‘Brasil está 25 anos atrasado na proteção ao consumidor digital’, diz Mário Frota; veja entrevista
Fundador da Associação Internacional de Direito do Consumo critica falta de atualização do Código de Defesa do Consumidor e destaca a necessidade de modernização frente ao avanço das tecnologias digitais.
Em entrevista exclusiva ao Grupo Liberal, Mário Frota, uma das maiores autoridades em Direito do Consumidor no mundo, fez duras críticas ao Código de Defesa do Consumidor brasileiro. Segundo ele, a legislação brasileira, que foi pioneira em sua época, está desatualizada, especialmente no que diz respeito à proteção dos consumidores no comércio eletrônico e na regulação das big techs.
O fundador e primeiro presidente da Associação Internacional de Direito do Consumo alerta que, enquanto a Europa avança na regulamentação do consumo digital, o Brasil ainda patina, deixando os consumidores vulneráveis a fraudes, obsolescência programada e práticas desleais de instituições financeiras.
Dr. Mário, como o senhor avalia o código de defesa do consumidor brasileiro em comparação com as legislações de outros países? O Brasil está bem posicionado?
O código de defesa do consumidor do Brasil, no ano em que foi promulgado, era realmente uma legislação inovadora, muitos diriam revolucionária, porque consagrou os melhores dos princípios em defesa dos consumidores.
Desde que o presidente John Kennedy lançou aquele grito de que “consumidores somos todos nós”, de que “não há mercado sem consumidores”, mas o que se observava é que não havia efetivamente direitos dos consumidores sendo senhores do mercado. Eram efetivamente autênticos escravos, porque sujeitos às leis toda poderosas das grandes empresas que os subjugaram, que ditavam as suas leis.
No entanto, mormente após o surto pandêmico da SARS-CoV-2 (COVID-19), nós assistimos à transição da sociedade analógica como se afirmava para a sociedade digital. E não podemos dizer hoje com inteira verdade que o código esteja atualizado.
Por exemplo, a Europa consagrou no ano 2000 um ato, um diploma local, uma diretiva uma ao comércio eletrônico pelo desencadeamento de todas essas vias que transformavam as relações dos consumidores com os fornecedores.
Conclusão: o Brasil está atrasado 25 anos. Em 2012, pretendeu de algum modo recuperar os atrasos e apareceu no Senado um projeto de lei recuperado mais tarde e atualizado em 2015, o PL 3514. Volvidos todos estes anos, não foi aprovado.
E o comércio eletrônico continua a ser terra de ninguém no Brasil. O que quer significar que os brasileiros não não tem adequada proteção. Porque os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor não chegam a tanto e é preciso atualizar.
Eu, numa conferência, numa palestra que tive na Assembleia Legislativa em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, falei disso e a uma professora presente que palestrou comigo e dizia que, neste momento, estavam criadas as condições para aprovação do projeto de lei.
Passaram 13 anos e nada se fez ainda. Portanto, quem diz “comércio eletrônico" diz todos os patamares da sociedade digital onde o consumidor se move e não tem uma efetiva proteção.
Que aspectos da legislação brasileira o senhor considera exemplares e onde ela ainda precisa evoluir?
Precisa evoluir sobretudo no domínio dos contratos. Por exemplo: mesmo a lei do superendividamento, que consagrou um sem número de disposições em 2021 e essa também vem em 2012. Em relação às cautelas na concessão do crédito, já está desatualizada face à penetração da inteligência artificial e dos meios de celebração dos contratos à distância.
Por exemplo, a Europa, a esse propósito, já tem uma nova diretiva. Ou seja: um diploma legal que os estados têm de adaptar as suas condições em relação a esses aspectos fundamentais que alteram substancialmente uma outra de 2008.
Enquanto a Europa anda efetivamente por diante, o Brasil estagnou. O Brasil tem importantes inovações no domínio, por exemplo, da responsabilidade do fato do produto, por vício do produto, com a introdução da responsabilidade objetiva, não só do produto como do serviço, quando na Europa o serviço ficou de banda, ficou esquecido e só tinha do produto.
