Enem é esperança de vida nova para 1,4 mil presos no Pará
Conquistar a aprovação em uma universidade, com a nota do exame, garante a remição de 133 dias de pena
Nos dias 10 e 11 de dezembro, 1.457 pessoas privadas de liberdade farão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no Pará. É um sonho de mudar de vida para 1.388 homens e 69 mulheres paraenses custodiados. A Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado (Susipe) aponta que há cerca de 2,4 mil apenados em educação regular dentro das unidades prisionais. A meta para o ano que vem é de ter 3 mil estudantes e aumentar ainda mais a participação no Enem. Sobretudo de mulheres.
Conquistar a aprovação em uma universidade, com a nota do exame, garante a remição de 133 dias de pena. Essa é uma determinação do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Cada 12 horas de estudo em educação formal, garante remição de um dia de pena. Ser aprovado não garante a liberdade imediata, mas pode facilitar a progressão de regime. Ou mesmo agilizar a liberdade.
Sonhos no cárcere
Estudar — seja na educação regular ou na educação profissionalizante — é uma forma de reinserção social muito mais rápida. E eficiente. Dificilmente, um egresso que se dedicou aos estudos e aprendeu uma profissão reincide no crime.
Num levantamento de junho deste ano, 1.218 internos estavam matriculados na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Havia 38 encarcerados sendo alfabetizados; 56 fazendo algum tipo de curso profissionalizante; 127 reeducandos envolvidos em projetos de remição pela leitura; 28 cursando ensino superior; e mil em atividades educacionais não formais.
Belchior Machado, diretor de Reinserção Social da Susipe, reforça que a educação é fundamental na ressocialização de pessoas privadas de liberdade. Por isso, todos os presos são incentivados a passarem por programas educativos. Seja a alfabetização (para quem nunca estudou), quanto a conclusão do Ensino Médio, projetos de leitura, educação profissionalizante e inscrição em exames, como o Enem e o Encceja.
Caso aprovado, mas o custodiado ainda não tenha tempo de pena suficiente para uma progressão de regime, a Susipe se encarrega de toda a logística para garantir a oportunidade de estudar. Isso fica um pouco mais fácil quando se trata de cursos com educação a distância (EAD). No entanto, Belchior ressalta que a Susipe ainda não está satisfeita com os índices de participação. E nem de aprovação. No ano passado, dos 1.007 inscritos no Enem, apenas 10% conseguiram aprovação.
Mesmo assim, conseguir colocar uma pessoa privada de liberdade nas atividades educacionais é um desafio. Primeiro, é preciso convencer quem, muitas vezes, desacreditou da educação como política pública transformadora. Depois, desvencilhar quem se interessou pela oportunidade de educação da influência negativa e desestímulos. E do aliciamento de facções criminosas. Às vezes, garantir a permanência do custodiado na educação é um trabalho que requer inteligência, estratégia e proteção.
"A maioria dos que estão na educação não foi cooptada pelas facções. Esses ainda se tornam agentes multiplicadores da educação. Queremos que cada vez mais os custodiados façam isso", comenta Belchior.
Só que as crises recentes no sistema penitenciário e a intervenção federal nos presídios paraenses, os desafios só aumentaram. Por segurança, o número de aulas foi reduzido, assim como o número de estudantes em sala. Quem foi transferido de unidade, só poderá retornar às salas de aula a partir de janeiro de 2020. Na educação profissionalizante, não houve restrições. Para compensar, a Susipe começou a fazer aulões de revisão para quem vai fazer Enem.
"Enquanto estiver aqui e oportunidades forem surgindo, vou aproveitar. Não desistam de estudar. Aproveitem o tempo. Algumas chegam aqui e nem sabem ler ou escrever, abandonadas por companheiros. Como vão voltar para a sociedade? Talvez eu faça um projeto de educação aqui", planeja Rosa Maria Cravo, pedagoga e detenta
"Educação é porta para sair e chave para não voltar"
A pedagoga Rosa Maria Leôncio Cravo, de 40 anos, está se preparando para cursar Psicologia ou Fisioterapia. O que a nota dela no Enem permitir. Estudar sempre foi uma paixão, desde criança. Chegou a ser professora concursada da prefeitura de Moju e dava aula numa escola de educação infantil. Eventualmente, a vida acabou resultando na prisão dela. Mas ela sabe que vai reverter.
