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De Nazaré a Belém, via Portugal, fé une séculos em torno de um nome: Maria

Devoção mariana: as origens

Daniel Nardin, Anna Carla Ribeiro e Sérgio Chêne

A devoção a Nossa Senhora de Nazaré encontrou na Amazônia sua maior expressão, traduzida no Círio de Nazaré, um dos maiores eventos populares católicos do mundo, que reúne cerca de dois milhões de pessoas nas ruas de Belém, a capital do Pará, no segundo domingo de outubro. Por conta da pandemia, as procissões e homenagens à “Rainha da Amazônia” terão novamente restrições em 2021. Mas isso não refreia esses devotos católicos. Muitos não deixam de ir às ruas, e manifestar essa fé, ao seu modo, mesmo com suspensão de romarias oficiais, em 2020, num dos piores cenários da covid-19 no Brasil. Eles seguem renovando sua crença em Maria, mãe de Jesus. No Pará, as manifestações religiosas marianas - aquelas que têm Maria, mãe de Jesus, como centro da devoção - somam mais de três séculos de história.

Ouça o comentário desta reportagem em inglês:


Popularizada no coração da Amazônia, com peculiaridades muito próprias, a tradição em torno dos milagres atribuídos a Nossa Senhora tem em sua origem fortes laços lusitanos, resultado da colonização portuguesa na região. E indo mais profundamente na história, seguindo os passos da devoção, é possível chegar a Nazaré, a cidade onde Maria e José viveram com Jesus em parte da sua infância e juventude, na baixa Galileia. Como conta a tradição, foi lá que iniciou a longa história de fé que se renova a cada ano, a cada oração, a cada lágrima de um promesseiro ou peregrino devoto de Maria. 

Diz o Livro do profeta Isaías (11:1): "Brotará um rebento do tronco de Jessé e das suas raízes um renovo frutificará". A escritura faz menção, de acordo com a crença cristã, a Jesus, que tem na sua árvore genealógica o rei Davi, filho de Jessé. Pela sua origem, da “Casa de Davi”, José teve de ir a Belém, próxima a Jerusalém, para o recenseamento do Império Romano. Lá, Jesus nasceu. O rei judeu da época, Herodes, determinou então a matança de crianças, temendo o nascimento anunciado de um novo rei. José e Maria, agora com o menino Jesus, partem então em fuga ao Egito. E só retornam anos depois, diretamente para Nazaré. 

A pequena vila nos tempos de Jesus transformou-se numa das maiores da região que integra Israel. Com 80 mil habitantes - hoje a cidade da Galileia tem no turismo religioso e histórico uma grande fonte econômica. Nazaré é conhecida como um dos pontos de partida para outras cidades bíblicas próximas. 

Nazaré, Galileia: a imagem esculpida pelo próprio José

Imagem de madeira teria viajado continentes e hoje estaria em Portugal, onde cresceu a tradição da devoção por Maria

Em Nazaré, a Basílica da Anunciação se destaca. A construção atual é de 1969, mas a igreja foi erguida e destruída diversas vezes, tendo os primeiros registros do local como santuário ainda no século IV, pelo imperador Constantino, conhecido por ter se convertido e propagado o cristianismo pelo império romano. 

As ruínas de uma humilde casa de mais de dois mil anos é o ponto principal de visitação da Basílica. Foi neste local que o Arcanjo Gabriel teria visitado Maria, para fazer a “Anunciação” de que ela conceberia um filho, Jesus. A casa, portanto, seria o local onde Maria cresceu e viveu. A igreja possui dois grandes pavimentos. Num jardim externo, há uma bela imagem da Virgem Maria, que parece estender as mãos para cumprimentar – e abençoar – os peregrinos. O complexo possui ainda um centro arqueológico. Próximo dali, é possível acessar a igreja simples de São José, erguida no local onde teria funcionado sua carpintaria. 

Esse pode ter sido o local onde foi feita a primeira representação de Maria, esculpida em madeira. Conta a tradição oral – com um único registro, sem comprovação, feito por Frei Bernardo de Brito, no Livro da Monarquia Portuguesa – que José teria retratado Maria em uma imagem, onde a Virgem amamentava seu filho, Jesus. 

