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Argentina atrai paraenses interessados em estudar e ter melhor qualidade de vida

Apesar da grave crise econômica que assola o País há décadas, o local continua representando uma das opções mais buscadas na América do Sul

Elck Oliveira

Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, 90.203 brasileiros viviam na Argentina, em 2021. O dado - o mais recente disponibilizado pela pasta - é apenas estimado, já que o registro de nacionais no exterior não é obrigatório. Também não é possível saber, segundo o Ministério, os Estados de origem desses brasileiros, mas estima-se que uma boa parte seja de paraenses. Em grupos de redes sociais que se identificam com a temática “Brasileiros vivendo na Argentina” não é difícil encontrar quem tenha saído do Pará com destino ao país vizinho, o qual, a despeito da crise econômica enfrentada há décadas, continua a atrair muita gente disposta a fazer turismo ou morada mesmo. 


A pedagoga Soraya Ayan, de 43 anos, vive há 14 anos em Buenos Aires, capital federal daquele País. Casada com um argentino e mãe de um menino de sete anos, ela não pensa em voltar a morar em Belém, apesar da situação econômica periclitante do país hermano - que registra uma inflação que já bate a casa dos 100%, um número particularmente assustador para nós, brasileiros, que lembramos muito bem de uma época em que a nossa inflação também nos tirava o sono. 

Ela acredita que, de alguma maneira, os argentinos já estão acostumados à inflação alta, uma vez que essa é uma realidade de tempos no país. Mesmo assim, para Soraya, a qualidade de vida não é afetada e ainda é muito superior do que a experimentada no Brasil. Segundo ela, os serviços públicos funcionam e é possível viver com tranquilidade por lá. 

"Moro na capital federal (Buenos Aires) e aqui há uma excelente qualidade de vida"

“Eu moro na capital federal (Buenos Aires) e aqui há uma excelente qualidade de vida. A gente tem transportes que funcionam, a um preço muito barato e com estrutura. A saúde pública também funciona aqui, assim como o lazer e a educação, ou seja, as coisas prioritárias para uma pessoa viver em sociedade. A educação aqui é excelente, vale ressaltar, não à toa tem tanto brasileiro e pessoas de outros países estudando aqui. Meu filho frequenta uma escola pública e a educação é excelente e inclusiva”, explica. 

A pedagoga esteve recentemente em Belém para visitar a família e disse que ficou assustada com algumas coisas, depois de cinco anos sem voltar à capital paraense. “Eu fiquei muito assustada, por exemplo, com os preços de tudo em Belém. Fazia cinco anos que eu não ia. O quilo da carne, por exemplo, está um absurdo”, lamentou. 

Conforme destacou Soraya, a educação, de fato, tem sido um fator de atração importante para muitos brasileiros que desejam se formar em cursos não tão acessíveis no Brasil, como é o caso de medicina. Na Argentina, não é necessário, por exemplo, fazer vestibular para garantir uma vaga. Esse foi um dos motivos que levaram o jovem engenheiro Wanderson Santos, de 25 anos, a trocar Altamira, no sudoeste paraense, pela cidade de Rosário, na região central da Argentina.  

“Faz dois meses que eu me formei em engenharia elétrica, em Santarém, e há menos de um mês estou aqui em Rosário. O meu projeto era me formar em engenharia e poder pagar o curso de medicina no Brasil, mas, devido a algumas questões familiares, decidi vir para cá pelo fato de que qualquer curso de de nível superior nas faculdades públicas é totalmente de graça, sem vestibular. Então, quando eu cheguei aqui, não precisei fazer vestibular e nem pagar faculdade, e o estudo é muito bom. A faculdade tem boa estrutura para ensinar”, relata o jovem. 

Rivalidade entre brasileiros e argentinos é muito mais mito

Para Wenderson, a situação econômica do país é nitidamente delicada, mas nada que seja impossível de lidar. “Apesar disso, a cidade aqui onde eu estou agora, que é Rosário, é uma ótima cidade, com excelente estrutura. O custo de vida aqui também é baixo e o clima é perfeito, então, não tenho muito do que reclamar. Como estou aqui há menos de um mês, ainda tenho um pouco de dificuldade com o idioma, mas, tenho certeza de que daqui a uns dois meses, quando estiver mais adaptado, com certeza já vou buscar um trabalho, pois vou poder validar o meu certificado de engenheiro aqui e arrumar um trabalho, já que não conto com aparato financeiro da minha família, os meus pais não têm condições. Agora, estou sobrevivendo do seguro desemprego do emprego que eu tinha lá em Santarém”, conta. 

Segundo o engenheiro, a suposta rivalidade entre brasileiros e argentinos é muito mais mito do que realidade. “Quando a gente chega aqui percebe que é bem diferente. Eu, particularmente, fui muito bem recebido, não tenho nada a reclamar. Os argentinos sempre perguntam se estamos precisando de alguma coisa e, se tiver, eles ajudam mesmo. Isso é legal”, opina ele, que pretende, depois de se formar, voltar ao Brasil, a Altamira, e ajudar a mudar a realidade da sua cidade natal.  “Pretendo sim voltar ao Brasil e atuar no Brasil. Ajudar a minha comunidade, sem a qual eu não conseguiria ter chegado até aqui”, conclui. 

