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Lei determina ensino da história e cultura afro-brasileira como forma de combater o racismo

Aprovada há 19 anos, a Lei Federal 10.639, de 9 de janeiro de 2003, segue enfrentando desafios para aplicação no Brasil. Enquanto isso, pessoas como a cantora Naiara Azevedo, no BBB 22, pedem para ser ensinadas sobre como vencer o racismo.

Camila Guimarães / Especial para O Liberal

Na primeira semana do BBB 22, a cantora Naiara Azevedo, participante do programa, protagonizou mais uma cena polêmica ao fazer uma série de perguntas sobre raça ao ator Douglas Silva, também participante do reality show. Entre os questionamentos, Naiara quis saber se a esposa do ator era considerada branca ou negra e qual seria a palavra correta para se referir a pessoas negras (preto, negro ou moreno). Em determinado momento, após ela pedir para ser ensinada, Douglas orientou Naiara a pesquisar o assunto depois de deixar a casa.

A atitude de Naiara reflete de maneira sintomática uma das formas de manifestação do racismo que acontece na sociedade brasileira para além do reality. A cena também traz à tona um dos grandes questionamentos levantados pelos movimentos negros no Brasil: a necessidade urgente de transformar a sociedade por meio de uma educação antirracista.

Há 19 anos, esta é justamente a proposta da lei federal 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. A lei já está em vigor, mas, ainda hoje, encontra uma série de barreiras para sua concretização, conforme comenta a doutoranda em Educação e Desigualdade da USP, Adriana Moreira, que atua no projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista): 

“A dificuldade central para a implementação da Lei 10.639/03 diz respeito ao fato de o Brasil viver sob a égide de um sistema de dominação racial. Isso significa dizer que, ainda que o movimento negro tenha conseguido uma justa vitória para o povo brasileiro e para o avanço dos direitos democráticos com a criação e sanção desta lei, isso não fez da estrutura da gestão política educacional dos estados e municípios espaços tão menos racistas assim, de maneira que, após a sanção da lei, a disputa por conceitos, visão de mundo, tempo, espaço e orçamento para a contrução de políticas seguissem uma tendência de retração e sufocamento”.

Caso a Lei da Educação Antirracista fosse efetivamente implementada, Adriana afirma que um dos primeiros impactos seria a transformação das escolas brasileiras em espaços de acolhimento, possibilitando a reversão de alguns problemas educacionais enfrentados por estudantes negros e negras ainda hoje: 

“Poderia dizer que haveria a redução sensível da reprovação, da distorção ano-série e da evasão escolar, processos esses violentos cujas principais vitimas no Brasil são as crianças e adolescentes negros. Isso significaria que as escolas brasileiras seriam espaços dedicados ao pleno desenvolvimento de todas as crianças e adolescentes, inclusive, das populações negras, quilombolas e indígenas. As crianças e adolescentes aprenderiam mais e melhor em um espaço organizado por valores antirracistas”, garante a pesquisadora.

Ela reforça ainda que uma educação que incluísse a cultura e a história afro-brasileira em sua base seria um passo determinante para o desenvolvimento de uma sociedade de fato preocupada com a igualdade racial. Sobre a cena em que Naiara Azevedo questiona Douglas Silva sobre conceitos básicos da discussão racial no Brasil, Adriana comenta:

“É muito difícil que uma pessoa negra, que passou por um percurso longo de formação e de construção da sua identidade, na sua comunidade, tenha que servir/ensinar/explicar as coisas para pessoas que não estão, de fato, interessadas na desconstrução desse problema, que é estrutural. Além disso, um indivíduo negro não pode se responsabilizar pela educação do outro que não está a fim de aprender. Essa educação, inclusive, é coletiva. Todas as associações e movimentos negros são abertas e a informação está disponível”, afirma a doutoranda.

Adriana concorda com a artista, militante e professora emérita da Universidade Federal do Pará (UFPA), Zélia Amador de Deus, que há uma necessidade urgente de compreensão, por parte sociedade, de que o ensino da história e cultura afro-brasileira não é a ministração de um conteúdo restrito, que seria de interesse de apenas um grupo, mas se trata de uma expansão do ponto de vista da História.

“Porque, até então, só se pensava numa história pautada no continente europeu ocidental, que foram os colonizadores do continente americano. Você trabalhando com a história da cultura afro, você amplia a visão das pessoas e elas passam a enxergar que o mundo não é só o que a história dominante conta”, explica a professora Zélia.

Transformação precisa começar na formação de professores, diz fundadora do Cedenpa

Para Zélia, um dos grandes entraves dessa mudança na educação está na formação dos professores. Ela comenta que o país tem deixado a desejar na capacitação qualificada de professores para trabalharem a temática em sala de aula: “A questão é que nem todas as universidades têm essa formação no currículo. E se os profissionais não têm essa qualificação na Universidade, eles não vão ter como trabalhar esses assuntos nas salas de aula nos outros níveis da educação”.

Zélia atribui essa falta de capacitação à desarticulação de projetos importantes do Ministério da Educação: "Em governos anteriores, o MEC promoveu muitas formações continuadas de docentes pelo país inteiro, por meio de cursos de pós-graduação e especialização nessa área. Teve muita formação na época, a UFPA e o IFPA formaram muita gente. Acontece que essas formações pararam e tudo dentro do MEC que trabalhava com isso, nesse governo, foi desarticulado”, explica a professora.

Entretanto, Zélia enxerga que, nesses 19 anos de existência da Lei 10.639, algumas mudanças positivas aconteceram: “em alguns lugares tem, sim, melhorado muito. O movimento negro tem ajudado bastante com palestras e curso. Aliás, a gente já faz isso bem antes da legislação, que é resultado de uma demanda histórica do movimento negro. porque foi no movimento negro de onde veio todas as minhas bases de formação no assunto”.

É neste sentido que opera, atualmente, no Brasil, o Sistema de Educação para uma Educação Antirracista (projeto Seta), lançado em 10 de dezembro de 2021, do qual faz parte a doutoranda Adriana. Composto por organizações da sociedade civil nacional e internacional, o projeto tem como objetivo “criar uma articulação entre a sociedade civil organizada, profissionais da educação, sistemas de justiça e assistência social e poderes públicos, no sentido garantir e fortalecer um sistema de educação público antirracista no país”, explica Adriana.

A partir das pesquisas realizadas no âmbito do projeto, as organizações pretendem também gerar evidências qualificadas para o setor educacional de como o sistema de dominação racial opera dentro dos sistemas educacionais no Brasil.

Desta forma, o projeto colabora com os objetivos da Lei 10.639, ajudando na prática da implementação de uma educação antirracista que, para Zélia Amador, é o primeiro passo para o desenvolvimento de uma sociedade brasileira melhor: “com certeza você vai ter pessoas que vão pensar essa sociedade não mais só a partir da desigualdade, mas pessoas que vão ter condições de pensar uma sociedade de iguais”.

Pará