No Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, lembrado neste 18 de maio, a juíza Mônica Maciel, titular da 1ª Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes de Belém, faz um alerta contundente: a violência sexual infantil tem origem, em sua maioria, dentro da própria casa. “Mais de 90% dos abusadores são pais ou padrastos das vítimas”, afirma. Os dados, segundo a magistrada, são resultado de um padrão recorrente nos processos que chegam à vara especializada, que hoje recebe, em média, 70 novos casos por mês — quase todos contra meninas de até 13 anos.
Em entrevista ao Grupo Liberal, a juíza destaca a importância da escuta qualificada das vítimas e da responsabilização dos agressores, além da urgência em fortalecer ações de prevenção. “Foi com base nisso que enxergamos a necessidade da criação de uma vara específica para esses tipos de casos”, pontuou.
Para ela, o melhor caminho para combater esses crimes é a informação, tanto para os adultos, como para as crianças. Como ocorre no projeto “Minha Escola, Meu Refúgio”, coordenado por ela, que leva debates sobre abuso sexual para o ambiente escolar. “A criança precisa saber que aquilo que está acontecendo com ela é errado — e que existe ajuda. Esse é o primeiro passo para quebrar o ciclo da violência”, ressalta.
Leia a entrevista na íntegra:
Os crimes que cabem a essa vara, praticados contra crianças e adolescentes, envolvem quais tipos de violência?
Mônica Maciel: Aqui é uma vara especializada em crimes contra a dignidade sexual, desde crianças até adolescentes. Isso vai desde o crime de estupro de vulnerável — que é aquele de conjunção carnal ou outro ato libidinoso contra menor de 14 anos de idade — ao estupro qualificado, que é praticado contra adolescentes entre 14 e 17 anos, envolvendo violência real ou grave ameaça. Temos também os crimes de exploração sexual, pornografia infantojuvenil, armazenamento e compartilhamento de imagens de pornografia infantil, ou mesmo a exploração sexual em troca de bens ou valores. Além disso, temos os crimes de importunação sexual, quando são praticados contra maiores de 14 e menores de 18 anos de idade. Ou seja, crimes contra a dignidade sexual de modo geral.
E, desses todos que a senhora mencionou, quais considera que são os mais recorrentes atualmente?
Nós estamos com uma média de 70 processos por mês. Dentre eles, os mais recorrentes são os sexuais. Mais de 50% dos crimes da vara são estupros de vulnerável, praticados contra menores de 14 anos. São crimes de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, o que muita gente associa à pedofilia.
E quando envolve esse tipo de crime, a senhora observa que exista um padrão nas circunstâncias desses casos?
Sim. Normalmente, o padrão que se observa é que a maioria das vítimas são crianças e adolescentes até 13 anos de idade, do gênero feminino. Claro que há vítimas do gênero masculino também, mas a maioria é feminina. Em relação aos abusadores, infelizmente, mais de 90% são padrastos ou pais biológicos — ou seja, pessoas que têm o dever legal de proteger essas vítimas, mas violam seus direitos e sua dignidade sexual. Os crimes são praticados, majoritariamente, no ambiente intrafamiliar.
E hoje, a senhora avalia que esses casos tramitam de forma ágil, com um tempo justo, ou ainda poderiam ser mais rápidos?
Nós estamos tentando sempre agilizar, porque precisamos cumprir a previsão da Lei da Escuta Protegida — a Lei 13.431 — que traz a necessidade de antecipação de prova, ou seja, a oitiva de crianças e adolescentes antes mesmo do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Isso é importante para preservar a memória dessas vítimas e evitar a pressão familiar, já que a maioria dos casos ocorre no ambiente intrafamiliar. Nós realizamos audiências de segunda a sexta-feira, com uma média de quatro a cinco audiências por dia, para tentar dar essa resposta, que é necessária. Crimes dessa natureza precisam de prioridade absoluta. Crianças e adolescentes vítimas de violência precisam ter seus direitos garantidos integralmente.
E a vara desenvolve ações para combater e conscientizar contra esse tipo de crime? E, claro, também para alertar quem está ao redor, para poder denunciar?
