Amazônia convive com desafio particular: desenvolver o espaço e a qualidade de vida de seus povos

Políticos, estudiosos e membros do governo avaliam o cenário socioeconômico da região

Dilson Pimentel e João Paulo Jussara / O Liberal

A exuberância das riquezas naturais da Amazônia contrasta com os graves e históricos problemas sociais e ambientais da região. O bioma amazônico possui área de quase sete milhões de quilômetros quadrados, distribuídos nos territórios de nove países da América do Sul: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana Francesa, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela. A maior parte, cerca de 60%, está em território brasileiro. O Dia da Amazônia (5 de setembro) relembra o desafio histórico da região: conciliar o desenvolvimento com garantias de riqueza e melhoria de qualidade de vida a suas populações. 

Ouça o comentário desta reportagem em inglês:

No Brasil, foi instituído ainda em 1953 o conceito de Amazônia Legal, como forma de planejar o desenvolvimento social e econômico da região. A Amazônia Legal brasileira cobre 59% do território nacional, abrangendo os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão: são 5 milhões de quilômetros quadrados, que em 2020 já abrigavam 28,1 milhões de habitantes - 13% de toda a população nacional, apesar da baixa densidade demográfica, de 5,6 habitantes por quilômetro quadrado. Dados do Ipea resumem o desafio: os nove estados que compõem a região amazônica têm Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) abaixo dos 0,750, número inferior ao IDHM do restante do Brasil, que é de 0,778. 

 

O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, já afirmou que o progresso do País passa, diretamente, pelo desenvolvimento da Amazônia. "E desenvolver, no século 21, tem que ser planejado e consolidado dentro da visão de sustentabilidade, de preservação efetiva do meio ambiente, do uso dos produtos da floresta e, obviamente, em entender que a Amazônia, apesar da vastidão do seu território, jamais terá uma ocupação enorme, como ocorre no Centro-Sul do Brasil”, disse Mourão, em entrevista exclusiva ao Grupo Liberal, publicada em 13 de junho deste ano. “A partir do momento em que se entende essas diferenças, temos que buscar soluções. E essas soluções têm que ser contínuas", afirmou ele, que preside o Conselho Nacional da Amazônia Legal - cuja missão é proteger, preservar e, principalmente, desenvolver a região.

Assista à entrevista completa abaixo!

"O maior desafio da Amazônia é superar um modelo de desenvolvimento historicamente imposto de fora para dentro, baseado em fazer a região funcionar como um grande almoxarifado do desenvolvimento nacional e internacional, um fornecedor de matérias-primas, energia e via de passagem para o crescimento econômico e social do País", avalia o Secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, Mauro O’ de Almeida.

O’ de Almeida ressalta: a Amazônia, e especialmente o Pará, sofrem com uma grande contradição: "O Pará é historicamente um estado superavitário, isto é, gera mais receitas do que despesas ao País, e colabora decisivamente com sua balança comercial. Por outro lado, enfrenta uma estatística cruel: dos mais de 5.500 municípios de todo o Brasil, o Pará, sozinho, tem 8 entre os 22 municípios com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do País", ressalta o secretário, lembrando que 44% da população paraense vive abaixo da linha da pobreza. 

image (Tarso Sarraf / O Liberal)

"Isto nos mostra que, para que a região reverta o quadro de profunda desigualdade, a questão ambiental apenas logrará efetivo êxito se houver uma atenção sistematizada para o cuidado às 26 milhões de pessoas que vivem na Amazônia, 9 milhões delas no Pará. Programas de assistência imediata que o governo do Pará como o Renda Pará, têm estabelecido transferência de renda, assistência à melhoria da qualidade de moradias e estímulo à produção rural a famílias economicamente vulneráveis, mas ainda não resolvem o problema. Na sua escala mais alta, o desafio esbarra no modo como o Brasil enxerga a Amazônia, a começar do Pacto Federativo”, avalia.

"Nossa região é estratégica em inúmeros aspectos (...) Se a nossa Amazônia Legal fosse um país, seríamos o sexto maior do mundo" - Deputado federal Cristiano Vale (PL/PA), presidente da Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (CINDRA).

