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Esperançar é preciso (e viver também)

Mário Sérgio Cortella fala com a Troppo sobre morte, luto, felicidade e aparências

Lorena Filgueiras / Troppo

Foram seis meses de uma espera ansiosa, até que houvesse uma disponibilidade na agenda do professor e filósofo Mário Sérgio Cortella. No dia acertado, na última segunda-feira (11), horas antes do telefonema para a entrevista, uma notícia triste consternava o país: o jornalista Ricardo Boechat morria, em um trágico acidente com o helicóptero que o transportava de volta à capital paulistana. Cito este acontecimento porque às 18 horas, pontualmente, liguei para o número informado pelo escritório de nosso entrevistado e gentilmente me pediram que aguardasse, porque ele estava finalizando uma entrevista (de última hora) para falar da morte de uma pessoa tão querida, como era o Boechat, e da importância do luto.

Quando finalmente nos falamos, Cortella fez uma festa por eu ser paraense. Lembrou das mangueiras – e carinhosamente perguntou-me se as apólices de seguro para carros já continham uma cláusula contra as “mangas”. Com uma rapidez de raciocínio impressionante, Cortella não titubeia. Falamos, ao longo de quase 30 minutos, sobre morte, luto, felicidade, as aparências em redes sociais e de Belém – cidade que ele não visita há algum tempo, mas da qual guarda recordações muito vivas, porque era Carnaval. 

Troppo + Mulher: Esse ano começou pesado. Primeiro foi Brumadinho, em seguida, a tragédia com os meninos do Flamengo e, mais cedo hoje, a morte do Boechat. Tragédias que mexeram muito com o emocional do brasileiro. Como lidar e como ajudar as pessoas a lidarem com perdas tão bruscas?

Mário Sérgio Cortella: A primeira coisa é compreender que com a morte, a gente não se conforma – mas a gente se conforta. A gente ganha força junto. A morte não produz, em nenhum de nós, algum tipo de conformidade – nem deve. Mas devemos procurar conforto. Quando a gente vê o que aconteceu no país mais recentemente nas últimas semanas, temos o sentimento de imaginar que aquilo não deveria ter acontecido. Por outro lado, há a clareza de que nós não temos só morte na vida – temos morte, mas não só ela. Por isso, essa ideia de que a morte não é a única vitoriosa – e que a vida é capaz, sim, de seguir – é o que nos dá a possibilidade de enfrentar todas essas turbulências que estão à nossa volta. Muitas pessoas dizem: “Ah, Lorena, eu não consigo ser feliz em um mundo em que Brumadinho desaba; que jovens morrem queimado, em que Boechat, uma pessoa imprescindível parte”. Isso é parte da vida, mas não é a vida toda. Neste sentido, é preciso ter clareza disso para que a gente não mergulhe numa postura que acaba sendo absolutamente melancólica em relação à existência.

T + M: Como tratar emocional e espiritualmente pais que enterraram seus filhos? Precisamos redobrar os cuidados e a vigilância?
MSC: A gente precisa não descuidar! Uma das grandes qualidades que temos, é a possibilidade de cuidar: de nós, das outras pessoas, da vida, da comunidade, do ambiente. Quando a gente descuida, uma das tendências iniciais, ante um desastre, é atribui-lo a questões além da humana – e elas não estão! Tudo que ocorre, em nossos dias, que são desastrosos, resultam da ação humana. Nada disso que você mencionou é inevitável! Agora, em acontecendo, é preciso que a gente não se derrote por essa possibilidade e condição. Isso tudo, como eu dizia antes, a gente se prepara, imaginando que faz parte da vida, mas não esgota a vida. Não é só a perda – quando a perda vem, a gente a vivencia, chora, reflete, medita... em alguns momentos entra em desespero, mas sabe que isso, em nenhum momento, terá - de maneira alguma – a possibilidade de impedir que a vida siga.

