MENU

BUSCA

'Inimigo invisível' causa rotina de medo e baixas entre policiais militares no Pará

Até sexta-feira (1), 18 PMs haviam morrido e mais de mil estavam afastados do trabalho por causa do novo coronavírus

Dilson Pimentel

“Estamos sendo vencidos por um inimigo invisível”, diz a presidente da Associação dos Cabos e Soldados da Policia Militar e Bombeiros Militares do Pará (ACSPMBMPA),  cabo Cristina Mota. Até sexta-feira, 18 policiais militares haviam morrido com a covid-19. E mais de mil estavam afastados do trabalho com sintomas da doença. E, nesse cenário de pandemia, policiais militares e bombeiros militares convivem com o medo e o desprezo. “O medo pelo fato de que, a cada dia, estamos perdendo mais e mais irmãos de farda, tanto policiais quanto bombeiros. Estamos ficando com essas lacunas. Estamos perdendo homens e mulheres, da ativa e da reserva, que dedicaram a sua vida a servir a sociedade”, acrescentou ela, que tem quase 10 anos de profissão e é lotada na Companhia Independente de Policiamento Escolar (Cipoe).

Segundo a cabo Cristina - que, inclusive, está com sintomas da covid-19 e, portanto, afastada do trabalho por 14 dias - esse desprezo é fruto de uma questão política que já vem há anos. “E só vem promessas de melhorias para a nossa categoria, onde muitos acham que a melhoria é só na parte salarial, ou a parte de equipamentos para o policial e o bombeiro estarem na rua servindo a sociedade”, afirmou. “Mas não. Nós somos mães e pais de famílias que necessitamos ter uma boa saúde, pra gente poder estar no combate diário. E isso começa a partir do momento em que temos um plano de saúde de qualidade, que possa oferecer assistência tanto na capital quanto no interior”, acrescentou.

Associação pede reestruturação do hospital da PM

A presidente da associação disse que o plano Iasep (Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Pará) “está sucateado há muito tempo. Não funciona no interior e mal funciona na capital, onde muitas especialidades estão sendo fechadas. Muitas clínicas e hospitais acabam não fazendo atendimento do Iasep. Se vai mudar para um outro plano, o valor é alto para o policial e o bombeiro pagarem. Mas ele necessita ter um plano, uma assistência”.

“No governo da (então governadora) Ana Júlia, o único hospital militar que tínhamos, o Hospital da Polícia Militar, dava assistência para PMs e bombeiros que vinham do interior. Os policiais mais antigos contam que fizeram cirurgias de alto risco no HPM, que hoje funciona como se fosse uma clínica, onde você vai e consulta. E, hoje, na situação da pandemia, funciona como uma triagem. O militar vai lá, passa horas em uma fila. O militar com sintomas, doente. Isso para ter contato com o único médico de plantão. E esse único médico simplesmente só vai te dar um atestado, te afastando, mas não te encaminha para nenhum local que possa fazer o atendimento. Não faz nenhum teste em você, para saber se está ou não com vírus”, contou.

Cabo Cristina está com atestado de 14 dias de afastamento do trabalho. “Já fui atrás para ver onde faço o teste e, até agora, não tive resposta. Fui atrás porque estava sendo distribuída medicação no HPM. Fui na segunda, à tarde, e passei horas na fila imensa, que não andou do lugar. E uma soldado que estava sendo atendida disse para os demais que a medicação havia acabado fazia tempo. E eu passando mal na fila. Vou fazer o quê? Vou ficar lá para dar de cara de novo com o médico que já me deu o atesado? Fui embora pra minha casa”, contou.

Em ofícios ao Comando da Polícia da Militar e ao governo do Estado, a associação sugeriu aos gestores testes rápidos para a covid-19, compra de medicamentos em maior quantidade e posterior distribuição, criação de espaços e a reestruturação do Hospital da Polícia Militar e a criação de espaços de retaguarda nas áreas do CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças), IESP (Instituto de Ensino de Segurança do Pará), quartel do Comando Geral do CBM (Corpo de Bombeiros Militar) e nos comandos intermediários dos interiores.

Número de mortes é maior que na PM de São Paulo

A presidente da associação falou das muitas baixas na corporação. “E cada dia que eu acordo eu vejo mensagens de que perdemos mais um policial, mais um bombeiro. É lamentável para nós.  Estamos sendo vencidos por um inimigo invisível”, afirmou. Em 23 de março, a associação encaminhou para os comandos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros ofícios solicitando que equipassem tropas com equipamentos de proteção individual.

“Não responderam esses ofícios até hoje. Na terça-feira desta semana, encaminhamos novamente, e também para o governador, ofícios solicitando medidas urgentes e sugerindo também que disponibilizassem testes rápidos e medicações. Demos prazo de 48 horas para eles responderem, e estamos aguardando”, afirmou. Ela disse ter sido entrevistada por um repórter de São Paulo. Naquele Estado, a corporação tem 112 mil policiais militares. E, até agora, morreram cinco. E, lá, é o epicentro da doença no país. No Pará, são 16 mil policiais militares e três mil bombeiros

“Só na região metropolitana de Belém, o número de baixas de policiais militares e bombeiros, fora os infectados, é muito superior ao de são Paulo. A gente só vê nota de pesar. Estarmos cansados nossas de pesar. Queremos ver atitudes do nosso governo e dos nossos comandantes em melhorar essa situação pra gente. Somos a linha de frente, combatendo, no dia a dia”, afirmou.

