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Amazônia: potência das artes visuais e literatura

Seja como fonte de inspiração, seja como referente para transversalidades criativas, região exige expressões aptas a se desdobrarem frente a desafios de decolonialidades. E o reconhecimento vem da pluralidade de linguagens

Enize Vidigal e Lucas Costa

LIBERAL AMAZON

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A Amazônia é fonte de inspiração e referencial para linguagens artísticas várias - seja pela paisagem exuberante de floresta densa, rios caudalosos e sua biodiversidade, seja pela rica cultura popular e suas várias confluências, incluindo a gastronomia, a música, a dança, os costumes e as tradições.

No entanto, ainda que a Amazônia seja centro de atenção mundial pelo contexto ambiental, o mesmo não é expresso, necessariamente, na valorização da sua arte – embora muitos nomes da literatura e das artes visuais ligados à região tenham ganhado destaque cada vez maior nos últimos anos, e imposto respeito no cenário brasileiro e mundial.


Ouça o comentário desta reportagem em inglês:


Historicamente, a Amazônia é um lugar diferente do Brasil. Não é à toa que, até a metade do século XVIII, nós tínhamos o estado do Brasil e o estado do Grão-Pará e do Maranhão. Isso faz parte de um projeto político de integração que de fato nunca ocorreu”, aponta o historiador e fotógrafo Michel Pinho, mestre em Comunicação, Cultura e Linguagens. “Do ponto de vista artístico, temos o reconhecimento do eixo Sul e Sudeste (do Brasil) e somos vistos quase como estrangeiros aqui na Amazônia”, pondera Pinho.

O historiador lembra que, a partir do século XIX, mudanças de cenário refletiram-se em uma maior capacidade de comunicação de autores e artistas da região sobre o que produziam. “É interessante observar pessoas que rompem essa barreira, como os autores Inglês de Sousa (1853-1918), Dalcídio Jurandir (1909-1979) e mais recentemente Edyr Augusto Proença, o fotógrafo Luiz Braga e os artistas visuais Emannuel Nassar e Luciana Magno, que, de alguma maneira, falam sobre a história da Amazônia, sobre o olhar local, mas que representam anseios e desejos que são mais globais. Isso é muito interessante porque, do ponto de vista político e artístico, garantem um lugar de fala importante sobre a região em outros lugares”.

(Luiz Braga)

Ainda assim, pondera o escritor e poeta Paulo Nunes, professor-pesquisador da Universidade da Amazônia (Unama) e doutor em Letras, o preconceito frente à produção literária da Amazônia, uma expressão das "diversas formas de colonialidades" exercidas sobre seu território, fez da região uma ilha. “A Amazônia é tratada de modo exótico, ou como produto de consumo dos interesses do capital nacional e internacional. Por exemplo, a literatura produzida na grande região Norte do Brasil, acredito, é menosprezada, desconhecida do leitor médio brasileiro. E se levarmos isso ao campo global, a questão fica ainda mais diluída e pulverizada”.

Nunes reflete sobre autores da Amazônia que obtiveram projeção internacional. Ele lembra que Dalcídio Jurandir teve publicação em russo na metade do século XX e ‘Belém do Grão-Pará’, do próprio autor marajoara, teve duas edições portuguesas. Já Benedicto Monteiro (1924-2008) é estudado na Alemanha, assim como Dalcídio. “Milton Hatoum tem livros publicados em vários idiomas e dialetos. Vicente Franz Cecim furou o bloqueio e é conhecido em Portugal. Age de Carvalho é conhecido fora dos países de língua portuguesa. Antônio Moura talvez seja nosso poeta contemporâneo mais conhecido na Europa. Max Martins teve seus textos vertidos para o inglês. O mais badalado autor paraense, creio, é Edyr Augusto Proença, muito lido em língua francesa. Mas, no geral, não nos iludamos, a literatura aqui produzida está fora do cânone ocidental (artes clássicas, sobretudo europeias) e brasileiro”.

