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Julgamento de Mariana Ferrer reacende debate sobre revitimização de vítimas de crimes sexuais

Apesar do alarmante índice de um estupro a cada oito minutos no país, poucas políticas públicas efetivas são promovidas em questão de gênero

Ana Carolina Matos

Uma mulher é estuprada no Brasil a cada oito minutos. O dado absurdo é do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro deste ano. Apesar do indicativo alarmante, muito pouco é feito para a promoção de políticas públicas efetivas em questão de gênero. Pelo contrário. A agressão é tão legitimada que fez com que a audiência do julgamento de Mariana Ferrer, de Santa Catarina, tenha repercutido nacionalmente. O motivo? O modo confortavelmente agressivo com que a violência de gênero promovida pelo advogado de defesa - aliado ao comportamento de omissão de juiz e promotor - foi usada como estratégia processual em um caso de estupro. 

Neste domingo (8), integrantes da Frente Feminista do Pará, além de organizações e ativistas autônomas, se unem ao Ato Nacional e realizam manifestação pública, às 9h, no Centro Arquitetônico de Nazaré (CAN), em Belém. O mote do ato é preciso: "Juntas pelo fim da cultura do estupro. A culpa nunca é da vítima. Você não está sozinha, Mari".

No Pará, ainda segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os estupros de mulheres somam 1.172 no primeiro semestre de 2020. O número representa uma queda de mais de 26% dos casos em relação ao mesmo período de 2019, entretanto é difícil saber o quanto as subnotificações de violência contra a mulher, causadas pela pandemia de covid-19, influenciaram nos dados absolutos. 

Já números do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) indicam que foram registrados 301 casos de estupro e mais 1.140 estupros de vulnerável no estado em 2020. Ano passado, o número de estupros registrados foi de 555, enquanto que a taxa de estupro de vulnerável foi de 1.687. Os crimes sexuais são frequentes. A dor de uma mulher violada é eterna.

Além de uma violência tão íntima e dilacerante, as vítimas muitas vezes são hostilizadas em ambientes que, a priori, deveriam ser sinônimo de refúgio e acolhimento. A dificuldade, entretanto, é ter que lidar com sistemas e processos longos feitos por homens e para homens, o que facilita que as vítimas sejam acuadas, a exemplo do que ocorreu com Ferrer.

"Compreender o conceito de gênero nos faz entender que nós mulheres fomos submetidas a diversos tipos de violência e há dominações que só o gênero nos submete", pontua a advogada Thaís Moura, integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PA.

Integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PA e sócia fundadora do primeiro escritório feminista de Belém, a advogada Thaís Moura ressalta que "boa parte do Judiciário é movimentado por homens", e por isso é importante a busca por mulheres que atuem com base na perspectiva de gênero. "Compreender o conceito de gênero nos faz entender que nós mulheres fomos submetidas a diversos tipos de violência e há dominações que só o gênero nos submete", pontua. "Faz-se necessário que esses homens percebam-se como responsáveis pelo machismo estrutural e estruturante da sociedade e que repensem suas atitudes", acrescenta.

Mesmo em um ambiente por vezes hostil, Moura ressalta a necessidade de reportar casos de violência sexual. "A denúncia é muito importante para que esse agressor não faça o mesmo com outras mulheres. Acaba sendo também um modo de proteger outras mulheres. Essa mulher que está se sentindo desamparada precisa entender que o papel da denúncia é muito importante. É importante que a gente não se cale, que as denúncias continuem acontecendo. Só enfrentando o problema que a gente vai enfrentar o poder judiciário", pontua.

A advogada também indica locais que possam oferecer apoio à vítimas de crimes, como coletivos de mulheres, o Espaço Virtual de Acolhimento para mulheres vítimas de violência no Pará (EVA), da Defensoria Pública do Estado; A Clínica de Atenção à Violência (CAV) da UFPA e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

"A denúncia é importante para que o agressor sofra todo o processo penal e, se der tudo certo, que também sofra a punição", enfatiza a Titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), delegada Janice Maia.

A importância da denúncia é corroborada pela Titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), delegada Janice Maia. De acordo com Maia, um caso como o de Ferrer pode, inclusive, desencorajar vítimas de abuso sexual. "Muitas mulheres podem achar que não vale a pena denunciar, mas a denúncia é importante para que o agressor sofra todo o processo penal e, se der tudo certo, que também sofra a punição. Se conseguir vir logo ou se não, é válido. A vítima não pode achar que não dá em nada", ressalta.

Segundo a titular da DEAM, denúncias de estupro são sempre uma ocorrência frequente na Delegacia da Mulher. "Toda semana temos registro de estupro, seja marital, em que o marido violenta a esposa, seja de desconhecidos", pontua. Quanto mais recente a denúncia, mais fácil para que as autoridades policiais encontrem e punam o abusador. 

Entretanto, nem sempre a vítima está preparada para a exposição de um caso de estupro. "Há mulheres que não conseguem nem falar sobre o assunto e ficam sofrendo por muito tempo", diz. Por conta disso, a delegada reforça a importância de uma delegacia especializada. "Apesar da competência para apurar o crime ser de toda e qualquer delegacia, na DEAM conhecemos toda a rede integrada de atendimento e já fazemos todo o encaminhamento necessário para profilaxia, exames, perícia... Todo o protocolo que é importante nesse tipo de crime", detalha. 

A Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) funciona 24 horas, sete dias por semana. Em Belém, o atendimento ocorre na travessa Mauriti, 2393. Bairro do Marco. Em Ananindeua, a delegacia está localizada na travessa We 31, 1112. Na Cidade Nova.

Cultura do estupro: a normalização da violação sexual 

A relativização e silenciamento da violência contra a mulher é reforçada diariamente pela cultura do estupro, um conceito usado desde a década de 1970 pela segunda onda feminista. "É um processo de socialização de homens que não levam em consideração questões como consentimento, como se todo corpo pudesse servir ao ato. É uma cultura que centra na potência sexual, na força, no poder que o patriarcado acaba convencendo que os homens têm em relação às mulheres", explica a psicóloga Michelle Goulart, mestre em Teoria e Pesquisa do Comportamento e embaixadora do Coletivo Não é Não.

"O estupro é uma pandemia há muito tempo", diz a psicóloga Michelle Goulart, mestre em Teoria e Pesquisa do Comportamento e embaixadora do Coletivo Não é Não.

A objetificação feminina, reforçada em filmes, séries e publicidades também fortalecem a ideia de que o corpo da mulher deve atender pré-requisitos e "deveres", apesar de ter pouco ou quase nenhum direito, segundo esse tipo de conceito. "Os homens se chateiam quando falamos que todo homem é um estuprador em potencial, mas isso significa dizer que todo homem está imerso numa mesma cultura falocêntrica, que não oferece educação sexual de qualidade que inclua noção de consentimento e respeito", aponta.

Para a psicóloga, é importante que as vítimas de abuso sexual se resguardem no momento de dor, apesar da importância da denúncia. "As denúncias fortalecem as necessidades de políticas públicas, mas as pessoas precisam ter muito cuidado com esse afã da auto exposição. A vítima precisa ser resguardada", declara. "O estupro é uma pandemia há muito tempo. Os homens precisam se ocupar de autoeducação e em educar os outros homens. Não é uma causa apenas feminina, é um problema de toda a sociedade", acrescenta.

Pará