Ela completou: “Eu oriento nossos militares a fazer muita oração e pedir a Deus, porque é uma situação em que todos estamos sujeitos. Além das recomendações da higiene, tomar muito cuidado. É difícil porque a gente acaba sendo afastado sem ter tratamento adequado e, depois, retorna depois para trabalhar. Como foi o caso de policiais da minha unidade, que voltaram a trabalhar e não passarem por nenhuma análise”. Antes do militar retornar ao serviço, afirmou, esse policial deveria ser examinado e fazer o teste. “Teve militar que voltou a trabalhar e acabou falecendo, porque veio a recaída”, disse.

 Policial militar é bomba relógio, diz cabo

O cabo PM Mauro tem 39 anos de idade e 15 de profissão. Atua no policiamento ostensivo (ou seja, nas ruas) na região metropolitana de Belém. “Infelizmente, o policial militar praticamente é uma bomba relógio quando se trata de doenças preexistentes. A gente trabalha de forma ininterrupta, em escalas corridas, em um serviço estressante, se alimentando mal. Você acaba, mesmo os mais novos, adquirindo essas doenças e se colocando no grupo de risco da pandemia da covid-19”, disse.

Segundo ele, as operações não pararam e nem reduziram. “Continuam da mesma forma. O policial continua abordando, saturando as áreas comerciais, os bairros mais violentos”, disse. Ele acrescentou: “Infelizmente, estamos tendo baixas na nossa corporação devido não ter sido feito um preparo do alto comando para se precaver para esse tipo de resultado. A Polícia Civil, junto com seu sindicato, suspendeu operações, flexibilizou as escalas e tentou, de alguma forma, modificar o seu atendimento nas delegacias, para evitar as aglomerações. Mas a PM continuou do mesmo jeito. O que o alto comando fez foi suspender licenças e férias daqueles que estavam no gozo de seus direitos dentro de casa. Eles voltaram a trabalhar”.

Segundo o cabo Mauro, os policiais continuaram realizando as operações. “Aglomerando policiais, inclusive palestras em meio à pandemia, colocando policiais em ambientes fechados, mais de 100 policiais - ou seja, não se teve uma preocupação com relação à vida, saúde e proteção desses policiais militares”, disse.

Militares voltam ao trabalho e não sabem se estão curados

“Não mudou nada o nosso ‘modus operandi’. O nosso órgão da PM e dos bombeiros continuaram no mesmo. Não flexibilizaram. Os policiais trabalhando dentro de quartéis, amontados, como sempre, unidades que não têm a devida estrutura. E o resultado: policiais morrendo, mesmo jovens, mas que adquiriram doenças preexistentes durante sua carreira: pressão alta, obesidade, diabetes, triglicerídios e colesterol alto. Ficou, portanto, um prato cheio para a covid entrar na PM e causar baixas em nossos irmãos de farda”, contou.

Ele acrescentou: “E o que fez o alto comando quando isso veio à tona. Nada. O hospital da Polícia Militar continua fechado, sem estrutura. Agora, quando alcançou o número de 12 mortes na PM , foi que começaram a se pensar em fazer testes, afastar os que estão com sintomas. Por enquanto está só na liberação de atestado. O policial se consulta nas unidades de saúde dos quartéis, e só dão atestado de 14 dias, sem devido tratamento, sem fazer exame, fazendo exame aos poucos para o número de policiais que estão apresentando. São mais de mil afastados. Não conseguimos nem 10 por cento fazer exame se estão com covid ou curados, pra poder voltar quando acabar os 14 dias. Estão voltando e nem se sabe se estão curados, se saiu o resultado. Infelizmente, está esse caos. Temo por dizer que esse número pode ser maior daqui a algum tempo”.

“Ficamos na linha de frente junto com eles”, diz esposa de PM
 

“Nós, como família, acabamos ficando como linha de frente junto com eles. Eles saem para a rua, para trabalhar. E, por mais que usem a máscara, o contato que eles têm é muito grande com a população, na rua, ficam muito vulneráveis ao vírus. E, depois, voltam para dentro de casa, tendo contato com a esposa e os filhos. E não sabem se está com a covid-19, pois os sintomas não se apresentam de imediato. Até o policial apresentar algum sintoma, e até saber se está ou não doente, ele já contaminou a família: os pais, idosos, os filhos, a esposa. A família acaba sendo contaminada pelo vírus. E a gente, infelizmente, não pode fazer nada. A gente tem que se virar, correr atrás de medicamentos. A família fica sem saber o que fazer”. O relato é da presidente da Associação de Esposas e Familiares de Praças do Pará, Pâmela Rodrigues.

