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Marajó: os novos desafios da covid à saúde de Breves; cidade chegou a ter 25% da população infectada

No auge da pandemia, ainda sem vacinas, município registrou o pior índice de infectados entre cidades do País. Após terceira onda, novo normal exige atenção

Dilson Pimentel e Tarso Sarraf

No auge da pandemia, no primeiro semestre de 2020, um em cada quatro dos moradores de Breves, cidade que tem a maior população entre os 16 municípios do Arquipélago Marajó, estava infectado com o novo coronavírus. Era o maior índice já registrado do País, e o maior que se teve notícia no globo, afirmam estudiosos. Naquela época, não havia lugar no Brasil ou no mundo com tamanho quadro de avanço da covid-19 aferido por testagens: o município tinha 25% da população infectada. É o que apontou um estudo nacional sobre a prevalência do coronavírus no Brasil, divulgado em maio de 2020 pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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Ao todo, o Arquipélago do Marajó já somava 1.575 casos e 126 mortes causadas pela pandemia até o fim de maio de 2020. E os dados da UFpel apontavam que Breves tinha a maior incidência de contaminação por coronavírus entre 133 municípios monitorados por testagens, conforme aferia o estudo feito em todo o País. Na cidade, 24,8% da população estava infectada ou já tinha tido contato com coronavírus, indicou a pesquisa. Eram 25 mil pessoas entre os 103 mil habitantes da localidade mais populosa do Marajó.

Cemitério Recanto da Paz, em Breves (Tarso Sarraf / O Liberal)

No dia 27 de maio de 2020, enquanto o Pará chegava aos 31 mil casos de covid-19 confirmados e a 2,5 mil mortes pela doença, Breves, que tinha registrado seus primeiros casos e óbitos ainda em abril daquele ano, já somava 476 casos e 55 óbitos, com um índice de letalidade para a covid-19 que alcançou os 11,55% - maior que o da capital paraense. Ao fim de maio de 2020, Belém somava um índice de letalidade de 11,29% para a doença, com total de 10.452 casos e 1.180 mortes por covid-19.

Dois anos depois, está claro como foi decisiva a chegada da vacinação – iniciada no Pará apenas oito meses depois, em janeiro de 2021 - para que as marés de mortes e internações causadas pela pandemia recuassem no Arquipélago do Marajó: Breves fechou o mês de maio de 2022 com uma taxa de letalidade ligada à doença de 2,47%. É motivo de alívio, embora esse seja um índice ainda bem superior aos da região marajoara, do Pará e do Brasil. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), no fim de maio a taxa de letalidade da covid-19 no Arquipélago do Marajó chegou ao patamar de 1,92%, enquanto no Pará o índice é de 2,37%, segundo os dados de 31 de maio de 2022. No Brasil, a taxa de letalidade da doença fechou o mês em 2,1%, apontou balanço do Painel Conass Covid-19, do Centro de Informações Estratégicas para a Gestão Estadual do SUS (Cieges) do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).


Há dois meses, em abril passado, o Boletim do Observatório Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ressaltou a manutenção da tendência de queda de indicadores de incidência e mortalidade por covid-19 - pela primeira vez, desde maio de 2020, nenhum estado havia superado a marca de 0,3 óbitos por 100 mil habitantes – um resultado direto dos esforços de vacinação. Isso apontava que a terceira onda da pandemia no Brasil finalmente estava em fase de extinção. O relaxamento de medidas e restrições contra a pandemia vieram a seguir, em vários estados.

No primeiro dia de junho de 2022, os dados do Vacinômetro, painel mantido pela Secretaria de Saúde Pública do Estado do Pará (Sespa), mostraram que Breves já havia aplicado 166.754 doses da vacina contra a covid-19. No município, a cobertura total (incluindo primeira, segunda e terceiras doses e mais a dose única) chegou aos 69,11%. No Pará, ao fim de maio, a cobertura da primeira dose chegou aos 91,95%, enquanto o alcance da aplicação da segunda dose e mais dose única foi de 88,18%. Na terceira dose, o Pará ainda avança de forma mais lenta, com 26,94% imunizados entre o público que precisa se vacinar.

Na estabilidade da pandemia, a dor das perdas

 

Embora estejam mais aliviados com esse cenário de imunização, que levou ao recuo dos casos de covid-19, os moradores de Breves acumulam perdas de entes queridos. No cemitério Recanto da Paz, os irmãos Nivaldo Pinto Machado, o Neco, 52, e Reginaldo, o Regis, 57, visitaram no domingo do Dia das Mães o túmulo de dona Jacira, que morreu aos 84 anos. A mãe de Nivaldo e Reginado faleceu de problemas cardíacos. Mas, segundo os irmãos, a covid deu uma “acelerada” na morte dela. Agravou o problema de saúde da matriarca.

Nivaldo Machado no tumúlo da sua mãe no cemitério Recanto da Paz (Tarso Sarraf / O Liberal)

Nivaldo também teve covid e passou quase 20 dias hospitalizado. Mas não chegou a ser intubado. A mulher dele não deixou que fosse feito esse procedimento. Neco disse que, naquela época, quem era intubado acabava morrendo. Pelo menos era a sensação que as pessoas tinham. E, por isso, o receio da realização daquele procedimento.