Portanto, há um conjunto de normas que foram realmente extraordinárias, mas, por exemplo, hoje, porque a inteligência artificial ou integra os produtos ou ela é em si mesma um produto, não está coberta pelo código brasileiro. A Europa tem já um regulamento da inteligência artificial. Tem na forja um outro sobre ou por outra directiva - que é diferente - sobre responsabilidade civil resultante dos danos provocados por sistemas de inteligência artificial.
E o Brasil tem um mero projeto de lei de calcado das leis europeias. já a responsabilidade do fato do produto evoluiu na Europa, já temos um outro diploma. Em relação à obsolescência programada, o Brasil nada tem conseguido a esse respeito.
Há agora umas iniciativas, tendo em vista a criminalização dos contratos de crédito consignado no Brasil, o que é de aplaudir, porque os desacertos que as instituições de crédito e as sociedades financeiras provocam no equilíbrio dos orçamentos familiares é qualquer coisa de extraordinário.
Além disso, era preciso que todos os contratos celebrados com a banca pelos consumidores se submetessem ao Código de Defesa do Consumidor. Porque é que se protege a banca? Porque é que se protegem as instituições de crédito e se deixa à míngua de tutela o consumidor? É uma coisa inacreditável.
Há uma súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, prejudicando os consumidores e dando uma proteção acrescida aos bancos. Porquê? Porque os bancos têm um poderio maior, mas o código veio exatamente nivelar pretensamente essas relações. Veio repor equilíbrios que antes estavam comprometidos.
Mas o Brasil parece que fechou os olhos a isso e os consumidores continuam órfãos de uma proteção de vida nas suas relações com os grupos financeiros que de tão poderosos conseguem espezinhar direitos e isso não é de bom tom.
Como os direitos do consumidor podem ser protegidos diante do crescimento de fraudes em plataformas digitais, incluindo golpes com uso de deep fakes?
Bom, simplesmente responsabilizando todos aqueles que participam nas plataformas, nessa cadeia. Nós temos hoje em resultado de um ato regulamentar de 19 de outubro de 2022 uma proteção de vida na Europa.
E mais: como ontem disse o professor Dennis Verbicaro, na interessante sessão que se realizou na OAB aqui no Pará, em Belém, é preciso, na realidade, que os estados se empolguem, que apliquem sanções dissuasivas de suas horas e proporcionais para que as plataformas as big tech, recuem nos seus propósitos de tudo avassalar, espezinhar os consumidores e portanto isso é indispensável.
Como o senhor compara a abordagem do Brasil e de Portugal na regulação das “big techs" e das plataformas digitais? Há um modelo ideal a seguir?
O modelo ideal neste momento é aquele que a Europa traça. Nós temos dois regulamentos que vieram à luz em 2022. Um é sobre as big techs - sobre o mercado que deve ser um mercado saudável com uma competitividade, com uma concorrência equitativa, equânime em condições de igualdade para que não haja empresas que pelo seu poderio possam esmagar as outras e todo o conjunto de proteções em favor do consumidor.
De algum modo, como interpretação benévola, já vinha da lei do comércio eletrônico de 2000, a lei europeia, que em Portugal só surgiu em 2004. Portanto, aí, o Brasil pouco ou nada tem, porque o marco civil da internet não chega a tanto e a Europa tem.
Quando a Europa faz um regulamento, publica um regulamento, põe em vigor um regulamento, esse regulamento tem direito uniforme. Deve ser observado do mesmo modo em qualquer um dos estados membros da Finlândia, de Helsínquia, capital da Finlândia, lá a norte, até as mais remotas cidades das ilhas dos Açores que são integrantes de Portugal.
Portanto, o importante é que haja um avanço significativo nesse ponto para que os consumidores no seio da sociedade digital estejam efetivamente protegidos.
O aumento da inteligência artificial e do e-commerce com decisões automatizadas sobre crédito, entrega e atendimento pode ferir direitos básicos do consumidor?
Pode, por isso é que a regulamentação europeia prevê, a todos os títulos, uma proteção adequada nesse sentido.
O marco civil da internet ainda é uma base sólida ou precisa de atualização frente às novas tecnologias?
A nossa afigura-se-nos que é um instrumento ainda assim coxo. Quer dizer: há necessidade de reforçar todos esses aspectos, seguindo se for o caso o exemplo europeu com toda a sorte, com toda a espécie de diplomas legais e que surgiram posteriormente. Por isso, há necessidade, como na Europa se observa, de uma atualização constante, de uma atualização em função de novos métodos que surgem no mercado.