Ela também disse que, por não saber que está doente, o policial militar também acaba contaminando seus companheiros de farda. Pâmela disse que, no começo da pandemia no Pará, o governo do Estado não deu o suporte necessário aos policiais.  “Eles são linha de frente e estão mais suscetíveis ao vírus. Muitos dos policiais afastados e que  chegaram a óbito não tiveram todo essa assistência do Estado. Não tiveram essa preocupação do Estado de proteger os policiais militares e suas famílias”, afirmou. “Se hoje o policial militar ainda não caiu doente, é porque sua família tem procurado comprar remédio, procurado, por conta própria, se proteger”, afirmou.

Policiais estão sobrecarregados
 

Por conta das baixas, Pâmela disse que muitos policiais nos batalhões estão sobrecarregados. “Por causa do afastamento, os que não apresentam sintomas, os que não estão doentes, estão sobrecarregados. Tem policial que está tirando serviço extra, reforço, para garantir o policiamento nas ruas, para recompor o policiamento que era feito por quem está doente e afastado. E isso acaba expondo ainda mais o policial a esse vírus”, afirmou.

Segundo ela, todos os policiais deveriam fazer o teste rápido – e não  apenas os que estão afastados e com atestado médico -, pois eles estão na rua e em contato com muita gente. “Muitos estão (com o vírus), mas não apresentam sintomas. E, assim, contaminam as famílias. E, no quartel, contaminam os colegas de farda. Ele é a porta de contaminação para outros policiais. Muitos estão doentes, mas não sabem e acabam contaminando outros companheiro dele de trabalho e sua família. Isso vai gerando um problema muito grande, porque só é afastado quando apresenta sintomas. E, até apresentar, já contaminou 10, 20 pessoas, o batalhão todo. E, aí, vai adoecendo um atrás do outro”, afirmou.

Mesmo exercendo um serviço essencial, o policial militar está passando pela mesma situação que a população civil. “Ele não consegue atendimento e se automedica em casa”, afirmou.

Batalhões estão tendo baixas em seu efetivo

Pâmela Rodrigues disse que, logo no começo da pandemia, o governo do Estado não deu o devido apoio aos policiais militares, que tinham que levar seu material de higienização para o local de trabalho.  “No começo, os policiais levavam seus próprios kits, arrumavam suas máscaras e álcool em gel, para fazer a higienização. Depois de alguns dias, e de algumas cobranças, o governo foi se adaptando em certa parte. E autorizou que os policiais militares fossem nos postos de saúde pegar máscaras. Mas, no começo, a família do policial é que corria atrás para comprar o álcool em gel, para ele levar para o serviço e higienizar as mãos”, afirmou.

Logo no início, ainda segundo ela, o governo anunciou que as viaturas seriam higienizadas. “Isso pode até acontecer, mas não acontece com todas. Quem é família, e convive com os policiais, sabe das mazelas que acontecem. Nem tudo o que o governo vem a público falar na mídia acontece como eles falam. Algumas viaturas foram, mas não são todas.

Os policiais fazem sua própria higienização para não ser contaminados. E muitos dos batalhões estão tendo altas baixas em seus efetivos. Tem batalhão que já perdeu metade de seu efetivo  porque os policiais adoeceram. Estão com sintomas de febre. Muitos tiveram que tirar dinheiro de seu bolso para fazer o teste, que é caro (custa 300, 400 reais), para saber se tinha a covid, porque não receberam auxílio nenhum do Estado”, afirmou Pâmela.

“Pagaram o teste em hospitais particulares. Esses dias é que disponibilizaram teste rápido para os batalhões, para os que foram afastados e que estão sendo chamados, aos poucos, para fazer o teste em um batalhão específico. Mas, logo no início, não houve toda essa preocupação do Estado, para haver essa prevenção”, acrescentou. “Muitos estão em casa e a família não sabe se ele está ou não com covid ou somente com uma virose”, disse Pâmela.

Dados sigilosos

A Redação Integrada solicitou os números de policiais militares, policiais civis e militares do Corpo de Bombeiros infectados, os que estão afastados do serviço e os que morreram com a covid-19. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informou que, por motivos estratégicos e de inteligência, os dados não são públicos. As estimativas são utilizadas como base das ações preventivas e também de atendimento médico, quando necessário.

A Segup afirmou, também, que a Policlínica está funcionando como a unidade referência para o atendimento dos agentes de segurança pública, obedecendo ao protocolo de atendimento local. O agente pode, ainda, procurar o quadro médico da sua instituição para agendamento de exames e encaminhamentos para a urgência e internação, se necessário, dependendo da disponibilidade. 

A Segup informou que disponibilizou mais de 3.000 testes rápidos, 1.200 medicamentos para a corporação, além de 15 mil vacinas para Influenza em postos exclusivos para os servidores. Ocorre, ainda, a distribuição de máscaras, luvas e álcool 70%, líquido e em gel para todas as forças de segurança.

Pará