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Entenda o contexto histórico do conflito entre Rússia e Ucrânia

Veja os meandros da relação entre dois países que já fizeram parte da antiga União Soviética

Eduardo Laviano e Elisa Vaz

Para entender a crise entre a Rússia e a Ucrânia, é preciso olhar para o passado. As duas repúblicas possuem uma longa história, permeada de momentos de guerra e paz, crises e acordos. A soma de todos esses fatores resultou na invasão da Ucrânia por parte da Rússia no dia 24 de fevereiro de 2022. Ao contrário das civilizações americanas, nascidas de processos coloniais por parte de países já estabelecidos, as nações europeias nasceram do conflito entre civilizações distintas ao longo de milhares de anos. Quando os povos eslavos do oriente apareceram no século 6, eles rumaram para o Leste Europeu e por lá se estabeleceram. No século 9, os vikings da denominação Rus avançaram sobre o território que hoje é a Ucrânia, e fundaram a Rússia de Kiev, ou Rússia Kievana, uma confederação com os povos eslavos do leste que tinha como capital a cidade de Kiev. Por isso, desde então, os russos reivindicam Kiev como o berço da "civilização russa". 

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Nas regiões controladas pela Polônia, a aristocracia regional perdeu poder diante de um forte processo de aculturamento, com os ortodoxos rivalizando com o cristianismo. Na região controlada pela Lituânia, que incluía a cidade Kiev, a influência política, as tradições culturais e as elites locais foram mais preservados. A região da Crimeia só volta aos holofotes no século 15, com a ascensão do Império Otomano, que derrubou os bizantinos em Constantinopla e transferiu as costas do Mar Negro e de Azov para os turcos, tornando a Crimeia, portanto, vassala. Entre 1,5 e 3 milhões de ucranianos e russos foram capturados e enviados para os portos da Crimeia entre os séculos 16 e 17. Durante os séculos 17 e 18, as guerras se acentuaram com a chegada dos cossacos, que inclusive reconheciam a soberania de Moscou em relação à Ucrânia.  Ao fim do século 18, a imperatriz Catarina II consolidou a força do Império Russo de vez e expulsou os otomanos da região do Mar Negro e Mar de Azov, dominando todos o sudeste ucraniano.

No século 19, o nacionalismo russo ganhou força, com a ideia de que ucranianos, bielorrussos e poloneses faziam parte de uma só Rússia, cada dia mais moderna e expansionista. O Império Russo chegou a banir textos e livros escritos na língua ucraniana em 1863, proibição que durou até o início do século 20. As profundas diferenças entre russos e ucranianos foram seguidas pela desconfiança dos países centrais europeus em relação a região do Mar Negro, que resultou na Guerra da Crimeia, na qual o Império Russo lutou contra ingleses, franceses, italianos, austríacos e otomanos entre 1853 e 1856, com derrota para a Rússia. O assunto, porém, nunca foi esquecido. Enquanto isso, a Ucrânia vivenciou um forte processo de urbanização e industrialização resultantes da prosperidade econômica garantida pelos portos do Mar Negro. 

Revolução russa

A revolução russa trouxe para a mesa a concepção de que a Ucrânia era indissociável da Rússia e precisaria aderir à revolução, o que dividiu os ucranianos. Para os bolcheviques, a opressão czarista sobre o país era mais forte por se tratar de uma república proletária e sem autonomia, mas eles também defendiam que somente o povo ucraniano poderia decidir o próprio destino. Lênin chegou a acusar alguns ucranianos de serem separatistas em 1913, mas depois defendeu a importância de discutir o futuro da região com eles, após aproximações bem sucedidas com partidos locais. "Os trabalhadores com consciência de classe não advogam pela secessão. Eles sabem das vantagens dos grandes estados e da amálgama de amplas massas de trabalhadores. Mas grandes estados só podem ser democráticos se houver completa igualdade entre as nações; isso implica o direito à secessão. A luta contra a opressão nacional e os privilégios nacionais é inseparável da defesa desse direito”, escreveu o líder da revolução em 1914. Hoje, Putin rechaça a ideia de que a Ucrânia já tenha sido ou possa ser uma nação soberana independente. 

 

 

image Legenda (Alynne Cid / Infografia / O Liberal)Mesmo criticado por alguns, Lênin sustentou a decisão de conceder a autodeterminação às nacionalidades de cada país e, em 10 de março de 1919, o 3° Congresso dos Sovietes da Ucrânia mudou o nome da República Soviética do Povo Ucraniano, com a capital em Khirkiv, para República Socialista Soviética da Ucrânia, que se tornou um Estado independente. Já a República Popular Ocidental da Ucrânia, anti-Rússia, ficou sob domínio da Polônia, até que o Exército Vermelho invadiu Kiev em 1920. A Polônia reconheceu a soberania da Rússia sobre o território, que englobava cidades importantes da Ucrânia, como, Donetsk, Luhansk, Dnepropetrovsk e Odessa, região onde grande parte dos habitantes era russa - e assim permaneceu até hoje. Sob comando de Lênin, porém, o regime soviético também proibiu o ensino da língua ucraniana nas escolas e esmagou a cultura do país, o que aprofundou a rivalidade com o oeste do país.

Foi sob o controle da União Soviética que ocorreu o Holodomor, hoje considerado um genocídio contra a população da Ucrânia liderado por Josef Stalin, que entre 1931 e 1933 dificultou a entrada de alimentos básicos no território ucraniano provocando a morte de aproximadamente entre três e cinco milhões de pessoas, após resistência da Ucrânia em relação a medidas econômicas sancionadas por Moscou. 

