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Após 17 anos, obra rara furtada é devolvida ao Museu Emílio Goeldi em Belém

A devolução foi realizada pela Polícia Federal (PF), após um longo processo de investigação e cooperação internacional

Dilson Pimentel

"Faz 17 anos que nós tivemos essa subtração. E, agora é um momento de alegria, porque é a terceira obra mais valiosa que estamos conseguindo recuperar e trazer de volta para o nosso acervo”, disse o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Nilson Gabas Júnior. Após 17 anos do furto, o MPEG viveu, na manhã desta sexta-feira (17), um momento histórico. Em uma cerimônia simbólica, no Salão de Leitura da Biblioteca do Campus de Pesquisa, na avenida Perimetral, em Belém, o museu recebeu de volta uma de suas obras mais valiosas: “De India utriusque re naturali et medica”, do médico e naturalista Guilherme Piso, publicada em Amsterdã, em 1658.

O livro, considerado uma das mais importantes publicações científicas do século XVII sobre a natureza e os povos do Brasil, foi furtado do acervo em 2008 e localizado em 2024, na cidade de Londres, no Reino Unido. A devolução foi realizada pela Polícia Federal (PF), após um longo processo de investigação e cooperação internacional, com apoio da Interpol.

O diretor do Museu Emílio Goeldi, Nilson Gabas Júnior, destacou a relevância da recuperação e o simbolismo de trazer de volta ao Brasil uma obra que representa o nascimento da ciência brasileira. “Nós ficamos extremamente felizes em ver que continua a atuação contundente da Polícia Federal, em associação com a Interpol, no sentido de recuperar algumas das obras raras que foram subtraídas da nossa coleção”, afirmou.

Segundo o diretor, a publicação de Piso é uma das mais completas descrições científicas do Brasil sob domínio holandês. “Essa obra é valiosa no sentido de que descreve um período da história do Brasil em que, por um breve tempo, fomos colônia da Holanda, sob Maurício de Nassau. Nesse período, o autor fez uma descrição das práticas culturais e medicinais das populações do Brasil. Isso é uma informação muito valiosa para a ciência brasileira, para a cultura amazônica. Isso rebate no equilíbrio climático do planeta. Conhecendo sua cultura, você valoriza sua cultura e é, inclusive, uma questão de soberania nacional”, destacou.

Para Nilson Gabas, a repatriação da obra ultrapassa o valor científico e cultural - representa também uma questão de soberania nacional. “Ao conhecer e valorizar nossa cultura, nós também fortalecemos a soberania nacional. Esse movimento de recuperação de obras raras é um símbolo de respeito à nossa história e um passo importante para garantir que nosso patrimônio permaneça sob a guarda do povo brasileiro”, ressaltou.

Obra que revela o Brasil do século XVII

O conteúdo do livro impressiona pela abrangência. A ex-curadora de obras raras do museu, Berenice Bacelar, que participou da identificação do exemplar, explicou que a publicação aborda temas que vão da antropologia à botânica, passando por arqueologia, geografia e zoologia.

“Essa obra é uma história natural completa. Ela trata de antropologia, arqueologia, geografia, botânica, zoologia… tudo. São três autores dentro de um livro só. Foi uma encomenda de Maurício de Nassau, feita dentro de um território que, à época, era praticamente um país dentro do Brasil - Pernambuco, sob domínio da Companhia das Índias Ocidentais”, detalhou.

Segundo Berenice, a importância científica da obra vai muito além das descrições naturais: ela é um retrato de um período em que o Brasil foi estudado e descrito por cientistas estrangeiros, antes mesmo da consolidação da ciência nacional.

“Essas obras não têm um valor estimado. São únicas. Representam o início científico do Brasil. A ciência brasileira foi mostrada ao mundo por estrangeiros, e isso é visível até o século XIX. O próprio Lineu, que criou a taxonomia moderna, usou os trabalhos desses autores como base para o seu sistema de classificação”, explicou.

A redescoberta: como o livro foi identificado

A confirmação de que o exemplar encontrado em Londres pertencia ao acervo do Museu Goeldi foi possível graças às marcas e carimbos de identificação que o museu mantém em suas obras. “A obra realmente era nossa. O antiquário que a comprou em 2008, no mesmo período do furto, e tinha as nossas marcas e carimbos. Ele não escondeu nada. Foi quase como se dissesse: ‘o livro é de vocês, venham buscar’. Então, não houve dúvida alguma sobre a autenticidade”, contou Berenice.