Porque se o direito parar e o direito vem sempre atrás dos factos, então há um hiato. Há um fosso muito grande entre a realidade e as normas que devem na realidade combater tudo aquilo de pernicioso, de nefasto, de nocivo, de ruim vai acontecendo.
A maldade dos homens leva a que as coisas sejam subvertidas e as pessoas sejam afinal alvo de artifícios, de sugestões, de embustes. O Brasil conhece realmente uma vaga enorme no domínio da cibersegurança, porque todos os dias há trotes, como vocês dizem, há golpes e isso precisa ser levado às últimas consequências para que de modo exemplar haja um basta nesse movimento todo. Porque nesta visão maniqueísta do mundo entre os bons e os maus, é preciso de algum modo parar para refletir.
Durante um evento da OAB, o senhor mencionou que o código de defesa do consumidor está desatualizado. Quais seriam as principais mudanças necessárias na sua visão?
Ora, desde logo é preciso que os aspectos mais atuais dos contratos de crédito figurem no código. Por outro lado, há todo um conjunto de normas como nós as entendemos na Europa que envolvem os serviços públicos essenciais do fornecimento da água até às comunicações eletrónicas, as telecomunicações que importa na realidade considerar, porque esses são os aspectos básicos da vida que muitas vezes não têm uma tutela adequada.
Por outro lado, ainda há que pensar na responsabilidade do fato do produto que tem já uma evolução muito grande. Por outro lado, ainda há que tomarem atenção que a sustentabilidade é hoje, uma forma de prolongar a vida dos produtos para que se prolongue a nossa própria vida com os equilíbrios que isso demanda em todos os domínios.
Para além do mais, há ainda que ver, por exemplo: o governo do Brasil não resolveu o problema da garantia. Se nós perguntarmos a um fornecedor a um empresário, se perguntarmos a um jurista, qual é a garantia dos bens duráveis, nos dirão que são 90 dias. No entanto, o código fala de garantia legal, fala de garantia contratual.
Mas se nós perguntarmos, por exemplo, a um ministro do Superior Tribunal de Justiça que tenha sido chamado já a pronunciar-se sobre um caso dessa natureza, ele dirá, como diz o desembargador Marcos da Costa Ferreira, que a garantia é aferida em função da vida útil do produto. E agora, qual é a vida útil do produto? Quem é que define isso? É o julgador?
Ele diz que sim, mas no Oyapoc, um microondas, um forno elétrico de uma dada marca, de uma dado modelo, ele vai considerar que a vida útil daquele produto é a mesma no Rio Grande do Sul? Ou seja: que a vida útil daquele produto é de 20, 30 anos ou é de 7 ou 8 (anos)?
Além disso, o Brasil não considerou ainda. Parece que há um PL (Projeto de Lei) na Câmara sobre o direito ao reparo, que nós lá (em Portugal) falamos reparação. Ora, isso é importante, desde logo para libertar os consumidores dos concessionários de marca que em regime de monopólio fazem esses reparos por valores avultados. E, por outro lado, para que tenhamos a possibilidade de dar mais vida às coisas, para, como se diz, dar mais vida à vida.
Portanto, todos estes aspectos estão fora do âmbito do código de defesa do consumidor no Brasil. É preciso atualizar. Eu até hoje tenho uma ideia, mesmo que pode servir para a Europa, ao lado do código de defesa do consumidor do Brasil ou ao código do consumo em França ou na Itália ou em Malta ou na Polônia e que são os países que têm códigos.
Nós não temos uma legislação avulsa porque se perdeu uma grande oportunidade quando se deu a um professor de Coimbra a possibilidade de dirigir uma comissão e ele levou 10 mais 4 anos para apresentar um projeto que era tão aberrante, tão aberrante que foi rechaçado, que foi recusado. O governo usou um veto de gaveta. Nós temos legislação avulsa.
Portanto, eu entendo que deve haver ao lado do código de defesa do consumidor, o código de contratos de consumo em que todas estas matérias incidem. Perguntar-me-ão: “Isso hoje, mesmo o próprio código passaria no Congresso?” Se houver uma vontade política forte, se não forem os grupos econômicos mais preponderantes a mandar no poder político, tudo isso é possível. E há que fazer essa tentativa.
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