Conforme estudos e documentos históricos, a pequena imagem de madeira permaneceu na Galileia até que, por conta da perseguição a símbolos cristãos na região, foi guardada e levada para a Europa, por nomes conhecidos do catolicismo, como São Jerônimo e Santo Agostinho, rumo à Espanha e Portugal. 

A professora Ida Hamoy, do curso de Museologia da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA), e também do programa de Pós-Graduação em Ciências do Patrimônio Cultural, destaca que é improvável que a imagem tenha sido realmente feita por José, pois suas características artísticas remontam ao século XI e XII. 

Porém, a pesquisadora ressalta que a forte tradição oral não pode ser completamente menosprezada. "Em verdade, se pensarmos racionalmente que o esposo de Maria, José, era judeu e cumpridor de obrigações judaicas, dificilmente ele teria esculpido uma imagem de Maria como santa, considerando as proibições de esculpir imagens prescritas na Torah (a escritura sagrada para os hebreus)”, destacou Ida em tese, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “No entanto, nada desabona o fato dele esculpir uma imagem de sua esposa, manuseando em seu cotidiano a madeira como matéria prima de seu ofício de carpinteiro, como memória afetiva e ela se tornar imagem de referência ao culto subsequente". 

A imagem, inicialmente escondida e depois encontrada em Portugal, deu início a uma nova fase de devoção a Nossa Senhora de Nazaré - que permanece em Nazaré, em Israel, e se espalhou pelo mundo, sendo mais expressiva em Portugal e no Brasil, especialmente Belém, com o Círio de Nazaré.

Nazaré, Portugal: relíquias, milagres e os primórdios das romarias

Nazaré, em Portugal, não possui esse nome à toa. Na pequena vila, hoje mais famosa pelas ondas gigantes de até 30 metros de altura, uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré ficou escondida por 468 anos. Segundo a história local, quem a trouxe a terras portuguesas, da cidade espanhola de Mérida, no ano de 714, foi o monge Frei Romano. Ele fugia das batalhas entre cristãos e muçulmanos, na companhia de Dom Rodrigo, o último rei visigodo da região, após a derrota dos exércitos cristãos na “Batalha de Guadalete”.

Diz a tradição da vila que a imagem ficou primeiramente guardada em uma gruta, junto a uma falésia, acima da praia onde Frei Romano viveu como eremita e foi sepultado. A imagem foi encontrada por pastores próximo ao local onde acabou sendo construído o Santuário na vila de Nazaré, em 1.179.

O mistério da imagem não para por aí. O segundo local reservado a Nossa Senhora na região, à beira da falésia, sobre a gruta onde ela passou séculos escondida, foi construído após o milagre conhecido como a “Lenda de Nazaré”. No dia 14 de setembro de 1182, Dom Fuas Roupinho, alcaide (espécie de administrador local) do castelo de Porto de Mós, caçava junto ao litoral, num denso nevoeiro. A cavalo, ele perseguia um veado. Quando se deu conta, estava à beira de um precipício: era o mesmo local da gruta onde se encontrava a imagem da Virgem Maria. Dom Fuas rogou, então, em voz alta: “Senhora, Valei-me!”. Foi quando o cavalo parou bruscamente, fincando as patas na rocha, salvando-o da morte. Até hoje é possível visitar a beira de precipício dessa história. E alguns dizem que quem olha atentamente pode ver a marca da pata do cavalo, na rocha.  

Em gratidão, Dom Fuas Roupinho construiu a Capela da Memória, onde a imagem – que passou a ser venerada pela população portuguesa – ficou guardada, de 1182 a 1377. Entre os que reverenciaram a imagem estão personagens icônicos da história portuguesa, como o navegador Vasco da Gama: antes da sua viagem à Índia, ele foi ao local rezar e pedir proteção.

Hoje a imagem de madeira encontra-se no Santuário de Nossa Senhora da Nazaré (sim, em Portugal é falada a preposição “da” para se referir à Virgem Maria), fundado em 1377. A escultura guardada em Nazaré atualmente é apresentada com um manto. O item foi incorporado após o Concílio de Trento, no século XVI – entre 1545 e 1563, quando o Período Tridentino criou regras para a iconografia mariana na Igreja Católica.