Para Mauro O’ de Almeida, o caminho para um futuro sustentável é o estímulo a uma reeducação individual e da coletividade sobre o que de fato é desenvolvimento. “Desenvolvimento humano não pode ser confundido com crescimento econômico. Nem todo crescimento econômico representa desenvolvimento social, qualidade de vida, bem comum. A história das últimas décadas no Pará mostra que o custo ambiental das grandes intervenções humanas não se traduziu em benefício social local”.

“Veja você: nenhuma das grandes empresas atuantes no Pará tem centro decisor dentro do Estado, e muitas vezes nem no Brasil. Controlam operações e frentes de trabalho do fora do País. Nosso Pacto Federativo também precisa ser revisto. Há alta dependência da decisão do poder central (Brasília), a ponto de até judicializarem impasses de aval da União acerca de empréstimos com bancos internacionais, apesar de muitos terem saúde fiscal para operações de crédito”, pontua O’ de Almeida. “Na área ambiental, é exemplo a dificuldade de ingerência no próprio território paraense, uma vez que dois terços do Pará estão sob jurisdição da União. Para a agenda ambiental e desenvolvimento funcionar, é preciso que os entes estejam imbricados, articulados, rodando na mesma frequência”.

image (Tarso Sarraf / O Liberal)

Presidente da Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (CINDRA), o deputado federal Cristiano Vale (PL/PA) afirma que, apesar de todas as dificuldades históricas, atualmente a Amazônia reúne todas as condições para ficar em pé de igualdade ou até superar outras regiões mais desenvolvidas, inclusive a médio prazo. “Nossa região é estratégica em inúmeros aspectos. Nos últimos anos com a globalização, aumentamos nossa compreensão sobre isso. Possuímos um bioma único no planeta. Temos solo rico em minério; sistema hídrico gigante, que possibilita estimular a agricultura, pecuária, abastecimento e geração de energia, e uma extensão territorial continental. Se a nossa Amazônia Legal fosse um país, seríamos o sexto maior do mundo”.

Como presidente da CINDRA e representante do Estado mais o populoso da Amazônia brasileira, um dos objetivos é levar a região a um patamar de desenvolvimento sustentável, através de políticas públicas viáveis e eficientes, com participação de governos, da iniciativa privada e toda a sociedade. “Estamos continuamente trabalhando, seja na realização de estudos, projetos e na proposição de leis e emendas e recursos para estruturar municípios e criar condições.

Nesse sentido, o ex-ministro da Defesa, Aldo Rebelo afirma que a Amazônia não pode continuar sendo a região mais rica em recursos naturais e biodiversidade, mas com os piores indicadores sociais. Para ele, o Brasil inteiro precisa ter um projeto para a Amazônia que compreenda quatro pontos fundamentais. O primeiro é a soberania sobre a Amazônia. A segunda questão é o direito da população da Amazônia ao desenvolvimento. E um desses aspectos passa pela educação, ciência e tecnologia, para prover a Amazônia, e não apenas para o extrativismo, mas para a indústria de transformação.

image (Sidney Oliveira / O Liberal)

“A Amazônia já é hoje a maior produtora de cacau do Brasil. Agora, vamos exportar tudo? Por que não transformar, aproveitar a marca Amazônia, uma marca forte no mundo, para agregar valor ao que é produzido e extraído da Amazônia, não apenas na flora, na fruticultura, mas também na mineração?”, pondera Rebelo.

Projetos para a Amazônia precisam valorizar a ciência incluir os povos da região

A Amazônia precisa de projetos de desenvolvimento que incluam os povos da região. É o que afirma o reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Emmanuel Tourinho, citando as políticas sucessivas que formularam intervenções na região, sem ouvir as populações, ignorando a realidade da Amazônia, e que, ao fim e ao cabo, não geram riqueza e renda para os seus povos. “Precisamos de projetos de desenvolvimento construídos com protagonismo dos povos da Amazônia e com uma internalização dos benefícios desses projetos”.

image Emmanuel Tourinho é reitor da Universidade Federal do Pará/UFPA (Igor Mota / O Liberal)
 

Até hoje, afirma Tourinho, não há ainda projetos de desenvolvimento para a Amazônia que garantam um aproveitamento sustentável dos seus recursos naturais e desenvolvimento social. “Nós temos experimentado iniciativas que se traduzem por grandes projetos para gerar ativos energéticos e ambientais para outras regiões do País”.