Nivaldo teve falta de ar. “Eu ficava desesperado para respirar. Passei um bocado mal, dor no peito, falta de ar, escarrando sangue”, contou. Passou pela UPA, pelo hospital municipal e pelo hospital regional. No municipal, no setor estava, dois pacientes com covid morreram.

Imagem áerea do cemitério Recando da Paz em 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Reginaldo também teve a doença, mas não com os sintomas tão graves sentidos pelo irmão Neco. Nivaldo está desempregado. Por isso diz, brincando, que trabalha na “Vadiobras”, uma referência ao termo vadio, que designa alguém sem ocupação. Já Reginaldo é dono de um pequeno comércio.

Regis e Neco também perderam um primo para a covid-19. Ele faleceu no primeiro ano da pandemia, em 2020. “Foi logo quando surgiu a doença”, contabilizam: entre as pessoas conhecidas e com quem eles tinham algum contato, foram mais de dez mortes.

Neco não usa mais máscara: “Hoje a situação melhorou muito, mas ainda é preocupante. Parece até que está normal, mas não está normal”, pondera. Ele só lembra de colocar a máscara quando vai entrar em uma loja. “E olhe, o que eu passei... não desejo para meu pior inimigo”.

Maria Ferrão visita o tumúlo da filha de sua prima (Tarso Sarraf / O Liberal)

No mesmo cemitério Recanto da Paz, a aposentada Maria Ferrão Araújo, 64 anos, também engrossa a movimentação do domingo quente de Dia das Mães. Para chegar à sepultura que procura, dona Maria precisa andar com dificuldades. Se movimentando lentamente entre os túmulos, muitos apenas com cruzes e covas mais humildes, cobertas com simples homenagens rentes ao chão de terra nua, a senhora se esquiva da lama do terreno. Ela visita o túmulo da filha de uma prima. A moça nasceu na cidade, mas foi trabalhar no Amapá. Havia viajado de Macapá ao Marajó para visitar o pai, que morava em Breves e estava doente de covid-19. Tinha 38 anos. Acabou morrendo da doença também, no auge da pandemia, em maio de 2020.

Saúde enfrenta nova onda: ‘doenças represadas’

 

Em maio passado, a Secretaria de Saúde de Breves registrou pela primeira vez uma média de 30 dias consecutivos sem apresentar casos novos de covid-19, segundo balanço de registros computados desde março. Porém, quando se trata de internações, esse número aumenta. A última internação ocorreu em 17 de fevereiro deste ano. A pessoa foi transferida para o Hospital Regional do Marajó (que fica em Breves) e, em seguida para Belém, onde infelizmente veio a morrer, em 5 de março. No cenário geral, os números de casos com agravamento diminuíram em decorrência da vacinação. Mas no começo deste ano – como, aliás, ocorreu em todo o Estado e no Brasil -, os números explodiram. O Pará vivia a terceira onda da pandemia. Em janeiro e fevereiro, Breves somou 1.703 casos, com seis óbitos e 29 internações. Em março e abril, houve uma queda nos números. Foram apenas 12 casos e um óbito. E não houve internação.

Os primeiros casos em Breves foram registrados oficialmente em abril de 2020. Naquele mês do primeiro impacto das ondas da pandemia, foram 535 casos, com 64 óbitos e 101 internações. Dois anos depois, após o maio de 2022 viver uma relativa estabilização do cenário epidemiológico, o que preocupa os profissionais de saúde de Breves são as doenças que, por causa da pandemia, ficaram em segundo plano. Agora, como se estivessem represadas, elas vieram à tona com intensidade.

Hospital Municípal de Breves em 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Para a secretária de Saúde de Breves, Jucineide Alves Barbosa, durante a pandemia foi como se as outras doenças fossem colocadas em caixas - para esperar atendimento. Afinal, a prioridade era o enfrentamento à covid-19. “Aqueles procedimentos agendados, não se internava, o procedimento eletivo. Todo mundo tinha que esperar. E hoje eu digo que as gavetas estão saindo sozinhas e jogando na nossa cara os problemas bem mais graves”, pondera Jucineide Alves. “A gente tem tido muito infarto, AVC. Esses números aumentaram muito. O hospital está lotado, a UPA está lotada. Doenças que ficaram esperando, muitos procedimentos cirúrgicos, o que na época não era prioridade, acaba agravando. Tiveram que esperar para poder ser atendidas hoje”.

Como tem uma infraestrutura melhor que as demais cidades, Breves recebe pacientes de outros municípios da região. “A gente não atende alta complexidade. E, quando vê, o paciente tá chegando. Não posso fazer isso com Belém.  Se eu pegar um paciente grave e mandar pra Belém, sem garantia de leito, Belém pode entrar no Ministério Público contra Breves”. O Hospital Regional do Marajó, que fica em Breves, é porta fechada. “Sem leito, não vai receber. Prontos-socorros municipais e estadual de Belém não recebem. Breves está saturada”.