T + M: Obrigada, professor. Voltando ao plano inicial desta nossa entrevista, eu me surpreendi ao saber que o senhor viveu um tempo em um convento...
MSC: Sim, vivi por três anos! No Convento da Ordem Carmelitana descalça, na cidade de São Paulo. Nasci em Londrina, no Paraná; mudei-me para a capital paulista aos 13 anos com minha família e, dos 17 para os 18 anos, assim que entrei na Universidade, eu decidi que ia viver uma experiência de religiosidade que fosse mais intensa! Minha família é de tradição católica; fui formado dentro do Catolicismo Romano e decidi, jovem ainda e cursando a faculdade, estar numa situação que eu pudesse viver a religião como um modo de vida. Após três anos, eu achei que aquela não era a ordem que eu queria seguir adiante. Eu queria estar na área de Comunicação, na docência, mas não dentro da vida conventual... por isso, passei, por muito tempo, a ter uma perspectiva de religião e passei a adotar, de um modo mais intenso, a perspectiva daquilo que é a religiosidade. Não deve confundir religião com religiosidade! Religiosidade é a reverência à vida; é a possibilidade de ver que a nossa existência não é mera materialidade! Às vezes, a religiosidade vira religião! Não existe religião sem religiosidade, mas existe religiosidade sem religião. E, neste sentido, há muita gente que tem religiosidade, mas sem religião. Numa dessas situações recentes que vivemos [as tragédias, que mencionamos na primeira pergunta], dependendo da religião da pessoa, isso pode confortá-la um pouco mais. A religião serena algumas perspectivas, a depender das circunstâncias que se vive. Minha experiência nessa atividade poderia me levar a dizer agora que sou uma pessoa que mantem a religiosidade em alta escala, embora eu não mantenha uma prática de religião no meu cotidiano. 

T + M: O sr. sempre menciona a linha tênue que separa a boa da má atividade dentro das redes sociais e observo que contrariando muitos dos objetivos iniciais, elas acabaram afastando pessoas e se tornaram um simulacro de felicidade. Por que é tão comum que as pessoas queiram fingir felicidade em redes sociais?
MSC: Uma das coisas que as redes sociais podem provocar é esse tipo de distorção. Não é a única coisa que fazem, já que elas conectam, que aproximam. Ao mesmo tempo em que produzem o encontro, podem produzir essa simulação, essa ilusão à qual você se referiu. À medida em que, por ser um “local” de exposição, as pessoas desejam se expor da maneira ou com o que elas querem ter/ser de mais expressivo, de mais potente – em vez de colocarem ali suas condições concretas do dia-a-dia, em que há dores e delícias. E colocar “delícias” cria uma aprovação maior... mas isso vem cansando um pouco. Esse tipo de realidade simulada, quase que uma bijuteria, daquilo que é a joia da vida, de fato, vem levando a um certo fastio. Hoje há pessoas que não só não se deixam dominar por esse tipo de enfeitiçamento, como começam a se expressar – não só com suas delícias, mas com dores. As redes sociais, em grande medida, num primeiro momento, serviram para mostrar nossas vitórias – mas ao esconderem nossos tropeços, quase que chegaram perto do Fernando Pessoa, quando ele, como Álvaro de Campos, dizia: “nunca conheci quem houvesse levado porrada na vida!”. [ele ri]

T + M: E o que é felicidade, afinal? 
MSC: A felicidade é a exuberância da vida! Quando você sente uma energia imensa de estar vivo e sente que vale estar [vivo]. No entanto, a felicidade não é um ponto futuro. A felicidade não é algo que se encontra num outro momento, para além de o agora. A felicidade é uma circunstância – é uma ocasião. Ela não é contínua, mas ela não é ausente. Ela não tem presença contínua, nem ausência contínua. Quando a pessoa diz “um dia eu vou ser feliz”, dificilmente o será, porque a felicidade não é um tempo futuro – felicidade é um horizonte, que servirá para que eu ganhe iniciativa para ir buscar situações nas quais eu sinta a vida em mim vibrar. Eu digo com alegria sempre: uma pessoa que fosse feliz o tempo todo, não seria feliz – seria tonta! Afinal de contas, a vida coloca distúrbios, dificuldades, turbulências problemas, mas alguém que só é infeliz, porque imagina que um dia o será, ainda não entendeu o quanto que a existência tem essas marcas múltiplas. 

T + M: Como educar nossas crianças e jovens a não irem por este caminho do simulacro? 
MSC: Neste sentido, uma pessoa de menos idade, ela tem, sim – agora que está iniciando uma experiência de vida mais densa – de entender que a felicidade não é algo que persiste e nem algo que se ausente. Ela não vem o tempo todo, mas quando vir, abrace-a, cuide dela, porque ela se vai, mas ela volta!