Tourinho alerta: o problema é que, na região, a geração desses ativos energéticos e ambientais tem sido feita com um ônus para os povos da Amazônia. “Precisamos de projetos de desenvolvimento que sejam para a Amazônia, incluindo os povos da Amazônia. Ou seja, projetos que representem uma melhoria nas condições de vida da população da região”.

Tourinho ressalta os desafios impostos por indicadores regionais. “Temos o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o pior Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), analfabetismo alto. Temos a maior taxa de ocorrência de trabalho escravo. Temos a pior taxa de abastecimento de água nos domicílios e de rede de esgotamento sanitário. Então, os povos da Amazônia não aceitam mais que a região seja vista apenas como uma geradora de ativos energéticos e ambientais para terceiros”.

"É como se nós estivéssemos matando a galinha dos ovos de ouro, porque justamente aquilo que pode nos gerar tantos benefícios e ganhos vem sendo devastado" - Emmanuel Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará/UFPA.

O reitor da UFPA destaca a contribuição da ciência em busca de soluções para esse quadro. “Estima-se que só 20% da biodiversidade da Amazônia é conhecida e a ciência pode nos dizer como aproveitar esta riqueza sem destruí-la. Para isso, precisamos, primeiro, conservar esta biodiversidade, que vem sendo dramaticamente ameaçada. É como se nós estivéssemos matando a galinha dos ovos de ouro, porque justamente aquilo que pode nos gerar tantos benefícios e ganhos vem sendo devastado”.

Tourinho ressalta: “Temos uma grande capacidade científica instalada na região. Nossas universidades e institutos de pesquisas são competitivos internacionalmente, mas recebem poucos recursos e não realizam todo o seu potencial. Com o apoio devido, podemos criar condições para a conservação dos nossos recursos naturais e podemos desenvolver produtos de alto valor agregado. Com investimento em ciência e compromisso com as populações locais e com o meio ambiente, a Amazônia pode construir um novo e promissor ciclo de desenvolvimento”.

Um olhar pelo futuro dos “pedaços esquecidos”

O conhecimento científico é importante para ajudar pequenos agricultores da região a gerarem riquezas. Anacleto Pantoja Quaresma, 45 anos, nasceu e se criou em Igarapé-Miri, no nordeste do Pará. Ele, que vive da agricultura familiar, diz que a Amazônia deve ser preservada.

image Agricultor Anacleto Pantoja (Sidney Oliveira / O Liberal)

“É daqui que a gente sobrevive. Criamos uma associação que tem o objetivo de preservar o ambiente, os rios, igarapés, as matas ciliares. Mas é preciso também ter mais apoio do governo, com financiamentos, projetos de hortas, por exemplo”, pondera. O produtor gostaria que os seus filhos pudessem começar e concluir os estudos na comunidade, sem ter que ir para a cidade em busca de formação. “Atrás disso, se acaba tendo uma vivência fora de sua realidade. Se estivesse uma escola aqui, no nosso próprio rio, até o ensino médio, seria ótimo”. Concorda com ele Givanildo de Jesus Guimarães, 46, também nascido e criado em Igarapé-Miri. “É uma região abençoada, muito rica e fértil. Temos tudo aqui. Falta saber aproveitar o que temos, valorizar mais. Preservando o ambiente”, diz o Guimarães, que ganha a vida como produtor de cacau.

A quilômetros das matas de Igarapé-Miri, sentada à porta de sua casa, e tendo, ao fundo, a imponente baía do Guajará, Ana Cláudia Beltrão, de 50 anos, vive outra realidade, mas concorda que partilha dos mesmos desafios de Givanildo e Anacleto. Ela mora há sete anos na Vila da Barca, o aglomerado urbano que é considerado o maior bairro sobre palafitas da América Latina, e está situado na capital paraense, Belém. 

image Ana Cláudia Beltrão mora na Vila da Barca (Igor Mota / O Liberal)

“Nesse ambiente, a gente tem várias qualidades. Depende do que a gente vai querer tirar isso para nós”, assevera. “Daqui, a gente tem o sustento, tem área de lazer. Nessa época da pandemia, como não podia estar fora, aqui foi a nossa praia. Foi a nossa área de lazer. As crianças correm, brincam. Os adultos brincam no meio das crianças”, mira o horizonte.