(Luiz Braga)

Potências criativas driblam colonialidades

O preconceito frente à produção artística da Amazônia, ressalta Paulo Nunes, é encarado como uma barreira a ser superada. Na literatura, pondera o estudioso, os autores apostam em publicações independentes, editoras alternativas, plataformas online, leis de incentivo, feiras e encontros literários. Inclusive, Paulo Nunes destaca o importante papel dos “slans” (batalhas de poesia) realizados nas periferias de cidades como Belém, que estimulam a produção e a difusão artística, especialmente entre os jovens.

Nunes lembra que, nesse embate por reconhecimento, é preciso abandonar até falsos dilemas e ideários, como o que diz que a literatura amazônica precisa necessariamente refletir a própria Amazônia para ter reconhecimento fora da região. Ele avalia que essa abordagem também é uma “forma de tradição colonial”, que “se perpetua até hoje” e que cria expectativa em relação aos autores amazônidas, até o leitor se surpreender com obras recentes, como 'Pssica', de Edyr Augusto, e 'Pedral do Inferno', de Salomão Larêdo, ou a poesia de Giselle Ribeiro e de Shaira Mana Josy. “Até ele se questionar: 'Mas esse pessoal escreve na Amazônia? A Amazônia tem disso?”, pondera Nunes.

“Emmanuel Nassar, Dalcídio Jurandir, Luciana Magno e Edyr Augusto têm como pano de fundo uma Amazônia, mas que mostra uma realidade muito brasileira. Isso é muito importante para mostrar que essa fala é de um lugar. Nós temos um lugar na história desse país para fazer acontecer um Brasil diferente, um Brasil plural”, assevera Michel Pinho.

Michel Pinho é historiador (Márcio Nagano / O Liberal)

Para além da abordagem do tema Amazônia, ganha evidência, atualmente, a legítima representatividade dos chamados "povos originários" no mundo das artes. É o caso de Daniel Munduruku, escritor indígena, que é um dos finalistas, este ano, do Prêmio Jabuti, a maior premiação literária nacional, concedida pela Câmara Brasileira do Livro. “Ter uma representação dos povos originários da Amazônia tomando lugar de destaque é sensacional. É um modelo de produção artística inovador que veio pra ficar”, comemora Pinho. 

As vozes indígenas sempre foram abafadas (...) Daniel Munduruku e Ailton Krenak são os maiores exemplos, mas vejo com muita satisfação a literatura da Márcia Waina Kambeba. A literatura destes povos, digamos, nativos, é um grande movimento questionador do cânone ocidental, trazendo novas formas estéticas de representação, para além das colonialidades”, avalia Nunes.

Invisibilizados, escritores da Amazônia querem vencer barreiras 

“Enfrentamos dificuldades locais e também nacionais. Parece que tem uma espécie de muro entre nós, do Norte, e o Sul e Sudeste [do Brasil], onde está a grande mídia”, desabafa o escritor paraense Edyr Augusto, que foi “descoberto” pela imprensa e pelas feiras literárias da região sudeste, após conquistar o Prêmio Caméleon de melhor livro estrangeiro na França, com “Os éguas”, em 2015. Contratado por uma editora nacional, ele tem obras publicadas na França e na Inglaterra. “Eu furei uma bolha”, diz Edyr.

Edyr Augusto é escritor (João Ramos / O Liberal)

“Os franceses dizem que eu quebro o cristal de uma Amazônia hedonista, de sonhos, e mostro que temos os mesmos problemas que eles têm nas grandes cidades. Falo da maior floresta tropical do mundo, que tem uma floresta de concreto com 2 milhões de habitantes, que é Belém. Eu escrevo sobre a perplexidade desse contraste. Os meus livros têm tudo o que os outros livros têm, o que os torna diferentes é a maneira de escrever e de colocar a Amazônia”.