Grandes guerras

Assim como na Primeira, os alemães, cientes das diferenças entre os povos, se aproveitaram do nacionalismo ucraniano na Segunda Guerra Mundial. Sempre houve um temor da parte de Moscou de que a Ucrânia se uniria ao Ocidente para garantir a independência do domínio soviético. Estima-se que mais de mil grupos foram formados no período das guerras com o objetivo de tornar a Ucrânia independente e que pelo menos 100 mil ucranianos lutaram ao lado dos nazistas, como milícias treinadas pelo III Reich de Adolf Hitler, não só para a guerra, mas também em aulas de governança sobre como administrar o futuro país que surgiria após a vitória da Alemanha, o que não ocorreu a fim da guerra, em 1945. No discurso que anunciou a invasão russa nesta semana, Putin evocou o medo inerente ao período e falou que a operação teria como objetivo "desnazificar" a Ucrânia, referindo-se aos grupos neonazistas que lutam contra os separatistas russos no leste do país, já publicamente rechaçados pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelesnky, que é judeu, em diversas ocasiões.

Em 1954, Nikita Khrushchev, então primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética, decidiu que a Crimeia não seria mais parte da Rússia e se transformaria em território ucraniano. Como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) era uma só e inteiramente controlada por Moscou, naquele momento aquilo não fez diferença nenhuma. A população era de maioria russa e era lá que as frotas soviéticas ficavam estacionadas. Mas em 1991, a União Soviética se dissolveu. Foi a partir dessa época que a população da Crimeia começou a se dividir entre quem era a favor da Rússia, por relações ancestrais com o país, e entre quem se reconhece como ucraniano e reivindicava autonomia.

O professor titular de direito internacional da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) no Rio de Janeiro, Adherbal Meira Mattos, afirma que as tensões entre os dois países remontam desde esse período. “O fim da URSS fez ele [Putin, o presidente russo] querer restaurar isso hoje. Ele não admite ter países independentes. Trata-se de uma invasão de um país soberano em cima de outro país soberano, uma invasão militar que pode levar a uma guerra cibernética. Putin tomou uma medida muito drástica, teve uma preparação muito violenta, levando em conta o atual enfraquecimento da Europa”, avalia Adherbal.

A Otan e o avanço pelo leste

Após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, houve uma divisão. O campo ocidental, composto pelos Estados Unidos e potências europeias, herdou o lado ocidental da Europa, enquanto a União Soviética ficou com a parte oriental, divisão reforçada pelo Muro de Berlim, na capital da Alemanha.

Pouco tempo depois, em 1949, foi criada a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), como forma de consolidar a união por parte dos EUA e aliados europeus. A resposta dos soviéticos foi fundar o Pacto de Varsóvia, que atuava na mesma linha, em frente oposta. O professor de direito internacional Adherbal Meira Mattos põe de forma mais simples: a Otan surgiu para acabar com o comunismo na Europa, e o Pacto para acabar com o “americanismo”, ou seja, a influência dos EUA e aliados no continente. Quando a União Soviética ruiu, em 1991, o Pacto de Varsóvia também se dissolveu, mas a Otan continuou existindo e incorporou, nos anos seguintes, países que antes eram aliados aos soviéticos. O grande entrave para a invasão de hoje, segundo Adherbal, foi a indicação de que a Ucrânia poderia entrar na Otan. Considerado “hostil” pelos russos, esse movimento de expansão da Organização em direção ao leste da Europa é um dos fatores que mais movimentaram a Rússia em direção a um ataque. Em dezembro do ano passado, Putin já ameaçava um confronto caso as conversas não parassem. Segundo especialistas, isso deixaria o país encurralado geopoliticamente.

Embora o combate tenha escalado de forma muito rápida, as ações da Rússia pelo território da Ucrânia já duram quase uma década. O professor de direito internacional explica que o planejamento foi longo, mas a ocupação como comando foi rápida, porque foi objeto do resultado desse planejamento. Segundo ele, o ataque que ocorre hoje está longe de ser a melhor forma de lidar com a disputa – isso deveria ser feito diplomaticamente, por meio ONU, em sua Assembleia Geral, órgão que trata da diplomacia, onde deveria ter sido colocado um veto.

Para Mayane Bento, apesar dos ímpetos imperialistas, a Rússia mesmo sendo uma potência nuclear não poderia se tornar soberana globalmente por falta de recursos econômicos. Para ela, só o tempo dirá se Putin apenas reagiu aos avanços da Otan ou se, de fato, deu início a ambições maiores no território europeu. "A Rússia não tinha capacidade de reagir a qualquer movimento da Otan, mas isso mudou com a chegada de Putin, que primeiro reorganizou o campo doméstico e agora ultrapassa as fronteiras do país. E as previsões não são otimistas. Quando a gente olha a ucrânia, que existe a discussão sobre Kiev ser anterior a própria Russia, a disputa pelo Mar Negro, que remonta ao século 15, com muitas demandas significativas vinculadas a Rússia. Essa discussão é de longa data realmente. Existe uma violação do direito básico à integridade territorial, mas o argumento do Putin é que isso foi feito no Iraque, na Líbia, na Síria. A Ucrânia tem pouca oportunidade de manobra. Não pode se render, pois é sinal de fraqueza. Não pode responder a altura, pois em 1994 o Memorando de Budapeste desativou o arsenal nuclear em prol da Rússia. Não pode dialogar com o Ocidente, pois isso foi o estopim de tudo. E não acredito na entrada da Otan por enquanto", diz. 

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