cavalcante.

Covid-19 agravou cenário de riscos à maternidade

Há dois anos, no auge da pandemia - e no mesmo hospital de Melgaço onde Maria do Socorro viu nascer a pequena Patrícia, após três horas viajando de barco à procura de atendimento - a jovem Beatriz Duarte, que hoje tem 19 anos, deu à luz o menino Arthur. O garoto nasceu em 12 de junho, no Dia dos Namorados, e quase teve Santo Antônio como padroeiro de nascimento: ele veio ao mundo exatamente às 23h55.

Beatriz Duarte durante o nascimento do seu filho Arthur no auge da pademia em 2020 / Beatriz na porta de sua casa com seu filho no ano 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Beatriz fala pouco, mas a timidez some na hora de lembrar que o parto ocorreu no pior momento da saúde do País em muitas décadas. A mãe diz que não teve medo de morrer. "Eu confiei em Deus", conta ela, admitindo que, no momento, não pensa em ser mãe novamente.

O temor das gestantes naqueles dias, porém, era mais que justificado. No vizinho município de Portel, o hospital da cidade chegou a registrar até três mortes por dia relacionadas a casos de covid-19. Um cenário aterrador e nunca visto na pequena localidade de 63 mil habitantes, que fica a 14 horas de barco de Belém (263 quilômetros da capital).

“Em março e abril de 2020, tivemos o grande boom dos casos de covid em Portel, e tudo coincidiu com uma reforma do hospital”, lembra a assistente social Ana Cleia, que trabalha há dez anos no estabelecimento municipal de saúde. “Tivemos muitas dificuldades, porque não tínhamos espaço adequado. O hospital estava praticamente reduzido em 50% da sua totalidade de leitos por causa das obras. E isso foi bastante difícil para toda a equipe”.

UTI do Hospital Municipal de Portel 2020 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Na época, a assistente social respondia pela direção do hospital. Além da difícil situação do atendimento, por conta do grande índice de mortes, em fevereiro e março de 2020 a equipe de saúde municipal de Portel percebeu outra situação-limite: um grande crescimento de registros de óbitos fetais. “Chegamos a ter 3 a 4 óbitos por dia. A mãe dava entrada aqui, no período para ter o bebê, no nono mês, e aqui detectava que já estava em óbito”, lamenta Ana Cleia.

Os profissionais de saúde tentavam entender o que estava acontecendo. “A gente perguntava se a mãe havia caído, ou se algo havia acontecido. Elas relatavam sempre que há dois ou três dias o feto havia parado de se movimentar. A gente não tem estudos sobre isso. Não deu para fazer esse cruzamento, para saber se teve algo a ver com a covid-19 ou com o pré-natal conduzido na confusão da pandemia. Estou há dez anos trabalhando nesse hospital e nunca tinha visto isso”.

Embora preocupada com recentes casos de pneumonia em crianças do hospital - ao final da primeira quinzena de maio de 2022, a pediatria estava lotada e o hospital municipal de Portel precisou encaminhar dois bebês para atendimento em Belém -, nada se compara ao que se viveu em maio de 2020, avalia a assistente social Ana Cleia. Atualmente, o cenário é de tranquilidade: por quase três meses seguidos não houve internações ou transferências de pacientes com covid-19 no município.

Ambulancha em ação em Portel 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Ao final da primeira quinzena de maio, Portel completou mais de 80 dias sem casos de covid-19, sem internações pela doença e sem mortes causadas pelo coronavírus, segundo dados da secretaria municipal de saúde. Ao todo, a cidade soma até agora 3.767 casos confirmados de covid-19 e um registro oficial de 98 mortes causadas pelas complicações da infecção pelo coronavírus, segundo dados de 6 de junho da Secretaria Estadual de Saúde Pública do Pará (Sespa). A taxa de letalidade da doença é de 2,6% no município.

A melhora nos números da pandemia nas localidades do Arquipélago do Marajó é um alívio porque vários balanços recentes também vêm mostrando como a pandemia foi um fator agravante aos riscos à saúde de mães em todo o mundo.

No Brasil, o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, do Departamento de Análise em Saúde e Vigilância das Doenças Não Transmissíveis, do Ministério da Saúde (DASNT/SVS/MS), divulgado em maio passado, apontou que o índice de mortalidade materna cresceu nos dois últimos anos no Pará, acompanhando o panorama do Brasil. No Estado, os casos de morte materna subiram 30,51% entre 2019 e 2021.

Ribeirinhos do município de Portel (Tarso Sarraf / O Liberal)

De acordo com o Ministério da Saúde, a morte materna é aquela em que uma mulher morre durante a gravidez ou em até 42 dias após o término da gestação, independentemente da duração da gravidez. Em 2019, foram registrados 2.543 casos de morte materna no Pará. Em 2020, eles passaram ao registro de 3.004 mortes. E em 2021, o número chegou a 3.319 casos.

No Brasil, os casos também aumentaram. Em 2019, foram registradas 62.683 mortes maternas. Em 2020, foram 71.879 casos, e em 2021 atingiu-se o número de 92.682 mortes maternas.

Elyade Camacho, enfermeira obstetra e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), ressalta que a covid-19 é um fator de grande impacto nesse cenário. "A pandemia dificultou mais ainda o acesso ao pré-natal, que já é um desafio no Brasil. Muitas mulheres também adquiriram covid-19 junto com a gestação, e muitas acabaram evoluindo a óbito porque o vírus da covid-19 é muito mais severo na mulher grávida e na puérpera por causa da possibilidade de formar trombos", ressalta a obstetra.

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