Sim. Nós temos o projeto "Minha Escola, Meu Refúgio", desde 2014. Já alcançamos quase 7 mil pessoas desde então. São visitas a escolas e instituições de ensino, com distribuição de materiais voltados, inclusive, para a primeira infância — crianças até 6 anos de idade — com foco na prevenção, que ainda é a melhor forma de lidar com esses crimes. As consequências psicológicas são muito sérias e podem, inclusive, levar à morte. Todos os dias ouvimos relatos de ideação suicida, tentativas de suicídio, depressão e outras consequências que muitas vezes podem ser irreversíveis.
Essas crianças e adolescentes muitas vezes se sentem culpadas pelos crimes que sofreram. São desacreditadas pela família, que não quer que o agressor seja punido. Então, essas vítimas acabam internalizando a culpa e sofrendo ainda mais. Por isso, a prevenção é essencial.
Além dos materiais voltados à primeira infância, também temos materiais para outras faixas etárias — crianças, adolescentes e educadores — para que possam identificar mudanças de comportamento que indiquem que estão sofrendo algum tipo de violência. A escola, que é o segundo local mais frequentado pelas vítimas, é um espaço importante, onde o educador pode observar sinais, ter um olhar sensível e tomar medidas. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 245, prevê o dever de notificar casos de suspeita, não sendo necessário ter certeza. A confirmação vem com a investigação.
Além disso, a gente tem hoje mecanismos de denúncia que não exigem revelar identidade. É possível fazer denúncia, mesmo sem provas, para o Disque 100, Disque Direitos Humanos, que é o canal do Governo Federal. Também é possível denunciar de forma anônima pelo 180, que é o canal do estado.
E como a senhora avalia o avanço da legislação brasileira no combate aos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes?
A legislação tem avançado bastante. A Lei da Escuta Protegida, a 13.431/2017, em vigor desde 2018, foi um avanço significativo. Ela prevê a antecipação de prova, ou seja, a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência antes mesmo da denúncia. Isso evita a revitimização. A lei também reconhece a violência institucional, aquela praticada no processo de apuração, e determina que crianças não podem ser ouvidas na sala de audiência tradicional. Aqui, temos equipe técnica composta por psicólogos e pedagogos capacitados na técnica da oitiva, que ocorre em uma sala especial, com transmissão em tempo real para a sala de audiência.
Também tivemos avanços com a Lei Henry Borel, a 14.344/2022, que trata da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, incluindo a previsão de medidas protetivas específicas. Ela reforça que qualquer pessoa da comunidade tem o dever de denunciar suspeitas ou confirmações de maus-tratos — físicos, psicológicos, sexuais ou patrimoniais. A lei também retirou a possibilidade de aplicação da Lei dos Juizados Especiais (9.099/95) nesses casos, ou seja, não cabe mais suspensão condicional do processo em crimes sexuais cometidos no ambiente familiar. Esses avanços foram positivos.
E, mesmo com esses avanços na legislação que protege a intimidade dos menores de idade, quais a senhora observa que são os principais desafios no combate a esse tipo de crime?
O maior desafio continua sendo o fato de a maioria dos casos ocorrer no ambiente intrafamiliar. Isso gera medo nas vítimas e estabelece um pacto de silêncio. Se os sinais não forem observados, a violência pode perdurar por anos. Mesmo com o aumento no número de registros — que não significa aumento no número de casos, pois a subnotificação ainda é enorme — estima-se que apenas 10% desses crimes chegam ao conhecimento das autoridades.
A vítima tem medo, sente vergonha e sofre pressão familiar para não denunciar. Por isso a antecipação de prova é tão importante, para preservar a memória e proteger a vítima. Mas é um desafio, porque mais de 90% dos casos envolvem familiares.
Além disso, crianças pequenas muitas vezes não conseguem entender o que está acontecendo. O abusador tenta fazer parecer que é brincadeira ou carinho, e como existe uma relação de afeto com esse agressor — seja pai, avô ou padrasto — a criança não consegue perceber que aquilo é um abuso. Quando chega à adolescência, percebe que foi vítima e pode desenvolver graves problemas psicológicos.
Por isso, é fundamental trabalhar com a primeira infância. Temos cartilhas para os educadores ensinarem às crianças, de forma adequada à idade, que existem partes íntimas que não podem ser tocadas por outras pessoas — exceto, por exemplo, a mãe ou uma cuidadora durante a higiene. Não se trata de ensinar sexualidade, mas de ensinar que existem segredos bons e ruins, que podem ser contados, e que é possível pedir ajuda.