Transição energética e pobreza invisível desafiam Amazônia, diz diretor da Agenda Pública
Sérgio Andrade defende justiça social na COP 30 e detalha ações no Pará para garantir renda e acesso à energia limpa
O diretor executivo da Agenda Pública, Sérgio Andrade, que esteve em Belém no início de abril estruturando um projeto voltado a sistemas agroflorestais no sudoeste do Pará, falou com exclusividade ao Grupo Liberal sobre o conceito de pobreza energética — realidade de mais de 17% dos lares brasileiros — e defendeu que a transição energética só será justa se levar em conta o desenvolvimento territorial, com foco em governança, escuta da população e fortalecimento da agricultura familiar. Sérgio também destacou as expectativas para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que será realizada em novembro na capital paraense.
O LIBERAL – Sérgio, queria que você começasse dando um panorama sobre a atuação da Agenda Pública. Como vocês têm trabalhado para garantir que a transição energética no Brasil seja socialmente justa e inclusiva?
Sérgio Andrade – Nós somos uma organização da sociedade civil que atua há 15 anos, especialmente com programas de melhoria da qualidade dos serviços públicos e com programas de desenvolvimento territorial. Por que é tão importante combinar essas dimensões? A qualidade de vida é resultado de acesso a serviços públicos melhores. E sem garantias de fontes estáveis de renda, receita para implantação de políticas públicas, os municípios não conseguem fazer bem o seu trabalho. Então nós, da Agenda Pública, combinamos essa forma de atuar por meio de advocacy, com presença em conselhos estaduais, federais, e com um grande conhecimento do Brasil. Atuamos de perto com realidades de municípios de diversos portes, desde capitais como Belém, onde avaliamos a qualidade dos serviços públicos e conhecemos os desafios do município, até o oeste, sudoeste e sul do Pará, onde já atuamos há mais de cinco anos.
O LIBERAL – Explica para a gente o que é pobreza energética e quais são os principais desafios para superá-la no Brasil, especialmente na Amazônia.
Sérgio Andrade – Esse é um conceito difícil de ser retratado. Exatamente por isso existe a plataforma Transição Justa, construída por organizações e municípios afetados por essa agenda — especialmente municípios do petróleo, da mineração — que precisam diversificar suas economias. Estamos falando de uma base da economia fóssil. É fundamental fazer um planejamento de longo prazo. Um exemplo é o estado do Rio de Janeiro, que depende muito da receita do petróleo. Como fazemos uma transição em que as receitas do município sejam diversificadas e estáveis para gerar renda e aproveitar as oportunidades que a economia verde oferece? A pobreza energética tem dois fatores: o acesso seguro, estável e financeiramente acessível à energia elétrica, e também à energia para cocção. Hoje, 17% dos lares brasileiros ainda usam lenha para cozinhar. Na zona rural do Nordeste, chega a 85%. As pessoas não usam por tradição, mas por necessidade. Esse problema invisível é o que queremos retratar por meio da pesquisa da Transição Justa.
O LIBERAL – Nos últimos meses, fala-se cada vez mais em COP 30. Como você enxerga a possibilidade de colocar a pauta da justiça energética no centro dessas discussões globais sobre mudanças climáticas?
Sérgio Andrade – É um fórum privilegiado. A importância da COP 30 em Belém é enorme. Esperamos que todos sejam bem recebidos aqui e que a cidade seja um palco para debates relevantes como o da justiça climática. Estamos falando de vidas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 3,2 milhões de pessoas morrem todos os anos por causas evitáveis ligadas ao uso da lenha para cozinhar, principalmente mulheres e crianças. A concentração de partículas numa cozinha a lenha pode ser 33 vezes maior que o recomendado pela OMS. A de CO₂, 15 vezes maior. Muitas vezes nem é uma cozinha: é um conjunto de tijolos no quintal. Além do impacto na saúde, há o tempo: 18 horas por semana são gastas com essa tarefa — catar lenha, preparar alimentos, acender o fogo. É uma atividade feminina. O problema é multidimensional: envolve saúde, renda, educação e meio ambiente.
O LIBERAL – Agora queria falar sobre sua visita ao Pará. Você esteve estruturando um projeto com foco em sistemas agroflorestais. Quais são os objetivos por trás dessa iniciativa e em que região do estado vocês estão atuando?