Psicologia é uma opção porque sempre gostou dessa área. Trabalhava com psicologia da educação, em Pedagogia. Fisioterapia é uma lembrança de uma tia que já se foi. Cuidava dela, fazendo exercícios. Para conseguir a aprovação, dedica duas horas diárias de estudo para cada disciplina. No ano passado, conseguiu a nota mais alta de redação do Centro de Recuperação Feminino (CRF), com 790 pontos. E ganhou um prêmio de melhor redação no projeto educacional Leitura que Liberta.
Rosa vem tentando o Enem desde que entrou na unidade, em 2016. Um novo rumo, desde que foi aprovada em Pedagogia, na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2007. Diz que sempre há diferentes públicos: custodiadas que apoiam, custodiadas que seguem o exemplo, e custodiadas que tiram as forças.
Como pedagoga, Rosa diz gostar muito do nível técnico de prova do Enem. Ela vê como uma prova muito teórica e que desafia os estudantes na interpretação de texto, uma dificuldade recorrente na educação brasileira. E a prova acabou com o ensino conteudista e de decorar disciplinas. Por outro lado, lamenta que particularidades regionais tenham sido eliminadas com o fim dos vestibulares locais.
"Eu digo que, enquanto estiver aqui e as oportunidades forem surgindo, eu vou aproveitar. A mensagem que eu dou a outras é: não desistam de estudar. Aproveitem o tempo para se ressocializarem. Algumas chegam aqui e nem sabem ler ou escrever, abandonadas pelos companheiros. Como vão voltar para a sociedade? Talvez eu acabe fazendo um projeto de educação no cárcere", planeja a pedagoga.
No Centro de Triagem Masculino II, Sérgio Aloyzio da Silva Lacerda — arte-educador, ator, diretor, artesão e pedreiro de acabamento — se prepara para o Enem e disputar uma vaga do curso de Conservação e Restauro, na UFPA. Lamenta que a intervenção nos presídios tenha diminuído a frequência das aulas. Agora só consegue estudar três horas por dia, no máximo, duas vezes por semana.
No Centro de Triagem do Coqueiro, Sérgio Lacerda lamenta que a intervenção nos presídios tenha diminuído a frequência das aulas. Agora só consegue estudar três horas por dia, duas vezes por semana. "Só volta para a prisão quem está sem chances. E é por isso que eu participo de todos os cursos possíveis"
Lacerda vem tentando o Enem desde que chegou ao CTMII. É a quarta tentativa. Só que antes era mais por treino. Essa é que está se sentindo mais confiante. "Eu já nasci pronto!", afirma. Disse que teria deitado e rolado na prova de redação se tivesse feito o exame regular deste ano. "Um prato cheio para a crítica. O governo colocou uma tarja preta na Ancine e quer falar de democratização do acesso ao cinema? Eu sou de Barcarena, onde não tem nem teatro e nem cinema. E como muitos outros lugares não têm. Mas vamos ver o que vem para nós", diz o apenado
Para o preso, a educação é "a porta para sair e a chave para não voltar" ao sistema penitenciário. Por isso, tem ajudado, como pode, outros homens privados de liberdade. Já conseguiu alfabetizar seis. Espera, ansiosamente, que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) chegue logo, no ano que vem, para estimular ainda mais apenados a estudar. "Só volta para a prisão quem está sem chances. E é por isso que eu participo de todos os cursos possíveis", apruma-se Lacerda na cadeira da pequena sala de estudos do Centro de Triagem Metropolitano, no bairro do Coqueiro.
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