“É como se nós não existíssemos para o resto do Brasil, especialmente para o eixo Rio-São Paulo, ou simplesmente, nos veem de uma forma cristalizada, folclorizada”, diz a escritora paraense Monique Malcher, que emplacou o livro “Flor de Gume” entre os finalistas do Prêmio Jabuti, na categoria conto, este ano. Ela revela a felicidade de ter alcançado essa posição.  “A gente é visto com um olhar de um Brasil que não conhece o Brasil”.

Nos últimos tempos, a escritora circulou por clubes de leitura, que ajudaram a divulgar o trabalho dela. Atualmente, almeja que a vitrine proporcionada pelo prêmio evidencie também outras mulheres escritoras da Amazônia. “Há 50 anos, quem vencia o Prêmio Jabuti era Olga Savary (1933-2020). Precisamos falar das que já se foram, mas continuam através da palavra, e precisamos incentivar mais mulheres amazônidas a ocuparem esses espaços”.

(Michel Pinho)

O professor e escritor manauara Milton Hatoum, sem dúvida, é uma referência da literatura da atualidade nacional e internacional, vencedor de vários prêmios, sem, necessariamente, escrever sobre os temas da Amazônia. Ele obteve três prêmios Jabuti na categoria romance: em 1989, venceu com "Relato de um certo Oriente"; em 2000, ficou em 3º lugar com "Dois Irmãos"; e em 2006, venceu com "Cinzas do Norte". 

Já o jornalista e escritor paraense Salomão Larêdo, mestre em Teoria Literária e vencedor de prêmios, "seduz" os leitores com temas amazônicos. Ele cresceu às margens do rio Tocantins, na floresta amazônica, na cidade de Cametá, no Pará. Em seus livros, investe no enredo usando linguagem simples do povo da região. “Trato de temas da minha gente, e isso, naturalmente, se amplia para o Brasil e para o mundo, tornando-se, pelos temas abordados, assunto de interesse universal, porque cuida da natureza humana”.

Laredo diz que a experiência de sua longa carreira literária o levou a reconhecer que não é fácil ser escritor da Amazônia. "Nossa cultura é desvalorizada. A literatura que fazemos, desconhecida. Há muito vivemos esses dilemas estéticos, culturais e políticos, traços da sociedade brasileira, e não podemos mais aceitar passivamente esse inexistir como escritores". 

Quem produz literatura na Amazônia, necessariamente, tem que possuir outra atividade laborativa" - Ivanildo Alves, presidente da Academia Paraense de Letras.

Ele acredita que, um dia, os autores da Amazônia serão sujeitos da literatura brasileira. Laredo observa que hoje esses escritores "gastam mais do que arrecadam escrevendo, editando e publicando seus livros", mas "continuam a escrever, sempre acreditando que amanhã haverá gente interessada em ler o que produzem, apesar desse apagão educacional e cultural em que vivemos atualmente".

O presidente da Academia Paraense de Letras (APL), professor e advogado Ivanildo Alves, confirma: os autores paraenses não conseguem viver dessa arte-profissão. E observa que os incentivos públicos à literatura, apesar de importantes, são insuficientes. "Os livros, que abordam a nossa vida amazônica, a despeito da excelente qualidade, suas edições, regra geral, são produzidas pelos próprios autores. Quem produz literatura na Amazônia, necessariamente, tem que possuir outra atividade laborativa”.

A floresta que pulsa nas artes visuais

Da grande floresta cortada por rios, até as paisagem urbanas ou das comunidades ribeirinhas, a Amazônia é um prato cheio para artistas visuais, seja no que diz respeito ao registro, seja no que toca a região como referência. O trabalho do fotógrafo Miguel Chikaoka é um exemplo da potência visual da Amazônia. Para além dos cenários, a vivência no território influencia o olhar dos profissionais que passam por aqui.