Paciente chegando no Hospital Municípal de Breves em 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

Segundo a secretária de saúde, hoje há três leitos na sala vermelha municipal, como se fosse uma semi-UTI. “Tem dia que temos três intubados lá esperando liberação de leito de UTI. E os pacientes estão chegando. De Breves e da região. Breves pega esse impacto. O que era eletivo, agendado com antecedência, hoje não é mais eletivo. Hoje é urgência”.

Com a pandemia estabilizada, o desafio agora é retomar as políticas de promoção à saúde e prevenção. Os agentes comunitários de saúde deixaram de entrar na casa das pessoas. “O ano de 2021 foi muito focado ainda na contenção da pandemia. Pegamos duas ondas fortes. Hoje, estamos de fato trabalhando na reorganização dos serviços e programas de promoção e prevenção. Voltamos a todo vapor com as ações na zona rural, com a UBS Fluvial funcionando com a equipe completa e duas equipes dentro da UBS”, avalia a secretária de saúde.

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Esse trabalho é mensal, com 10 a 15 dias de ações ininterruptas, com duas equipes: dois médicos e dois enfermeiros. Em junho as equipes vão para a zona rural. Há comunidades em Breves que ficam a 14 horas de barco de distância.

“Mudou todo o nosso perfil de atendimento. No auge da pandemia, por um momento a gente atendia todos os casos de covid-19 junto com as demais patologias. E, quando os casos de covid-19 começaram a aumentar, a gente teve que atender só a demanda de covid”, conta a enfermeira Camila Flávia Sousa, diretora da Unidade de Pronto Atendimento de Breves.

Hoje a superlotação é por causa de outras doenças. “A gente começou a pegar as coisas muito crônicas. Não é uma pessoa que adoeceu agora. É uma diabetes descompensada, um paciente com pressão alta que não consegue controlar, um paciente que já chega com infarto muito grave. Todas aquelas doenças da atenção básica não foram tratadas adequadamente. Em algum momento a gente ia sentir esse reflexo”.

A enfermeira Camila também vê outras lições deixadas pela pandemia. “O manejo com paciente grave foi uma coisa que a equipe aprendeu muito. E, consequentemente, lidar com aquelas perdas, a questão da humanização”. Foi justamente um profissional da linha de frente da pandemia em Breves, um técnico de radiologia, que trabalhava com raio-x, o primeiro paciente a de fato utilizar a ‘ala covid’ do Hospital Regional do Marajó. Foi o primeiro paciente a conseguir ser transferido para lá. Infelizmente, ele acabou falecendo. A UPA conta hoje com 110 profissionais.

Vacinação protege município mais afetado pela covid-19 no Brasil

 

“Agora é hora de recuperar a atenção com as demais doenças”, ressalta o epidemiologista gaúcho Pedro Hallal. O professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do Rio Grande do Sul, foi o coordenador do esforço Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus já realizado no Brasil - e que apontou Breves como o município de maior incidência de casos de covid-19 no País, em maio de 2020.

Cidade de Breves em 2022 (Tarso Sarraf / O Liberal)

“Era impressionante. Breves Foi uma cidade muito afetada no começo da pandemia. Quando começamos a fazer o Epicovid-19, se fazia mil testes e dava um positivo. Um de cada mil, às vezes. Em alguns lugares, um de cada 500. Quando a gente chegou em Breves, era um de cada quatro que dava positivo. Naquela época, não tinha lugar no mundo com 25% da população infectada, afirmou.

Comparando o pior momento da pandemia, no município mais afetado, com a calmaria atual, ele reforça: o cenário estabilidade de hoje deve tudo à vacinação. “A covid funciona em ondas. Quando temos uma população muito vacinada, o que acontece é que as ondas perdem as suas características tão marcantes. A vacina impede que alguns se infectem e que infectados venham a morrer. É essa estabilidade que estamos observando", ressalta Hallal.

Mercado Municipal de Breves (Tarso Sarraf / O Liberal)

“Hoje o que nós falamos é em tomar cuidado. Em eventos com grande aglomeração, use máscara. Na rua, no espaço livre, sinceramente não tem mais porque usar máscara. Mas, em espaços fechados, com muita aglomeração, especialmente se tem gente não vacinada, vale a pena usar máscara. Resumindo: a grande recomendação deste momento é que as pessoas se vacinem, tomem as doses necessárias, estejam sempre em dia com a vacina”.

Boletim Comparativo - Covid-19 em Breves

• 2020 – Abril / Maio
. Casos: 535
. Óbitos: 64
. Internações: 101
Obs.: Os primeiros casos em Breves foram registrados em abril de 2020

• 2021 – Janeiro / Fevereiro
. Casos: 99
. Óbitos: 04
. Internações: 17

• 2021 – Março /Abril
. Casos: 202
. Obtido: 12
. Internações: 33

• 2022 – Janeiro / Fevereiro
. Casos: 1703 casos
. Óbitos: 06
. Internações: 29

• 2022 – Março /Abril
. Casos: 12 casos
. Óbitos: 01
. Internações: 00

Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Breves

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