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Entenda o que é o estupro conjugal

Violência ocorrida em cenário matrimonial dificilmente é identificada

Tainá Cavalcante

Mais de uma década de abusos, agressões, violência doméstica pelo viés moral, sexual, psicológico, patrimonial e físico. Todas as violências contra uma única pessoa, praticadas por um único homem: seu ex-marido, que se valia do caráter matrimonial para disfarçar seus crimes. Fez até a própria vítima acreditar que era sua obrigação, como mulher, manter relações sexuais mesmo sem querer - o que, na cabeça dela, era seu dever de esposa. Nem as lágrimas, incontidas em um momento de dor, durante o ato sexual, foram capaz de parar as violências praticadas pelo agressor.

A descrição acima poderia narrar facilmente uma trama televisiva, mas infelizmente é vida real: Meire [nome fictício utilizado para resguardar a identidade da vítima] foi violentada pelo próprio marido, por mais de uma década, inclusive sexualmente. A denúncia só veio muito tempo depois: decidiu expor os crimes, ocorridos há quase 20 anos, para tentar proteger outras mulheres.

"As coisas aconteceram há muito tempo, mas eu ainda posso falar para tentar ajudar que outras mulheres não sejam vítimas" desabafa Meire, que conheceu o agressor, na época seu companheiro, aos 17 anos. "Foi o primeiro homem da minha vida. Achei que seria algo romântico, mas engravidei" lembra. "Quando eu digo isso, parece que a culpa foi só minha e na época foi o que eu senti, porque ele jogou toda a responsabilidade para o meu ombro. Aquele príncipe encantado se transformou em um monstro. Me culpou por ter engravidado, falou que eu tinha arruinado a vida dele e passou a me tratar mal. Em determinado momento, a gente se mudou para outro estado e foi ainda pior, porque começou a violência física" completa.

Pouca gente sabe, mas uma mulher, mesmo casada, pode ser vítima de estupro no relacionamento. Foi o caso de Meire que, entre tantas violências, foi vítima do crime, tipificado como estupro conjugal, mesmo sem saber. "Hoje eu sei que teve violência sexual. Inúmeras vezes ele fez relação sem eu consentir, inclusive comigo chorando. E naquela época eu achava que era meu marido, então estava dentro do meu dever. A gente cresce ouvindo 'vocês resolvem dentro do quarto', mas ninguém te diz o que é resolver dentro do quarto. Eu achava que se eu o deixasse fazer isso, no outro dia ele estaria normal" recorda.

O crime de estupro, como publicamos no último domingo (21), é a violência mais recorrente registrada contra mulheres no Pará. Só nos últimos seis meses (janeiro a junho), por exemplo, foram 1.447 casos registrados: 236 em janeiro, 216 em fevereiro, 237 em março, 256 em abril, 268 em maio e 234 em junho - uma média de sete estupros por dia, um a cada três horas. Do total de vítimas, 1.081 estão inseridas no grupo de vulneráveis, ou seja: idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes.

Não temos dados individualizados sobre os casos de estupro conjugal, violência que demorou para ser reconhecida até nos meios jurídicos, como aponta a professora de direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisadora sobre violência contra mulher, doutora Luanna Tomaz. "Durante muito tempo, nem se considerava estupro quando ocorria entre pessoas casadas. Tem decisões de 2005 que consideram como débito conjugal, que é a ideia de que o homem transa com a mulher, mesmo que seja a força, porque faz parte das obrigações matrimoniais”, afirma, ao elucidar que "o estupro é manter relações sexuais, com conjunção carnal ou não, qualquer ato libidinoso, sem o consentimento da outra pessoa".

"Se estou sendo forçada, independentemente de ser meu marido ou não, é estupro" enfatiza a especialista, reforçando que o estupro conjugal ocorre "das mais diversas formas, quando, por exemplo, o homem chega à noite em casa, bêbado, e a mulher quer não quer ter relações, mas ele a obriga".

A dificuldade em perceber que está sendo vítima do crime não foi uma exceção de Meire. Segundo Luanna, muitas mulheres ainda têm dificuldade para perceber o que, de fato, acontece. "Quando um homem mantém relações sexuais com a esposa sem o desejo dela, é estupro, isso está configurado no código penal. É importante falar sobre isso para que as mulheres entendam que não é porque são casadas que são obrigadas a manter as relações".

COMO IDENTIFICAR

Psicóloga, Vânia Celedonio dá algumas orientações para que mulheres casadas possam identificar que estão sendo vítimas de estupro conjugal. Segundo ela, "quando resistir, disser que não, que não tem interesse, e ainda assim for obrigada a praticar o ato, você está sendo vítima". "Inclusive, é importante ressaltar que você tem o direito de falar não só no início do convite para a relação sexual, mas durante. É um direito seu. Você concorda ou discorda em manter a relação" reforça.

Questionada sobre os traumas psicológicos que podem transcorrer da violência, a psicóloga afirma que a situação "mexe com a autoestima, porque parece que o seu parecer não tem significado; você passa a ter descrença a respeito das suas próprias decisões, a ter dificuldades em dizer não, porque fica com medo do comportamento do outro”.

ONDE PROCURAR AJUDA?

Casos de violência doméstica podem ser denunciados pelo telefone 180 – canal de atendimento e orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país. Não há custos para a ligação.

Ainda no âmbito judicial, alguns serviços estão disponíveis no Estado às mulheres vítimas de violência, como a Casa Abrigo, o Pro Paz Mulher (que oferece não só o atendimento policial, como o psicossocial), a Delegacia da Mulher (DEAM) e a Defensoria Pública.

De acordo com Adriana Norat, diretora da Deam-Belém, o estupro conjugal, apesar de ser uma violência difícil de ser comprovada, é amparada pela Deam. "Não é pelo fato de ser casado, ter um relacionamento, que a mulher é obrigada a praticar sexo com o homem. Então, se for sem consentimento, caracteriza estupro e a gente tipifica" garante, explicando que "a dificuldade é na apuração da violência doméstica de forma geral, porque é difícil de comprovar, já que geralmente acontece entre quatro paredes".

Já no âmbito social, em Belém, a Clínica de Atenção à Violência, sediada no Núcleo de Prática Jurídica da UFPA (Campus Guamá), também auxilia as vítimas, atendendo gratuitamente mulheres vítimas de violência com atendimento jurídico, psicológico, de assistência social, enfermagem, entre outros.

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