Ana Cláudia gostaria que os governantes olhassem mais para dentro da comunidade. “Quando eles querem esse negócio de votação, mostram só o que é por fora. O que está por dentro, que é isso que nós vivemos, não prestam atenção, não olham para nós. Entendeu? Na hora da eleição, vêm aqui. Mas, quando ganham, esquecem desse pedaço que eles viram. Aí é difícil”.

"A Amazônia não fala por si", diz pesquisadora

Amazônia não fala por si. Quem fala por ela são os povos que a habitam”. Com essa frase, a antropóloga, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Jane Beltrão, resume: para falar da Amazônia, é necessário que tudo seja colocado no plural, por conta da diversidade. 

image Jane Beltrão é antropóloga, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará/UFPA (Igor Mota / O Liberal)

“Em cada canto, as pessoas que vivem nesses lugares são diferenciadas. Nós temos um tratamento histórico da Amazônia que é muito colonial. E nesse sentido, é importante considerar os povos originários, porque, como eles dizem em suas manifestações, eles estavam aqui antes da invasão europeia”.

A historiadora afirma que o tratamento dispensado aos povos da Amazônia ao longo do tempo sempre foi desigual, desde o período do Brasil Colônia, entre os séculos XVI e XIX, com a chegada ao território amazônico. Com eles, os portugueses trouxeram também conflitos e doenças que deixaram milhares de nativos mortos. Desde então, ao longo de todos os períodos da história da região, os povos da Amazônia precisaram resistir, destaca a pesquisadora.

"A diversidade na Amazônia, sobretudo das pessoas, precisa ser preservada" - Jane Beltrão, antropóloga, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará/UFPA.

A antropóloga, que chegou a trabalhar na Fundação Nacional do Índio (Funai) durante o regime militar (1964-1985), relata que mesmo na história recente, povos tradicionais ainda sofreram ataques. Ela afirma que muitos casos de morte e tortura de indígenas não chegavam nem a ser registrados, por causa da censura. Obras de logística para a região, que ajudaram a reforçar a ocupação da região e apoiaram o setor produtivo, também acabaram impulsionando o desmatamento, como é o caso da rodovia Transamazônica, de quase 6 mil quilômetros de extensão. Segundo a professora, mesmo após a redemocratização do Brasil, em 1988, com a nova constituinte e a volta de eleições diretas, poucas mudanças nesse tratamento foram notadas, diz a professora Jane Beltrão. E mesmo com os avanços, muitas questões deixaram de ser abordadas pelos governantes, como a demarcação de terras para usufruto dos povos que já viviam ali anteriormente.

“Na história recente, houve uma diferença de políticas públicas, mas as demarcações de terras indígenas, que deveriam ter sido feitas até 1975, não ocorreram. A Constituição deu outro prazo, que também não foi cumprido. Há uma quantidade enorme de terras não reconhecidas. E esse reconhecimento é importante. Não basta que esse território seja identificado, é preciso, pelo direito hegemônico, que ele seja reconhecido e registrado em cartório. A diversidade na Amazônia, sobretudo das pessoas, precisa ser preservada”, assevera Jane Beltrão.

image (Igor Mota / O Liberal)

Amazônia: uma história sob o olhar dos povos originários

Início da ocupação
O livro "A floresta habitada: História da ocupação humana na Amazônia", de Jakeline Pereira e Tatiana Corrêa Veríssimo, defende que a ocupação da Amazônia começa quando imigrantes asiáticos chegam ao vale do Amazonas, há mais de 14 mil anos, momento em que sociedades indígenas emergiram na região.

Brasil Colônia
No século 16, com a chegada de portugueses à região, através do rio Amazonas, iniciaram-se os conflitos por terras, riquezas naturais, como o ouro e minério. Várias doenças foram trazidas. Povos indígenas tiveram populações reduzidas drasticamente ao longo dos anos.

Ditadura Militar
De 1964 a 1985, a exploração dos territórios indígenas na Amazônia cresceu. Com isso também os conflitos na região. Muitos indígenas foram torturados e mortos, mas pouquíssimos casos chegaram a ser registrados, por causa da censura. Foi construída a Rodovia Transamazônica, com grande impacto para o bioma.

Pós-ditadura até hoje
A Constituição de 1988 incluiu direitos dos índios, com preceitos que asseguram o respeito à organização social, aos costumes, línguas, crenças e tradições. Demarcações de terras e políticas afirmativas são estabelecidas, como cotas no ensino público para indígenas.

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