A ex-curadora também lembrou o valor histórico da publicação no contexto do domínio holandês no Nordeste.

“Durante 17 anos, Pernambuco viveu um desenvolvimento muito grande. Maurício de Nassau mandou construir observatórios para os cientistas observarem o vento, a água, o solo, e realizar um levantamento total da região. Ele também construiu estradas e embelezou o território, porque a Companhia das Índias era uma empresa de comércio. E, para vender melhor, era preciso mostrar um país bonito, bem estruturado”, relatou.

Esse desenvolvimento, segundo Berenice, deixou marcas duradouras. “O mapa de Pernambuco feito naquela época era tão detalhado que, até o século XIX, era considerado perfeito. Nunca houve contestação de sua precisão. Os autores eram todos médicos, estudiosos de antropologia, arqueologia, botânica, línguas indígenas e medicina indígena. Eram cientistas com múltiplas formações, o que explica a riqueza da obra”, completou.

Desafios da recuperação e cooperação internacional

O delegado Cledson Silva, da Delegacia de Meio Ambiente da Polícia Federal, responsável pela operação, destacou a complexidade do processo de repatriação de uma obra localizada no exterior. “Foi desafiador porque envolve sistemas jurídicos diferentes. No Brasil, temos nossa legislação, mas, para repatriar uma obra, precisamos da cooperação internacional com instituições estrangeiras. Obtivemos apoio de países como Inglaterra, França, Argentina e Estados Unidos”, explicou.

O delegado, que também atua como representante regional da Interpol no Pará, ressaltou que o êxito da operação só foi possível graças à articulação entre os órgãos brasileiros e estrangeiros.

“A palavra fundamental é cooperação. Sem cooperação internacional, não há repatriação. É preciso usar os canais corretos, respeitar os trâmites jurídicos de cada país. Se isso não for feito adequadamente, o pedido pode ser indeferido. Nesse caso, graças à cooperação, conseguimos trazer a obra de volta”, afirmou.

Para ele, a devolução representa uma vitória não apenas policial, mas cultural. “O Brasil, especialmente a Amazônia, guarda uma relevância mundial inigualável. Obras dessa natureza despertam interesse internacional, mas pertencem ao patrimônio histórico nacional brasileiro. É algo nosso, que não deve estar em nenhum outro país. Recuperar esse tipo de bem é preservar nossa identidade”, destacou Cledson Silva.

Medidas de segurança e preservação

Desde o furto ocorrido em 2008, o Museu Emílio Goeldi implementou uma série de medidas para garantir a proteção do acervo. O diretor Nilson Gabas Júnior explicou que o museu modernizou sua infraestrutura e reforçou os sistemas de controle. “Quando detectamos o furto, iniciamos um processo de reestruturação. Criamos uma sala-cofre com identificação digital, controle de umidade e temperatura, além de vigilância sobre entrada e saída de pessoas. Essa estrutura garante não só a segurança física, mas também a preservação do acervo. Desde então (17 anos), nenhuma obra foi novamente subtraída”, afirmou. O diretor acredita que o investimento em tecnologia e segurança tem sido fundamental para evitar novas perdas.

“As medidas que adotamos lá atrás, em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia, continuam sendo eficazes. O episódio de 2008 serviu de alerta, mas também nos deu a oportunidade de fortalecer a proteção de um acervo que é patrimônio da humanidade”, disse.

Um símbolo de resgate e de memória nacional

Com a devolução de “De India utriusque re naturali et medica”, o Museu Paraense Emílio Goeldi soma três obras raras recuperadas de um total furtado em 2008. Cada retorno representa não apenas o resgate de um bem material, mas o reencontro do Brasil com sua própria história científica e cultural.

O diretor Nilson Gabas encerrou a cerimônia com um sentimento de dever cumprido e esperança. “Esperamos que esse movimento continue e que possamos repatriar mais obras subtraídas. Cada livro recuperado é um pedaço da nossa história que retorna ao lugar de origem. É ciência, é cultura, é soberania. E o nosso compromisso é garantir que esse conhecimento permaneça acessível às próximas gerações”, concluiu.