T + M: E como solucionar, professor, essa crescente angústia, que cerca boa parte das pessoas, da obrigação do êxito, de não ter uma vida banal, quando comparam suas vidas com às de outras pessoas?
MSC: O primeiro passo é imaginar que a nossa mortalidade nos dá um prazo, isto é, ‘eu não tenho a vida eterna para fazer, mas tenho a vida toda’. Se eu tenho a vida toda para fazer e ela cessa, isso significa que ela não pode ser desperdiçada. E desperdiçar a vida é, de fato, torna-la banal, fútil, superficial, inútil. A coisa mais perigosa é o biocídio, o assassinato da vida nas suas múltiplas condições e, neste sentido, não adianta imaginar que ele, sentado, terá uma iluminação específica e aí virá o sentido da vida! O sentido da vida se constrói e ele se constrói na ação, no projeto, em tudo aquilo que faz a minha vida ter validade? E o que faz a vida ter valer? Não necessariamente aquilo que eu acumulo ou junto – isso é um ponto que ajuda a viver. Neste sentido, eu sempre lembro meu avô italiano, Ettore, que dizia sempre: “nunca vi um carro fúnebre na frente, com um carro-forte atrás”. Não é que os bens materiais e o sucesso não devam ter lugar, mas é que há uma regra na vida: não fazemos qualquer negócio! Há negócios que não devem ser feitos! Não deve ser feito aquilo que degrada, aquilo que rebaixa, diminui a vida de alguém. Neste momento, Lorena, vale muito o conselho de um dos grandes teóricos do Cristianismo, que é Paulo apóstolo. Em sua primeira carta aos Coríntios, dizia que – e tanto faz que eu ou você não tenhamos religião, porque é uma frase muito inteligente – “tudo me é lícito, mas nem tudo me convém!”. Eu posso fazer qualquer coisa porque sou livre, mas não devo fazer qualquer coisa! O que não devo fazer? Aquilo que degrada a minha vida, que ofende minha comunidade, que banaliza minha história e apodrece minha esperança. 

Para saber mais:

@cortellaoficial
Facebook: Mário Sérgio cortella

T + M: Vi uma entrevista sua em que o sr. fala da sua relutância em aderir às redes sociais... e, paradoxalmente, hoje o sr. é um fenômeno delas! 

MSC: É curioso isso, não? [ele ri] Eu sou um docente e estou acostumado a me expor em público. Faço comentários em rádio, falo em TV e em conferências com até duas mil pessoas à minha frente, portanto o palco sempre foi meu lugar. O que eu não imaginava era que o mundo digital teria essa amplitude. De uma certa forma, eu nunca tive dificuldades de imaginar que isso poderia ser confundido com exibicionismo – ao contrário. Ou eu não seria uma pessoa que atua na linha de frente, com todo mundo olhando. Mas o que eu imaginava era que teria o alcance que depois passou a ter. E, neste sentido, nos últimos cinco anos, este mundo digital passou a fazer parte do meu cotidiano como meio de comunicação. É importante que se diga que há muitas formas, do mundo digital, que eu não uso, porque eu não quero. Em 2018, eu não tinha instagram. Agora, um ano depois, tenho mais de 2 milhões de seguidores – passei a ter um Facebook com mais de um milhão e meio de pessoas. E pra mim, que sou docente, a minha sala de aula perdeu as paredes. De repente, é como se eu tivesse subido em um lugar mais alto e pudesse falar com mais gente lá de cima. Quando falo “lá de cima”, não é um “de cima” arrogante. É uma possibilidade de ter um território mais expressivo. Mas eu, de fato, não me rendo àquilo que chamo de informatolatria. Não é uma questão de ser obsessivo, mas eu lido com uma coisa que é muito antiga, que é a Filosofia.

A Filosofia atravessou, em seus mais de 2.500 anos mais recentes, muitos momentos em sua trajetória e este momento é bastante efusivo, porque ela consegue ganhar a ‘praça de novo’, um espaço aberto – não é a Praça da República, aí em Belém; é um espaço maior, em que a gente é capaz de retomar um pouco do que era a Ágora – o espaço público dos gregos da discussão, dos debates, das tolices, da inteligência, da alegria, do ódio... uma convivência que nós estamos ainda balizando como ela poderá nos servir, em vez de nos maltratar.

Nós temos hoje uma possibilidade muito grande de pessoas acovardadas que se escondem atrás do mundo digital para expressão dos ódios que já tinham antes mesmo de o mundo digital existir. O mundo digital não criou a possibilidade de alguém ser malévolo, arrogante, de ser idiota – o mundo digital permitiu que quem, em essa posição se coloca, pudesse ter um lugar onde se apresentar. O ódio existe desde antes de a tecnologia o favoreça a vir à tona. Por outro lado, essa mesma tecnologia que pode favorecer a tolice, favorece à ampliação da informação, conhecimento, capacidade com a conexão. Tenho um encantamento com o mundo digital, mas não tenho um feitiço! Eu não fico enfeitiçado com ele – fico encantado! O feitiço é um patamar de dominação superior ao encanto – e nem quero! [risos].

O Liberal