Pandemia deixa os cuidados com o luto muito mais complexos
Tratar com a morte na pandemia se tornou um grande desafio
O Brasil soma 131.663 mortes e 4.330.152 pessoas infectadas pela covid-19. O Pará totaliza 6.368 mortos e 214.806 infectados, até a manhã desta segunda (14), segundo o consórcio de veículos de imprensa, que utiliza os dados das secretarias estaduais de saúde. Essa enorme quantidade de mortos na pandemia ocasionada pelo novo coronavírus é vista por especialistas como quase um luto coletivo, uma guerra e até uma catástrofe.
A pandemia trouxe novas abordagens e elaborações ao processo de luto, e deixou as pessoas mais próximas da morte, uma vez que o luto se aproxima também do processo de adoecimento. Além disso, o processo de luto impacta nos novos protocolos de despedida dos entes queridos, que não podem dizer adeus da mesma forma que antes. E abala também a saúde mental dos familiares, parentes, amigos e conhecidos, e até desconhecidos das vítimas.
Segundo o doutor em Psicologia Clínica e Social Leandro Passarinho, a psicologia denomina o luto como um processo natural de resposta a uma perda de vínculo a pessoas ou de algo significativo na vida delas. "O luto é muito mais amplo que o processo de morte. Às vezes é a perda de um espaço, de um lugar, de objetos ou mudanças bruscas que ocorrem na vida de uma pessoa, e é não só a morte no processo propriamente dito. Sob o ponto de vista da morte, o luto é um processo natural. É uma resposta psicológica que temos a uma perda de um vínculo de um ente querido ou de uma pessoa que a gente deposita grande afeto".
Todavia, a pandemia da covid-19 apresenta novas abordagens e elaborações do luto, que precisa ser um processo e não uma resposta imediata e recorrente. "Precisamos de um tempo para a elaboração e para digerir o luto. Sabemos que cada sociedade tem seus processos culturais e antropológicos em relação ao luto, seus códigos culturais, rituais de luto. Mas, com a pandemia, ficamos muito mais próximos desse processo de morte, dessa finitude, o processo de luto já começou e se aproxima junto com o adoecimento", afirma Leandro Passarinho, que é docente da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Ele enfatiza que se torna mais difícil uma pessoa entender o processo de morte quando ela não vê o adoecimento. "Agora o luto já está pairando na nossa sociedade junto com a covid-19. Isso porque, embora não sejamos atingidos pela covid ou não tenhamos uma perda direta, estamos acompanhando o mundo em luto em perdas diárias e quantitativas de pessoas e números expressivos de mortes. Fica difícil até elaborar esse processo, porque não está do lado do ente querido, não está cuidando nem visitando. Então, é difícil internar um ente querido e, no outro dia, saber que ele faleceu. E que você não vai poder ver nem acompanhar esse corpo nem realizar o ritual de despedida", lamenta.
Inclusive porque os protocolos de segurança impedem as pessoas de cumprirem seus rituais de despedidas: velar, enterrar e se despedir do ente querido. "Isso na nossa cultura brasileira é muito forte e é importante para o processo de luto, porque acalma nosso psicológico, quando damos despedida digna à pessoa. Isso faz com que seja menos prejudicial à saúde mental. Mas com a pandemia não vimos isso", frisa o doutor em Psicologia.
"Precisamos de um tempo para a elaboração e para digerir o luto. Sabemos que cada sociedade tem seus processos culturais em relação a isso, seus códigos, rituais. Mas, com a pandemia, ficamos muito mais próximos desse processo de morte, dessa finitude. O processo de luto já começou e se aproxima junto com o adoecimento", afirma Leandro Passarinho, doutor em psicologia social e pesquisador da UFPA
Sem despedidas
"Achei muito injusto. Muito dolorido. Foi muito triste. Meu pai foi uma pessoa muito boa a vida toda. Muito alegre, cheio de amigos. Foi enterrado sem roupa, dentro de um saco, colocado em um caixão sem que pudéssemos ao menos nos despedir", descreve a advogada Thieny Gonçalves, 33 anos, que perdeu o pai, aos 54 anos, para a covid-19.
Ainda segundo a advogada, o que mais a impacta ao lembrar da morte do pai, que ficou internado em um hospital, em Belém, durante seis dias e morreu em 01 de junho, foi ter passado os últimos momentos dele sozinho.
"Saber que ele sofreu, principalmente pelo medo de ficar sozinho. Fico imaginando ele recebendo a notícia de que seria entubado e não ter ninguém ao lado para apoiá-lo. Ainda hoje tenho o sentimento de tristeza e saudade, junto com a culpa por não ter ajudado mais, ter feito mais e, principalmente, não ter podido ficar com ele. O primeiro mês foi o mais difícil. Hoje já consigo suportar um pouco mais a dor, mas sempre que a lembrança vem, choro muito", conta Thieny Gonçalves, que busca superar o luto com apoio da família e de amigos.
"Achei muito injusto. Muito dolorido. Foi muito triste. Meu pai foi uma pessoa muito boa a vida toda. Muito alegre, cheio de amigos. Foi enterrado sem roupa, dentro de um saco, colocado em um caixão sem que pudéssemos ao menos nos despedir", descreve a advogada Thieny Gonçalves, que perdeu o pai, aos 54 anos, para a covid-19. "Saber que ele sofreu, principalmente pelo medo de ficar sozinho, recebendo a notícia de que seria entubado e não ter ninguém ao lado para apoiá-lo. Ainda tenho o sentimento de tristeza e saudade, junto com a culpa por não ter ajudado mais, ter feito mais e, principalmente, não ter podido ficar com ele. O primeiro mês foi o mais difícil. Hoje já consigo suportar um pouco mais a dor, mas sempre que a lembrança vem, choro muito"
Momento demanda atendimento profissional
Para o doutor em Psicologia Clínica, a sociedade vive momento desafiador sem perspectiva certa de finalização da pandemia e ainda vai viver muitas perdas pela covid-19. Por isso, é fundamental buscar ajuda junto aos profissionais em relação à saúde mental.
"Sabemos que a descoberta da vacina ainda não será o final da pandemia, porque isso só acontece com a imunização coletiva da sociedade. Então, ainda vamos viver com muitas perdas pela covid e muitos processos de enlutamento e prejudicial à saúde das pessoas. A população precisa de orientação e esclarecimento, e entender que esse é um momento atípico, que toda a vida está modificada e isso impacta também no processo e nos novos protocolos de despedida dos entes queridos. E que isso vai abalar também a saúde mental e que precisam também de apoio profissional psicológico".
Aos profissionais de saúde mental, Passarinho, que é vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e da Clínica Psicológica Virtual da UFPA, destaca que cabe prepararem as unidades hospitalares para fortalecer mais esse vínculo por meio da tecnologia (como celulares e videochamadas) e visita segura, com biossegurança, para que as pessoas tenham mais proximidade com seu ente querido, sem contato direto, mas vendo o adoecimento para começarem a iniciar seu processo de elaboração do luto.
Clínica virtual oferece apoio
A Clínica Psicológica Virtual da UFPA conta com 60 profissionais, entre eles psicólogos, docentes, mestrandos, doutorandos e voluntários, para oferecer acolhimento e atendimento psicológico à população paraense em geral, além de indígenas e quilombolas, na pandemia da covid-19.
O atendimento é gratuito e regulamentado pelo Conselho Federal de Psicologia. É feito via ligação telefônica e funciona de segunda a sexta-feira. Para ter acesso, basta entrar no site da Clínica Virtual da UFPA, onde estão disponíveis os nomes e telefones dos profissionais em atendimento.
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