Miguel Chikaoka é fotógrafo (Márcio Nagano / O Liberal)

Da experiência que começou no fotojornalismo, no início da década de 1980, Chikaoka enveredou pelo papel educador, o que resultou na criação de uma instituição que até hoje forma novos fotógrafos paraenses: a Associação Fotoativa.

Chikaoka lembra que esse outro ponto de partida temporal da fotografia na Amazônia tem ligação ainda com um movimento nacional, a criação do Instituto Nacional de Fotografia, que promoveu um evento itinerante pelo Brasil. Além disso, também destaca iniciativas como o salão Arte Pará, que, num movimento de incluir em seu corpo de jurados nomes reconhecidos internacionalmente no ramo da curadoria de artes, fez com que a movimentação das artes visuais na Amazônia tivesse uma abrangência para além das fronteiras.

(Miguel Chikaoka)

“Acho que tem uma coisa plural, de reunir pessoas de diferentes referências de formação profissional, no campo das artes e outros campos como historiadores, engenheiros, arquitetos”, pondera Chikaoka, destacando ainda o importante papel dos coletivos artísticos da Amazônia. Essa troca de experiências e práticas resulta em diversos olhares de identidade única, que passaram a abordar temas a partir das múltiplas vivências que atravessam a populações da Amazônia.

Um desses coletivos inicia uma nova fase em busca dessa linguagem, com performance, fotografia e artes plásticas no geral, é o ‘Noite Suja’, um grupo de artistas que se utiliza da "montação" drag. Rafael Bqueer, representante deste movimento, trabalha atualmente na produção de um documentário sobre a história do grupo, desenvolvido com o prêmio de um edital do Instituto Moreira Salles.

(Rafael Bqueer é artista visual (Caio Lirio)Chikaoka)

Representante também da nova leva de artistas que mostra ao mundo a cara da arte contemporânea amazônica, Rafael tem trabalhos atualmente no Arte Pará 2021 e traz no currículo exposições nacionais e internacionais, como a coletiva “Against, Again: Art Under Attack in Brazil”, na Anya & Andrew Shiva Gallery, em Nova York (2020); além da individual “UóHol”, no Museu de Arte do Rio (2020).

Com formação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Rafael defende a importância de demarcar esse território em seu trabalho. “A UFPA tem professores engajados em causas sociais e políticas que nos fazem perceber o território amazônico para além das perspectivas coloniais”, diz, destacando o papel da professora Zélia Amador de Deus em seu processo de entendimento como pessoa preta da Amazônia.

Atualmente Rafael reside em São Paulo. “A circulação institucional no sudeste tem cada vez mais me apresentado onde me encontro, de fato, como pessoa de identidade amazônica. Não só na perspectiva racial, mas no outro eixo que trabalho muito na minha pesquisa, que são as questões de gênero e sexualidade”.

"Alice e o chá através do espelho" - Foto Performance de Rafael Bqueer

Pelas janelas do cinema 

Além da fotografia e de outras frentes nas artes visuais, a Amazônia também se expressa no cinema. “Iracema - Uma Transa Amazônica”, filme de Jorge Bodanzky, de 1975, mostrou ao mundo uma espécie de autorretrato da população da rodovia Transamazônica - a estrada de 5,6 mil quilômetros que corta a floresta e completará 50 anos em 2022. Atualmente, Bodanzky é homenageado com uma exposição em Belém, na Galeria Ruy Meira, na Casa das Artes.

“Bodanzky: notas de um Brasil profundo” usa o olhar do cineasta para revelar que pouca coisa mudou ao longo das últimas décadas na região. Premiado internacionalmente, Bodanzky avalia a importância de os brasileiros conhecerem a Amazônia. “É diferente”, diz sobre a forma como o país conhece a Amazônia hoje em relação ao período em que “Iracema - Uma Transa Amazônica” foi lançado. “Naquela época se conhecia muito pouco, praticamente não se viajava para o interior do Brasil, hoje se viaja, mas para resorts turísticos. Então, isso também não traz conhecimento”, assevera.

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