Sérgio Andrade – Sabemos o quanto a agricultura é essencial para o país. É uma atividade-chave da nossa economia e, muitas vezes, nossa principal fonte na balança comercial. Mas temos um olhar fundamental para a economia gerada pela agricultura familiar, que garante o sustento de milhões de famílias e é responsável pela segurança alimentar dos brasileiros. O agricultor familiar é quem produz aquilo que consumimos: frutas, laticínios, hortaliças. No Pará, há uma estratégia que vem se sofisticando, e o governo federal, na retomada da agricultura familiar, tem ampliado programas — mas isso precisa chegar nos municípios. Em parceria com o programa Parceiros pela Amazônia e com apoio da Suzano, estamos atuando em cinco municípios do sudoeste do Pará, tendo como base Rurópolis. Queremos fortalecer os gestores públicos para que construam serviços que façam sentido para os agricultores. Muitos programas são abandonados porque não consideram as reais necessidades. Apesar de haver fontes de financiamento, elas não chegam na ponta.
O LIBERAL – E de que maneira esses SAFs, como são chamados, se tornam viáveis e sustentáveis para os agricultores?
Sérgio Andrade – O Pará tem exemplos de sucesso, como o açaí, mas há outros cultivos possíveis em modelos de quintais produtivos. O programa federal consorcia áreas preservadas com espécies nativas e produtivas. Acampamentos, assentamentos e pequenos produtores podem usar essas áreas para cultivar açaí, cacau — que está em alta no mercado internacional —, leguminosas, milho, maracujá. A ideia é combinar cultivos de renda de curto prazo com espécies de valor comercial, para garantir retorno financeiro e preservar o meio ambiente. É um sistema agroflorestal produtivo. Não é só restauração: é renda chegando ao produtor. E esse é o principal desafio. O agricultor precisa enxergar valor. Muitas vezes ele garante alimento e ainda preserva a reserva legal da propriedade, inclusive protegendo nascentes de água. Isso precisa ser reconhecido.
O LIBERAL – Como os gestores públicos locais têm se envolvido nesse processo, especialmente em regiões com poucos recursos?
Sérgio Andrade – Acabamos de construir o que chamamos de “jornada dos usuários”, ou jornada do cidadão. É um trabalho com os gestores públicos para entender os desafios do atendimento ao produtor rural. Por que o agricultor não segue no programa? Por que não aumenta a renda? Estamos construindo esse caminho juntos. O programa tem intercâmbios com práticas de todo o país, e formações de alto nível. Chamamos de jornadas de inovação aberta: produtores, especialistas, universidades, empresas, todos juntos para resolver problemas reais. Como resolver desafios de logística? Como acessar crédito? Até as instituições financeiras aqui da região estão envolvidas. Tem sido bem recebido. Acreditamos que será um sucesso, principalmente no sudoeste do Pará.
O LIBERAL – E quais os principais aprendizados da Agenda Pública ao longo desses anos? O que vocês têm acumulado de experiência nesse momento histórico para o Brasil?
Sérgio Andrade – Quando procuramos entender por que políticas públicas falham, há dois fatores fundamentais: governança e base econômica. É preciso coordenação entre áreas. Um problema de desenvolvimento econômico não se resolve só na Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Envolve atores econômicos, pessoas em situação de vulnerabilidade, políticas sociais. Precisamos de arranjos institucionais sólidos. A participação da sociedade é essencial. Precisamos ouvir os usuários. A base do nosso trabalho é a Lei 13.460, o Código de Defesa do Usuário do Serviço Público. Ela nos dá base para escutar, construir e avaliar com o cidadão.
Por isso, a avaliação dos serviços é essencial. Estamos contribuindo com a Ouvidoria-Geral da União para uma nova pesquisa sobre os principais serviços públicos federais. E, por fim, não se muda uma realidade sem trabalhar a base econômica. Qual é a base econômica do território? Se ela é frágil, a vulnerabilidade é maior. O futuro da mineração, por exemplo, no Pará: como pensar no destino dos municípios que dependem dela por 20 anos? Quando o ciclo acaba, pode não haver substituição. Isso precisa ser pensado desde o início. Agricultura, indústria, economia do conhecimento, atração de investimentos — tudo isso deve ser planejado desde o começo para que o desenvolvimento seja para todos.
O LIBERAL – Onde o público pode acessar a pesquisa da plataforma?
Sérgio Andrade – Convido os seguidores e leitores de O LIBERAL a acessarem: <www.pobrezaenergetica.transisaojusta.org.br>. A pesquisa está disponível na íntegra.