A fé em Maria contra mares bravios

Isabel Matias nasceu em Nazaré e há seis anos vende castanhas nas proximidades do Santuário. Ela acompanha de perto a peregrinação dos romeiros. “Quando é data das festas do Sítio de Nazaré, vem cá muita gente, porque muita gente tem fé em Nossa Senhora, há muitos anos”, justifica. “Nossa Senhora de Nazaré era a que fazia os milagres quando os homens iam para as tropas ou para o mar. Mulheres se reuniam a rezar para ela, para que trouxesse maridos de volta, e aí aconteciam os milagres. Antigamente, era muito complicado navegar no mar daqui. Muita gente lá ficava. Também tenho muita fé nela. Muitas vezes também fui atendida em preces”.   

Em uma breve visita ao interior do Santuário, localizado à frente da Capela da Memória, é possível identificar afinidades entre o Círio de Nazaré, de Belém do Pará, e as romarias de Nazaré de Portugal, que ocorrem em 8 de setembro. Os objetos de cera, tão comuns aos promesseiros do Círio de Nazaré no Brasil, são heranças portuguesas. No Santuário, há diversos deles em exposição, como representações de partes do corpo humano, casas e barcos.

Se não bastasse, na mesma prateleira onde estão alguns desses artefatos, encontra-se um pequeno prato desenhado em arte marajoara, com réplica da imagem do Círio de Nazaré - prova de que tudo o que envolve Nossa Senhora de Nazaré se interliga. A fé transpõe barreiras e ignora definições geográficas. 

Belém, Pará: a popularização da fé em Nossa Senhora de Nazaré

O designer de interiores Paulo Eduardo de Nazaré, 41, mora no bairro de Nazaré, às proximidades da Praça Santuário, em Belém. Membro da comunidade Cristo Alegria, o jovem muda a rotina com a chegada do Círio de Nazaré - quando a série de eventos, romarias e procissões que há 229 anos tomam a capital. 

“Temos uma tradição grande dentro de casa. De família, do bairro que a gente vive, de mãe e de pai. A preparação em casa começa sempre antes e acompanha a preparação da paróquia, as peregrinações, tudo que envolve o Círio. Começamos a escutar músicas católicas desde setembro”, conta Paulo. 

Assim o designer se soma aos milhões de devotos de Nossa Senhora de Nazaré ao redor do mundo - numa relação que, em Belém, se expressa por um carinho desmedido pela imagem da santa que soma 300 anos de história. Foi em 1.700 que o caboclo Plácido José de Souza encontrou uma estatueta de Nossa Senhora de Nazaré às margens do pequeno curso de água do Murucutu. À época, a devoção à Virgem de Nazaré já estava bastante difundida pelo Brasil, especialmente entre colonizadores portugueses.

De acordo com a pesquisadora Ida Hamoy, a mais antiga imagem de Nossa Senhora de Nazaré foi catalogada por Frei Agostinho de Santa Maria (1642-1728), na Bahia. Ela teria sido trazida ao Brasil pelo governador geral do Brasil, Tomé de Souza (1503-1579). Assim, nos primeiros séculos do Brasil a tradição da devoção a Nossa Senhora de Nazaré já era uma prática. Mas, foi na Amazônia, com o achado de Plácido e os milagres relatados, que se popularizou. 

Conforme conta a história, Plácido levou a imagem para casa e, repetidas vezes, ela sumia e era encontrada no mesmo local onde foi achada. Nas proximidades então foi erguida uma pequena ermida, onde hoje está a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré. 

Diante do crescimento da crença popular e dos relatos dos milagres atribuídos à Nossa Senhora de Nazaré, assim foi realizado, em 1793, o primeiro Círio de Nazaré - que só cresceu em número, histórias e símbolos, como a berlinda, a corda, o carro dos milagres, entre outros. 

Uma tradição que segue em transformação, a cada ano, acalentando corações de devotos não só da Amazônia, mas em várias cidades de todo o mundo que abrigam paraenses e famílias que guardam laços afetivos com a região e as suas expressões de fé.  

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