Já a também estudante de medicina paraense Damarys Chagas, de 26 anos, que vive há cerca de dois anos no país, aponta algumas dificuldades enfrentadas na mudança para o local. Ela não acha que os argentinos sejam tão amistosos assim e diz que quem deseja fazer essa mudança de país precisa se preparar bem para as adversidades que podem ocorrer. “A recepção dos argentinos fica longe de ser a melhor, eles são preconceituosos e a xenofobia é comum aqui. No entanto, o país é lindo, a arquitetura, a cultura, e isso me encanta cada dia mais”, pontua.

Estudantes brasileiros desistem de cursos na Argentina

Segundo ela, no entanto, é comum ver estudantes brasileiros desistindo dos cursos iniciados na Argentina. “O número de estudantes brasileiros procurando a carreira de medicina na Argentina, sem dúvida, cresceu consideravelmente por conta do valor da mensalidade, no caso das particulares, e o ingresso, que é facilitado, porém, o método de ensino é bem diferente. Não é fácil como se pensa e muitos acabam voltando antes de completar um ano de curso. Então, para aqueles que querem tentar, venham com o pensamento de que aqui não é o Brasil, é uma vida nova, longe da família, o ensino é diferente, assim como o idioma e a cultura”, pondera.

O jornalista Eduardo Auad, de 26 anos, é outro que deixou Belém com destino a Argentina, com o intuito de estudar medicina. Ele chegou ao país no ano passado e hoje estuda em uma universidade pública. Auad conta que ainda se assusta um pouco com a volatilidade dos preços na Argentina, fruto da inflação altíssima. “O que mais me assusta, na verdade, é ver a mudança de preços todos os dias nas gôndolas dos mercados. Em muitos lugares, os vendedores nem colocam preços, já que tudo muda todos os dias e o jeito é consultar direto no computador. É complicado viver assim, porque, no final das contas, não importa muito se ganhas em real ou pesos, porque os valores são tão voláteis que não tens certeza se o teu primeiro planejamento de gastos do mês vai chegar até o final”, afirma. 

Apesar desse quadro preocupante, o jornalista diz que ama e se identifica com a cultura argentina, por isso, está gostando da estadia no país vizinho, apesar da crise. “É um país de muitas possibilidades e oportunidades. De uma gente que tem uma cabeça mais à frente, que se preocupa menos com preconceito e mais com o bem estar do seu povo. Lutam quando tem que lutar,  não têm medo de ir às ruas pedir ações do governo ou chamar atenção por qualquer assunto de interesse público. Viver na Argentina é bom”, resume ele, que também mora em Rosário. 

Cenário na Argentina não é muito diferente do vivenciado na América Latina como um todo 

O professor universitário e doutor na área de Relações Internacionais, Mário Tito, explica que o cenário econômico hoje vivenciado na Argentina tem relação direta com o contexto da América do Sul, que sofre uma forte influência dos Estados Unidos, e o avanço do neoliberalismo, experimentado sobretudo a partir da década de 90 do século passado. “Tudo isso tem a ver com essa questão mais continental do processo. A Argentina, como os outros países da América do Sul, sofreu essas ingerências e teve que adaptar o seu modelo econômico ao domínio do neoliberalismo, especialmente na década de 90”, comenta. 

Some-se a isso, segundo o professor, questões internas do próprio país, como o golpe militar de 1970, e as várias tentativas de golpes posteriores, mesmo após o fim da ditadura militar. “Isso mostra o nível de instabilidade política no país. Já a partir do ano de 2001 ocorre uma grave crise econômica. A Argentina é dependente da exportação de commodities, o que mostra também a dificuldade de ter um portfólio econômico de maior pujança, especialmente no campo industrial, o que é comum a vários países da América Latina. Porém, o que difere a Argentina é justamente a força dos movimentos populares, que, não obstante à crise econômica e política, seguem questionando esse modelo neoliberal. Todas essas questões mostram claramente que a crise econômica é, também, uma crise política”, argumenta. 

Para o especialista, alguns fatores explicam o fato de a Argentina continuar a atrair muita gente, principalmente brasileiros, apesar do cenário econômico desafiador. A cultura, que revela traços de uma Europa ancestral e, ao mesmo tempo, rica em componentes artísticos e de culinária, é um diferencial. “Há uma ideia de um padrão cultural argentino que encanta muitos brasileiros e, de alguma maneira, poder acessar padrão sem sair do continente sul-americano é muito interessante. Uma outra questão importante se refere ao custo de vida, pois, de uma lado, a desvalorização do peso argentino favorece o real e atrai, apesar da inflação alta”, admite. 

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